segunda-feira, 9 de abril de 2018

A aliança e as quatro leis que regem o universo



(a partir das grandes descobertas científicas do século XX)

A lei geral da habitação ecológica
Sexualidade como aliança e lei da selva
A aliança química e lei da gravidade
A aliança tribal das palavras e das coisas e a lei da verdade falada
A aliança da escola e dos livros e a lei da verdade escrita
 A aliança técnica da civilização global
Conclusão triste

1. O que segue supõe o motivo fenomenológico dos duplos laços[1], silenciado para não tornar mais complicada esta tentativa de responder ao vago desconforto que eu sentia em relação às quatro leis da fenomenologia geral, a da selva e a da guerra, a da gravidade e a da verdade: apenas ‘uma’ lei, sem mais, em cada cena? E já agora, porquê se trata de ‘lei’? Num texto sobre ciências das sociedades[2], resumi a análise do antropólogo francês Pierre Clastres, que contrapunha Lévi-Strauss e as trocas (de mulheres, bens e palavras) e Hobbes e a guerra (de todos contra todos): a lei geral das sociedades humanas consistia em trocas adentro das fronteiras e guerra com os estranhos estrangeiros além delas. Mas, tendo em conta que também entre irmãos (e vizinhos) a rivalidade é muitas vezes a regra, a rivalidade de quem quer ser considerado o melhor e o mais forte, acrescentei que se pode dizer que a dupla lei das sociedades humanas é a lei da aliança e a lei da guerra, a troca e a sua razão (a discussão) sendo o antídoto desde sempre contra a guerra. Haveria portanto uma dupla lei, com a particularidade de a aliança ser constitutiva da ordem social, é a grande tese das Estruturas elementares do parentesco, enquanto que a guerra, a rivalidade enquanto concorrência, arriscando-se a destruir a sociedade, pode contudo conferir-lhe dinamismo, deslocando e equilibrando forças que se disputam, tanto mais quanto sucede habitualmente que, quando rivais são submetidos a outros rivais de nível mais forte, a aliança liga os primeiros na resposta contra os segundos: rivais entre clãs unem-se na guerra contra tribos vizinhas. Ora, a aliança sendo constitutiva da ordem social, quer de cada unidade social quer da tribo, quer de cada casa quer da cidade, a lei da guerra vindo na sequência da organização, dos contrastes desta fomentando rivalidades, há que procurar a lei que rege a aliança: o defeito da minha análise, talvez iludido pela força esclarecedora do modelo do automóvel e da lei do tráfego e pela preponderância do motivo do movimento[3], o defeito foi o de ter limitado as análises à circulação nas cenas e não ter sabido perceber como introduzir as leis de constituição de cada circulante: ora, essas leis parecem ser todas leis de aliança. Foi esta a questão que me veio um dia destes. Não posso continuar a falar de ‘lei da guerra’, como costumo, ou de ‘lei da selva’; e que dizer da lei da gravidade e da lei da verdade?

A lei geral da habitação ecológica
2. Como colocar então a questão da lei da aliança duma tribo? Não temos que imaginar nenhuma ‘origem’ das tribos (porque já muitas espécies de mamíferos e de primatas se organizam em sociedade, como os chimpanzés de Jane Goodall), que são submetidas à lei da selva na sua cena ecológica que lhes dita as possibilidades ecológicas caso por caso, nomeadamente as dimensões dos grupos, consoante as outras espécies que lhes servem de alimento ou de defesa contra carnívoros mais fortes. O que as sociedades humanas acrescentaram, à medida que foram desenvolvendo linguagem e instrumentos de usos variados de habitação e culinária, foi o que chamaria lei de habitação ecológica: uma sociedade não pode ser uma multidão, tem que se organizar residencialmente, criar ‘unidades locais privadas’ em torno de um ou de alguns núcleos familiares. Duas famílias unem o filho duma com a filha da outra, fazendo uma aliança entre elas, tal como as outras o fazem, o conjunto dessas alianças sendo a ordem tribal do parentesco, subdividida em clãs consoante as dimensões de população e as possibilidades ecológicas. Nessas unidades, joga-se o interdito de parentesco que impede que elas se fechem sobre si endogamicamente e as obriga às alianças, mas internamente a unidade também é constituída por uma aliança, gerida por um paradigma de usos, que é o que justifica a privacidade (retiro) face aos indígenas de outras residências, ainda que da mesma tribo e de paradigmas equivalentes. O paradigma que se aprende implica lugares ocupados por cada um, devendo ganhar habilidade e competência na relação com os outros e obter o reconhecimento respectivo, com a inerente possibilidade de rivalidade, de querer ser melhor do que o outro, de ocupar os melhores lugares. Quando a invenção da agricultura e da criação de gado, a domesticação da lei da selva, trouxe a possibilidade de especializações, de habitar em cidades, com uma classe de guerreiros donde o chefe será rei, que na guerra farão escravos para o seu serviço, enquanto outros vão melhorando ou inventando ofícios, ultrapassando assim a mera condição biológica das casas rurais auto-suficientes, criando o citadino. Nas nossas sociedades, acrescentam-se aos casamentos das residências familiares os contratos que constituem empresas de diversa ordem numa grande aliança social, que o aparelho do Estado, a moeda, a escola e os médias regulam. Marido e mulher são aliados mas, como todos sabemos, frequentemente andam de candeias às avessas, assim como com algum dos filhos e entre irmãos: aliança com rivalidades (que os divórcios atestaram desde há milénios), manifestamente que aquela é condição destas, assim como as alianças que constituem uma tribo são condição prévia das guerras em que ela se empenhe. Também as empresas, em concorrência com outras do mesmo ramo, implicam entre os seus componentes a famosa “luta de classes”, entre os juros do capital e os salários daqueles de cujo trabalho esse lucro resulta, ilustrando a dupla lei: aliança sem a qual não há empresa e guerra na partilha dessas mais valias. O marxismo teorizou esta dupla lei assim: a aliança é entre os trabalhadores e as máquinas e outros meios de produção, as chamadas “forças produtivas”, a luta entre os proprietários desses meios, o capital, e o salário dos trabalhadores, as chamadas “relações de produção” e, segundo Étienne Balibar em Lire le capital (1965), é a unidade contraditória dessa dupla que constitui o “modo de produção” capitalista. O outro grande argumento da lei da guerra é a própria guerra entre sociedades ao longo da história, desde as tribos, passando pelas ‘nobrezas’ guerreiras até à feroz concorrência entre capitais e aos desportos de massa que entretêm paixões adversas dentro das regras dos jogos. A lei geral da habitação ecológica é composta assim de aliança como lei de composição e guerra como resultante de conflitos entre os componentes no movimento do colectivo social.

Sexualidade como aliança e lei da selva
3. A lei da selva diz a cena ecológica, mas apenas para caracterizar a inacreditável regra de os animais terem de comer outros vivos, animais ou plantas, como condição elementar de sobrevivência, com base no ciclo do carbono que parte da fotossíntese. O que me escapou foi a atenção ao lugar da reprodução dos indivíduos que, na esmagadora maioria das espécies desenvolvidas em organismos, se deve à prodigiosa invenção da sexualidade como capaz de alargar a variedade das anatomias das espécies. O que há de prodigioso neste sistema, que acresce ao da alimentação e ao da mobilidade, ambos articulados e regulados pelo sistema neuronal, é que ultrapassa o princípio da economia química (a que viremos) de juntar moléculas no contacto físico que vigora nas espécies que se reproduzem, por exemplo, por cissiparidade (vermes) ou por brotos (hidras de água doce), e de apostar no acaso dos encontros entre macho e fêmea, com a sua fraca probabilidade, remediando a esta com a multiplicação enorme de sementes, de células gâmetas, de pulsões de acasalamento, de nados duma só cópula fecunda. Ora, o que faz todo o nascimento, de planta como de animal, é constituir a população da selva, cujos animais ficam sujeitos à agressividade da respectiva lei. Pode-se aventar uma hipótese que ligue estas duas leis: haverá, apesar de tudo, inúmeras ninhadas de mamíferos, aves e peixes que acabariam por não ser ecologicamente viáveis, mas que justamente serão a presa bendita de animais adultos e foram portanto um factor – trágico – importante na história da evolução. Ora, esta solução é evidentemente contrariada tanto quanto possível pela mãe (ou o pai também) que procura defendê-los até serem capazes de se defenderem sozinhos, ilustrando assim a lei de aliança familiar que é constitutiva do jogo da selva. O etólogo Nobel Konrad Lorenz, num seu célebre livro sobre A agressão, conta numerosos rituais de espécies vertebradas e por vezes invertebradas que se explicam como inibidores de agressão de congéneres da mesma espécie, quer para não comerem os próprios filhos, quer machos ou fêmeas não se comerem entre si em época de acasalamento, autênticos rituais de aliança que mostram como esta é inerente à lei da selva. Lorenz chega a dizer, a dado momento, que “o canibalismo é no entanto extremamente raro nos vertebrados de sangue quente” (cap. VII). No início desse capítulo, intitulado, “comportamentos análogos à moral”, pusera a questão geral de saber “como é que o rito consegue esta tarefa praticamente impossível de impedir que a agressão intra-específica prejudique seriamente a conservação da espécie, sem que no entanto sejam eliminadas as suas funções indispensáveis no interesse da espécie” (subl. do autor), respondendo que a evolução “guardou a pulsão sem a mudar [...] mas instalou, em casos particulares onde ela podia ter efeitos nocivos, um dispositivo especial de inibição criado ad hoc”, os tais rituais que conta a seguir. A lei da selva tem assim uma componente de aliança, que foi aliás o grande objectivo visado pela teoria da evolução de Darwin: pode-se dizer que ela resulta da própria lei de aliança como incapaz de sobreviver sem moléculas de outros, aliança e lei da selva são inerentes uma à outra. Lévi-Strauss colocou a sua tese do interdito do incesto como um ‘universal’ de todas as sociedades humanas, com divergências nas outras regras culturais, procurando que não houvesse razões biológicas que justificassem a universalidade desse interdito. É o tipo de argumentação que joga sobre oposições, no caso entre natureza e cultura, de que o interdito seria a articulação. Mas pode-se justamente objectar que havia uma razão biológica muito forte: a pulsão sexual destinada a que houvesse muitos filhos deixou de ser nos humanos (e nos outros primatas? nos chimpanzés de Jane Goodall ainda há cio) limitada a períodos de cio, o que prejudicaria outros usos, nomeadamente relativos à alimentação. Não é pois por acaso que a sexualidade foi sempre uma zona moralmente perigosa, de adultérios e violações, ganhando um lugar na parafernália da lei da guerra. O que contém este excesso sexual onde não há cio [porque é que este desapareceu, nunca consegui saber] é assim o paradigma dos usos, cuja lógica implica programação – retenção de ‘desejos’ que sejam obstáculo ao que se vai fazer que leva tempo, preparar uma refeição ou construir uma cabana – por assim dizer uma característica da habitação humana, que a agricultura desenvolverá fortemente, bem como o artesanato especializado que ela tornou possível.

A aliança química e lei da gravidade
4. Vindo agora à cena da gravidade, cuja lei geral é a da força de atracção entre astros (e graves), o que ficou por elucidar foi o lugar nela da química, que se pode dizer ser na cena da gravidade o análogo da sexualidade na cena da vida: com efeito, ela implica uma proximidade física de moléculas diferentes se atraírem e formarem uma nova molécula como aliança entre os átomos das duas primeiras. Ora, é esta composição de moléculas mais complexas, de cloro e sódio darem cloreto de sódio, o sal do mar, composta a água deste por sua vez de moléculas de oxigénio e hidrogénio. Contando com as necessárias condições de pressão e temperatura das estrelas, o que a química trouxe à cena da gravidade foi justamente os graves em que ela se exerce como força atractiva de forças electromagnéticas. Na Terra parece claro que estas forças são necessárias para juntar as moléculas que farão aliança química em graves, mas também se encontra a necessidade de haver graves compostos para que a gravidade se exerça como Newton ensinou (embora também se possa saber da atmosfera que envolve a terra, sujeitos os seus gases à força da gravidade, que estes não são compostos, o todo sendo uma imensa mistura em que, a seco, predominam o azoto e o oxigénio). Reside aqui a minha dificuldade em entender a sequência do big Bang. [que eu saiba, Derrida nunca escreveu sobre questões de Física e Química, suponho que terá sempre ouvido falar do big Bang com alguma suspeita, já que pretendeu a partir do nível dos vivos, dos humanos e das línguas, do que chamou rasto vivo (trace vivante)[4], que não há origem, sempre que nos aproximamos dela o que encontramos é já repetições, é a repetição que é originária, disse paradoxalmente. Digamos que a minha dúvida aqui depende do pensamento dele]. Como é que a multidão de partículas se compôs em átomos e moléculas até se formarem as estrelas. Como obviamente nenhum físico pode aceitar sem ser por crença a noção dum “ponto” sem dimensão contendo toda a matéria e energia do universo, haverá que retomar a proposta de Prigogine e Stengers em Le Temps et l’Éternité, com aspas nas citações deles (p. 162 da ed fr). Em vez do big Bang do modelo clássico (“uma singularidade, um ponto sem extensão em que se encontra concentrada toda a energia e matéria do universo”, a que “as leis físicas não podem aplicar-se”), eles retêm o modelo dito do “free lunch” [pic-nic] que foi concebido retomando “um universo vazio, de curvatura nula” de Minkowski: sem matéria, nem entropia nem espaço-tempo, “flutuações quânticas do vazio”, instáveis, aparecendo e desaparecendo, uma espécie de “mini buracos negros dissipativos”, de que um deles, tendo uma massa superior a 50 vezes a massa de Planck, conseguiu “transformar a energia negativa do campo gravítico em energia positiva de matérias”, tendo “por consequência uma curvatura do espaço-tempo que, por sua vez traz consigo a materialização de outras partículas, etc.” À maneira da cristalização dum líquido super resfriado [surfondu]”, acrescentam. O adjectivo ‘dissipativo’, típico das suas ‘estruturas dissipativas’, aplicado a ‘buraco negro’, põe-me algumas dúvidas, assim como este aplicado a ‘flutuações quânticas do vazio’. O motivo do buraco negro representa na física, tanto quanto eu entendo, uma sobreposição de forças de gravidade sobre expansões energéticas, vejo mal como joga com flutuações, mas tem a vantagem de poder pensar a célebre explosão como uma expansão energética libertada de forças da gravidade e que essa energia possa transformar-se parcialmente em ‘matéria’, deixando a minha dúvida sobre o como da aliança química que veio a redundar na constituição de estrelas, cujas combustões foram o forno da constituição química das moléculas mais complexas da Tabela Periódica, fabricando átomos com suas forças nucleares e electromagnéticas e moléculas com outras forças deste tipo.
5. Neste contexto, haverá dois tipos de actuações sobre os astros e seus graves: as da expansão, feita de energia inerte resultante da explosão primordial do buraco negro prigoginiano, a que se opõem os três tipos de forças atractivas, nucleares, electromagnéticas e gravitacionais (estas dominando a cena astral), as quais são pois constitutivas do universo. Extrapolando Prigogine além do que ele propôs, estas forças jogam sobre a entropia negativa (Clausius) da expansão criando entropia positiva: toda a matéria o seria, de acordo com a fórmula célebre de Einstein E=m.c2, energia roubada à expansão; por outro lado, as partículas que resultam das explosões de núcleos e átomos regressam à entropia de Clausius, como faz parcialmente o vapor de água a ferver. Se isto bate certo, todas as leis de aliança constituintes do nível superior que a Terra tornou possível, as dos vivos e suas sociedades e usos, são leis que ganham – por entropias positivas – sobre as forças do nível abaixo. Para começar, a verticalidade das árvores é resultado dum crescimento em altura que a gravidade não admitiria de si mesma e que releva da bioquímica que as constitui, em seguida os animais, mesmo os que não voam: quando andamos, o pé que se levanta – por energia do conjunto do organismo – contraria a gravidade (por isso nos cansamos ao fim dum certo tempo, por isso também demora-se tempo a aprender a andar, a nadar, a ir de bicicleta). Igualmente, a disciplina duma unidade social, quando se labuta no campo ou na cozinha porque ‘o ter que ser tem muita força’, contraria não apenas o cansaço mas também os eventuais apetites sexuais da química biológica. Mas à noite, o cansaço volta a impor as leis da selva e da gravidade, na horizontalidade das camas. E também a linguagem, e com ela o saber e a razão, obrigando à verdade entre parceiros e rivais, contrasta com a lei da guerra, que tem como objectivo impedir.

A aliança tribal das palavras e das coisas e a lei da verdade falada
6. Qual é o mecanismo, análogo da química e da sexualidade, que constitui as unidades sociais, que dá acesso a elas como seu indígena, participante no seu paradigma de usos? É a aprendizagem destes, que também se faz por proximidade e contacto entre quem sabe e quem não sabe, a linguagem servindo inclusivamente para aprender os outros usos, não apenas às crianças que nasceram, como também no caso de quem entra num novo emprego, que tem que aprender o que lhe é destinado fazer assim como os nomes e terminologia do paradigma. Porquê a lei da verdade? É certo que à mesa se pode falar daquilo que se está comer ou do bom vinho que se está a beber, mas não reside aí a potência da linguagem: ela reside, sim, na possibilidade de se falar de algo que se passou longe ou em tempos passados ou do que se planeia fazer nos dias seguintes, tudo situações em que quem fala testemunha daquilo que diz e que os ouvintes não saberão mas a que dão crédito. Testemunhar do que se diz, como muito mais claramente no que se escreve em carta ou e.mail que se envia, assim como dar crédito a esse testemunho, não é uma exigência demasiada que se faz a quem quer que fale ou escreva: faz parte estrutural da linguagem enquanto tal, que é assim que se a aprende (junto de alguém em quem se confia) e se pratica durante toda a vida. Faz parte do saber que se tem das coisas e das gentes do mundo e supõe que, encadeados com outras regras da gramática, nomes e verbos, adjectivos e advérbios, as palavras da língua trazem consigo do mundo aquilo que elas significam (polissemias incluídas). É nesta suposição que consiste a lei da verdade, não na de que todas as pessoas sejam sinceras ao falar ou escrever, já que podem mentir se souberem dar a parecer que falam verdade. É uma lei que também organiza o pensamento de cada um de nós: se ela nos escapasse, ficaríamos sem saber se estávamos loucos.
7. A linguagem, com os outros usos a que serve de receita, é um laço de aliança tribal decisivo, que estabelece genealogias ancestrais de quem se contam lendas e a quem se atribuem mitos e rituais que todos reconhecem em cerimónias tribais colectivas: assim ela de-cide, corta entre ‘nós’ e os estrangeiros com usos estranhos, seja que neles não se confia a priori, seja que nem sequer se compreende a língua, ou não se partilhe o sotaque regional. Sendo feita de confiança, a linguagem contraria a rivalidade, que por vezes será levada a substituí-la por gritos, que testemunham justamente da falta de crédito que se dá ao outro ou que se acha que ao outro lhe falta. Mas não só: ela torna possível estender formas de aliança a outros que se conheçam mal sem se ter que entrar na cabeça deles nem ficar apenas na mímica; ela está no coração de todas as tentativas de legislação para controlar rivalidades e crimes, na instituição do direito, e igualmente na da escola, como busca colectiva de sabedoria, na instituição da Academia e do Liceu para estudar e ensinar filosofia a quem soubesse geometria e não estivesse confiante no que tinha aprendido na sua tribo (“sei que nada sei”, lema ‘crítico’ de Sócrates).

A aliança da escola e dos livros e a lei da verdade escrita
8. Chegamos assim à quarta e última grande cena da evolução e história terrestres, a cena da inscrição, da escola e dos livros, onde a linguagem se opôs criticamente aos saberes ancestrais transmitidos, aos mitos e religiões ligadas ao poder económico e politico, tendo criado uma textualidade crítica da linguagem corrente feita de opiniões, uma lógica de essências: quer de ‘espécies’ (de Aristóteles a Lineu), quer de ‘qualidades’ (o bom, o belo, o justo, a virtude, etc., visando melhorar a ética e a politica). Definidas, essas essências são retiradas da instância de locução (eu / tu, aqui, agora) e dos paradigmas morfológicos dos verbos, colocadas numa nova lógica de verdade acima dos acontecimentos singulares, dos ‘acidentes’ suspensos pela definição. Neste texto gnosiológico, filosófico e científico, a linguagem duplamente articulada que já se situava acima da biologia, situa-se agora também acima da própria linguagem da habitação quotidiana, votada a compreender o universo, poucos humanos a entendendo, coisa de hiper-especialistas, o que se revelou numa primeira secularização de espirituais letrados durante o helenismo com platónicos e agostinianos. As universidades medievais foram possíveis por o cristianismo, ao tomar o poder pelas mãos de Constantino até Teodósio e exterminado os saberes concorrentes, ter antes sido recebido pelo discurso platónico (e depois aristotélico) e trazer assim a filosofia grega no seu bojo. É justamente a maneira como estas universidades medievais ofereceram à futura Europa um berço cultural de discussões gnosiológicas, fazendo circular textos dos Antigos no meio dos textos cristãos, foi esta articulação entre saberes de civilizações, separados por cerca de dez séculos o fim duma e o começo da outra, que constituiu uma cena original de inscrição, que continua a ser desconhecida por quem tem por ofício entender a história em que esta cena se inscreve (como Eric Jones e Yuval Harari no texto anterior deste blogue). Tomás de Aquino fez de Aristóteles o mestre-escola das universidades medievais e da Europa que, apesar de crítico, Galileu ainda venerava como “o Filósofo”: inventor do laboratório científico, que só foi possível pelo retorno nominalista do conhecimento aos singulares ter aberto à experimentação com medidas, à quantidade, como Newton dirá a renúncia dos modernos às “qualidades ocultas” dos antigos. Em resumo: Galileu introduz o tempo na geometria, tendo Newton acrescentado as forças da mecânica; o heliocentrismo permitirá que a astronomia e a nova física seja uma só ciência, a terra um astro entre outros planetas celestes (a grande oposição céu / terra aberta à desconstrução), as línguas vernáculas desde Descartes abrindo às ideias, pensamento sem língua, à razão universal.
9. As duas grandes invenções que transformaram o mundo técnico foram a máquina que, como os animais, reproduz movimentos que desafiam a gravidade por meios simplesmente mecânicos e vieram substituir o esforço muscular de humanos e animais de tracção, e a electricidade como corrente que se transforma noutras formas de energia – mecânica, térmica, luminosa, sonora, electromagnética – e portanto em possibilidade de transporte destas energias ao longo da geografia, criando redes eléctricas que tornaram possíveis grandes cidades, ultrapassando o isolacionismo geográfico das minas e fábricas da primeira vaga industrial. O historiador da técnica, S. Landes, reclamava que a máquina a vapor de Watt (e poder-se-ia acrescentar o dínamo do belga Gramme) foi inventada empiricamente, a respectiva teoria, a termodinâmica, tendo demorado um século a ser estabelecida: empirismo de historiador, já que Watt era profissionalmente um fabricante de instrumentos laboratoriais, só foi possível pelo contexto científico em que actuava (e de Gramme, cuja biografia desconheço, pode-se dizer que foram razões científicas que levaram Volta a inventar a pilha e portanto a corrente eléctrica). Este retorno espectacular, sob forma de técnica, da cena hiper-especializada da inscrição filosófica e científica à cena da habitação teve como consequência alçar também o nível dos usos, fomentando, após o êxodo rural, a alfabetização do conjunto das populações, com um aumento extraordinário de usos tecnológicos e burocráticos – a classe média –, antes da invenção das “correntes fracas” que permitiram a sua transformação em números, letras, desenhos, fotos e fotogramas cinematográficos, tudo ‘grafias’, isto é, inscrições, que vieram a tornar possível a grande rede cibernética com e sem fios que resultou com a rede de transportes de mercadorias e pessoas, na globalização que está ameaçando essa classe média que as “correntes fortes” tinham fomentado. Não só os seus empregos, mas também os processos de aprendizagem: filósofos e cientistas europeus foram sempre grandes leitores dos livros ‘difíceis’ que hoje estão na mó de baixo, fora os manuais escolares. O que muito impressiona é como esta história fabulosa da cena da escrita gnosiológica ocidental veio desaguar na multiplicação indefinida dos médias, imagens, músicas e muita conversa, e nas suas consequências  anárquicas nas aprendizagens.

A aliança técnica da civilização global
10. É sem dúvida a disciplina de leitura de textos abstractos por definição que claudica, nem tanto por libertinagem erótica ou afrodisíaca, mais pela saciedade trazida à curiosidade pelas imagens e as músicas, como se tratasse duma forma de embriaguez sonora-visual que melhor se encaixa no mecanismo da aprendizagem, tal como Freud permite perceber a lógica que chamou de sublimação: as energias libidinosas, nas mulheres desligadas de períodos de cio, foram previamente deslocadas para o esforço de falar com o cuidado de distinguir as letras a tornar-se automático (pulsão parcial oral) e para a higiene implicando retenção das fezes (pulsão parcial anal) antes de se tornarem eróticas na puberdade (pulsão genital). Ora, durante muitos séculos esta sublimação cristalizou-se no único média existente, os livros manuscritos e depois impressos, sendo os seus cultores obviamente minoritários. E assim hoje parece continuar, os livros gnosiológicos tornando-se coisa de especialistas que tenham conseguido ser sublimados por disciplina árdua, aquilo a que renuncia a maioria dos que frequentam as universidades.
11. Estas duas grandes redes, máquinas e iluminação, por um lado local, e cibernética globalizante parece constituírem a aliança técnica da civilização global contemporânea, de que as economias e as famílias e o respectivo governo pelo Estado serão a imensa movimentação com motor monetário regido pela lei da guerra capitalista na cena da habitação ideológica, isto é, de ‘ideias soltas’ do contexto da habitação local que reactivam as guerras do campo político e das crises económicas e financeiras. O que se chama “sociedade do conhecimento” é o desaguar da cena da inscrição na da habitação sob forma de temporal permanente. Como situar a lei da verdade aqui? A maneira como a justifiquei no § 6 vale para o uso quotidiano das línguas e nesse ponto vale igualmente para a escola e para as suas discussões em torno de textos gnosiológicos, a critica dos erros fazendo parte essencial dessas discussões. Mas o seu carácter histórico, cada texto sendo escrito no seu contexto, relativiza estruturalmente a verdade gnosiológica, entre empiristas e idealistas, por exemplo, ou entre pensadores da escola anglo-saxónica e fenomenólogos actuais. É a técnica, enquanto resultante das longas discussões e definições filosóficas e científicas, acima dos acontecimentos da habitação quotidiana, que fornece a grande validação da lei da verdade gnosiológica: só que a relação dos laboratórios científicos e os laboratórios de engenharia faz-se exclusivamente através de medidas e equações matemático-físico-químicas, aquém dessas discussões e interpretações teóricas, já que os conceitos e oposições metafísicas que pautaram essas discussões não têm nenhuma pertinência para descrever uma máquina ou a electricidade. Seja um exemplo: quero crer que se pode dizer que a discussão entre nominalistas e realistas no final da Idade Média, da vitória daqueles tendo resultado o projecto científico, veio a culminar na biologia molecular que, de certo modo, deu razão as realistas vencidos: o ADN é algo como a ‘essência’ duma espécie em cada um dos seus indivíduos. História duma verdade torta, digamos.

Conclusão triste
 12. Resumindo e concluindo. Porquê são leis? A dificuldade de estabelecer uma relação entre aliança (é uma lei?) e as leis de circulação das quatro grandes cenas do universo terrestre surge logo na da gravitação, já que nela a aliança é efectuada pelas três forças de atracção a que a da gravidade preside, se se pode dizer: são as moléculas (que supõem forças nucleares e várias electromagnéticas) que a nível macroscópio formam graves que são retidas pelas forças de gravidade até aos astros de graves feitos. Não parece haver diferença entre aliança e força da gravidade: é a lei da gravitação, que domina a cena dos astros entre eles e a composição de cada um deles em seus graves, que faz a aliança, e não se saberia como nem porquê não fora a descoberta da expansão do universo como inércia resultante... de quê? Do que ironicamente Fred Hoyle chamou “grande estrondo” pois que sem som nem luz: o big Bang é o não saber actual. A relação da cena da gravitação com a da alimentação fez-se pela invenção de células, agregados de moléculas orgânicas (alimentando-se) capazes de movimento próprio, com autonomia relativa em relação à força da gravidade. A aliança que constitui os organismos é a maneira como as respectivas anatomias são determinadas pela lei da selva[5] de maneira a assegurarem a alimentação de todas as células de todos os órgãos dessa anatomia, já que desde o início só há crescimento se houver essa alimentação. A lei da selva é inerente à aliança constitutiva como capacidade de sobrevivência, de reprodução, segundo Darwin também de evolução. É este movimento, que resulta da anatomia alimentada e falta às pedras e às águas do mar, que se sobrepõe à gravidade, a que todos os vivos estão todavia sujeitos enquanto ‘graves’, estado a que virão enquanto cadáveres, toda a vida alimentar sendo um adiamento dessa inércia final. É a disciplina imposta sobre as regras bioquímicas da alimentação e da sexualidade que tornou possível a formação de tribos razoavelmente populosas através de unidades locais de habitação (com dimensão dependente das condições ecológicas), primeiro na selva, depois dominando a sua lei pela agricultura e criação de gado. A lei da habitação consiste justamente na posição dessa disciplina (de que o interdito do incesto é a face mais visível) pelo paradigma dos usos, que constitui a aliança entre os indígenas de cada unidade local que se prolonga pela troca de filhas como aliança de parentesco que liga toda a tribo, celebrando-se os antepassados comuns. Ora bem, esta aliança tribal, dela mesma parece poder reproduzir-se quotidianamente segundo as rotinas transmitidas e aprendidas. Tudo se passa como se a lei da guerra, quer rivalidades internas quer hostilidades contra outras tribos, fosse um excesso de habitação sobre o biológico que recusa a monotonia e busca movimentos ‘acima da animalidade’, como os mitos irão marcando. Esse excesso proviria todavia da líbido sublimada, em busca de horizontes que a linguagem abrisse, quanto mais não seja do que ser-se mais valente do que os vizinhos de outra tribo. A lei da guerra parece ter-se imposto sempre como o motor das transformações sociais a partir de insatisfações com aquilo a que o jovem acede como adulto. Mas por outro lado, foi a própria lei da guerra que se impôs como insatisfatória e gerou as escritas da cena da inscrição do Ocidente, nomeadamente jurídicas. As primeiras escolas de experiências espirituais no primeiro milénio antes da nossa era, Buda, Confúcio, Zaratustra, Profetas bíblicos, foram apelos a conversões éticas, desligação de usos de destaque na posição social, que na Grécia deram lugar também à invenção da definição em aliança com a geometria, ética com politica e depois ontologia em Platão, lógica e ciências em torno da ousia na Physica de Aristóteles, mistura com o cristianismo, espiritualidade platónica agostiniana e intelectualidade aristotélica tomista, singularidade nominalista, astronomia que faz da Terra um astro do céu, Copérnico, Galileu, Newton[6], filosofia com geometria, tempo e mecânica, essências e ideias, máquinas e electricidade. Heróis da lei da verdade na composição de textos inovadores difíceis, que foi igualmente verdade critica do que se recebera: aliança e crítica, tal a lei da verdade.
13. E o que entristece é ver como o saber desta epopeia europeia da inscrição, que conheceu nas Luzes do século XVIII, antes da máquina a vapor e da electricidade, a grande promessa histórica da possibilidade do progresso de toda a humanidade, se manifesta hoje com poluições alarmantes para o próprio futuro do planeta, como esse saber da dita tecnocracia – os financiamentos de tudo o que é ciência e técnica estão sujeitos aos impropriamente chamados “mercados financeiros”[7] nas mãos de gente que se preocupa apenas com décimas de milhões de dólares – ignora, de ignorância de pensamento, que é a herdeira dessa promessa traída. Tanta paixão por compreender, tanta dignidade de pensadores e inventores, abandonadas à ganância dos guerreiros do capital. Que tristeza!



[1] No outro blogue, filosofia com ciências, 11 janeiro 2016.
[2] Também no blogue filosofia com ciências, 23/11/2015.
[3] Sem ter dado atenção às instituições que fabricam, vendem, reparem e seguram automóveis, que fazem parte da proposta do final do capítulo 2 do Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida.
[4] Em diálogo com Élizabeth Roudinesco, De quoi demain…, Fayard/Galilée. 2001
[5] Tal como a lei do tráfego determina as anatomias mecânicas de automóveis, motos e camiões.
[6] Que não se leram uns aos outros! Imagine-se Galileu, ressuscitado 43 anos depois de morrer, a ler Newton: esfregaria os olhos de contente ou teria alguma dificuldade em entender? Newton que, por sua vez, um século mais tarde não entenderia nada da newtoniana Crítica da razão pura.
[7] São apenas uma franja dos mercados propriamente dittos, a franja dominante.

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