segunda-feira, 26 de março de 2018

Um buraco na história da humanidade




1. O livro chama-se Sapiens. Une briève histoire de l’humanité, versão francesa da versão inglesa do original hebreu do historiador israelita Yuval Noah Harari (2012) e tem quase 500 páginas que se lêem muito bem, com bons exemplos em seus contextos muitos dos quais ignorados do grande público, bons contastes entre épocas diferentes para sublinhar parecenças ou diferenças entre épocas largas de história, ou seja, aprende-se muito e mesmo as irritações filosóficas que tive aqui e ali acabaram por me agradar, como direi a propósito do ‘buraco’ anunciado pelo título. A linguagem é clara, apesar do empirismo radical e das lacunas devidas à ‘brevidade’ duma história da humanidade, que me lembre o nome de Platão nunca aparece, e na parte final da ‘crendice’ nos projectos dos biólogos e informáticos igualmente empiristas radicais, que só sabem, uns de bioquímica e outros de sílica e digitalização. O livro consta de quatro partes: a revolução cognitiva, a revolução agrícola, a unificação da humanidade e a revolução científica.
2. A revolução cognitiva conta como as várias outras espécies homo, neandertal, erecto e outros, se extinguiram há cerca de 30000 anos, com a possibilidade de que o nosso sapiens tenha contribuído para isso. Entre os anos 70000 e 30000, já com fogo e utensílios vários bem anteriores, a revolução cognitiva é atribuída à invenção das línguas, de que Harari destaca três vantagens: poder falar de coisas que aconteceram longe, no espaço e no tempo; permitir conversar de tudo e de nada, isto é, ser um laço social, tribal; capacidade de ficção, de poder falar de coisas que não existem, lendas, mitos, religiões. É nesta terceira que o empirismo radical se anuncia: porquê decide o historiador que essas coisas não existem? A partir do seu ateísmo? Este faz parte da metodologia do historiador? Não creio que historiadores ou antropólogos encontrem alguma vez indígenas que digam que aquilo em que acreditam existe ou não à maneira dos ocidentais; se vasculharem bem, o que encontrarão provavelmente sempre é que eles acreditam nessas narrativas e nesses rituais porque os aprenderam dos seus antepassados, os quais também aprenderam de outros que aprenderam, sem se encontrar nunca nenhuma ‘origem’ de mitos; tal como nós aprendemos a falar sem saber gramática ou aprendemos na escola que a terra é que gira em torno de si mesma e o sol está como que parado num dos focos das elipses das trajectórias dos planetas, a grande maioria de nós não sabendo demonstrar essa crença aprendida; além disso, encontrarão que, quer a língua em que conversam, quer os rituais e mitos que jogam em festas, guerras, nascimentos e funerais, são laços que integram todos os que são da tribo e excluem os que não são. Ou seja, a aprendizagem como mecanismo de reprodução social é totalmente ignorada nas cinco centenas de páginas de descrição histórica. Com uma consequência impressionante, à vista da imensa bibliografia, livros e artigos de investigação, quase sempre anglo-saxónica, é certo: o capítulo que segue esta tripla caracterização da linguagem, intitulado “a lenda de Peugeot”, explica que ‘Peugeot’ não existe, é uma lenda, como o Estado moderno, a Igreja medieval, a cidade antiga, a tribo arcaica ou o sistema judiciário não existem, nada disso se vê, apalpa ou cheira: tratando-se de aglomerados acima de 150 indivíduos, são produtos imaginários, só ‘existem’ sob forma de mitos contados de boca em boca. “Nenhuma destas coisas existe fora das histórias que pessoas inventam e contam umas às outras; não há deuses no universo, nem nações, dinheiro, direitos humanos, nem leis nem justiça fora da imaginação comum dos seres humanos”. “Peugeot é uma criação da nossa imaginação colectiva. Não se a pode mostrar apontando com o dedo; não é um objecto material; [...] existe como ficção jurídica do tipo ‘sociedades anónimas de responsabilidade limitada’. Empirismo nominalista, à maneira de Occam – “só existem os singulares”, a relação de ‘pai’ só existe como ‘nome mental’[1] – ou de Margaret Thatcher, “a sociedade não existe, só existem homens e mulheres”. O que é surpreendente é que os nomes das línguas não sejam suficientes para  que algo que liga humanos possa ‘existir’ sem ser ficção; o imaginário é uma noção alheia ao ‘colectivo’, releva da subjectividade individual, ao invés das palavras, que são iguais para todos os falantes e também estruturam o psiquismo de cada um deles.
3. A revolução agrícola é introduzida com o seguinte título: “a maior fraude da história”. Ao espanto inicial, sobrevem a explicação: a vida dos colectores caçadores na selva era muito melhor do que a dos camponeses, o que lembra o que contava Pierre Clastres algures em La société contre l’État, de indígenas do Brasil que receberam machados metálicos, dez vezes mais eficazes do que os seus de pedra, e que em vez de cortarem dez vezes mais no mesmo tempo, cortaram a quantidade habitual em dez vezes menos tempo, ganhando tempo para se enfeitarem e divertirem, ou a caracterização por Marshall Sahlins das sociedades arcaicas como sociedades de abundância. Nesta lógica, Harari dará sempre lugar na sua síntese histórica aos seus aspectos mais terríficos: as escravaturas, quer as antigas quer sobretudo as de africanos na Europa e nas Américas, a dizimação (literal, reduzidos a 10%) dos indígenas americanos nos primeiros 100 anos, o proletariado inglês dos começos da industrialização do século XIX, mas também os animais que são hoje em dia tratados de forma crudelíssima em vista da nossa alimentação. Aqui, não posso senão tirar-lhe o chapéu! Terá direito a um capítulo final inédito: enquanto historiador, interroga-se sobre a felicidade dos humanos e o sentido da vida nesta época da história.
4. A unificação da humanidade tem uma tese que me pareceu original: a de que foram os impérios que conduziram a história para a unificação actual, além da moeda e do mercado (com um excelente resumo do mecanismo da moeda e da confiança bancária) e das religiões. O “papel histórico crucial da religião foi o de dar uma legitimidade sobre-humana às frágeis estruturas sociais”, quando se tratou de crenças universais e missionárias. Além do que se chama habitualmente ‘religião’, Harari prolonga a noção às grandes ideologias modernas: liberalismo, comunismo, capitalismo, nacionalismo, nazismo, distinguindo religiões teístas e religiões humanistas e nestas incluindo o budismo (sem deuses).
5. A revolução científica leva-nos ao extraordinário buraco deste empirismo de sociedades à base de “imaginários comuns”, que foi o que me atraiu para escrever este texto. O autor começa por contrastar a ciência moderna (com um belo capítulo sobre a invenção das estatísticas) que começa pela ignorância de que os humanos não conhecem, as respostas às questões mais importantes, enquanto que, segundo ele, “as tradições pré-modernas do saber como o Islão, o cristianismo, o budismo e o confucionismo [que] afirmavam que já se sabia tudo o que era importante saber sobre o mundo”. Esta frase, com um conteúdo que aparece outras vezes, diz a ignorância do historiador: a filosofia não aparece nestas “tradições pré-modernas do saber”, como se vê quando algumas páginas adiante se põe a questão “porquê a Europa?”. A questão está longe de ser nova. Por exemplo, o historiador Eric Jones, O milagre europeu, Gradiva, compara a China, a Índia, o Islão otomano e a Europa, que terão um equivalente estádio de civilização em 1400, com alguns argumentos comparativos interessantes – a não existência de impérios na Europa como os outros, os quais limitavam os ganhos dos seus mercadores, as cidades livres que estiveram na origem do comércio intra-europeu, a planície que vai da França aos Urais coberta de floresta – mas termina por não encontrar argumento histórico que explique que, 400 anos mais tarde, a Europa irrompa como civilização tecnológica e capitalista, e por resignar-se ao ‘milagre’. Aqui esta ‘ignorância’ que desembocou em ciência, como que ‘inventada’ pelos cientistas sem antecessores, explica-se pela aliança com os ‘impérios’ marítimos em que se ‘conquistam’ territórios e saberes geográficos, zoológicos e botânicos sobre eles. Mas quando chega a 1800, aos comboios a vapor e a tecnologia que vem com eles, à questão de saber porque é que a China e a Índia não foram capazes de construir logo máquinas a vapor como as europeias, encontra a seguinte explicação: “nem Chineses nem Persas tinham falta de invenções técnicas como as máquinas a vapor (que podiam ser livremente copiadas ou compradas); o que lhes faltava, eram os valores, os mitos, o aparelho judiciário e as estruturas sócio-políticas, cuja formação e maturação levaram séculos no Ocidente e que era impossível de copiar e de interiorizar rapidamente. [...] desde os alvores dos tempos modernos que a Europa desenvolvera a ciência moderna e o capitalismo, que os Europeus tinham ganho o hábito de pensar e de se conduzir de maneira científica e capitalista antes mesmo de gozarem duma vantagem técnica significativa”. O texto dá a ver que Harari manifestamente só conhece a ‘ciência’ de longe, caracterizando-a pelo “lugar central da observação e da matemática”: ora, esta disciplina de cálculo exacto só ganhou este nome no século XIX, nos clássicos era chamada geometria, que já Platão considerava aliada da filosofia na Academia; quanto à ‘observação’ é o método próprio das ciências aristotélicas, que o que ignoravam era a experimentação e a sua mensuração laboratorial, a ciência inventada no século XVII. A grande diferença entre a Europa que renasceu entre 1450 e 1520 e todas as outras grandes civilizações, foi que só ela teve antes de se formular como civilização, recebeu um berço cultural vindo da Antiguidade e da discussão medieval de textos filosóficos, lógicos, jurídicos, de medicina, além de teologia.
6. Eis o buraco: para Harari, por certo que a metafísica releva do imaginário, do que não existe, mas também coloca “os valores e os mitos” com “o aparelho judiciário” sem mencionar o direito romano. O que ele ignora, tal como Eric Jones e provavelmente a historiografia anglo-saxónica que ele cita abundantemente em notas de pé de página, não é apenas a filosofia, misturada ao cristianismo medieval: ignora as universidades medievais, a invenção da imprensa e o comércio dos livros, a Enciclopédia e as universidades e colégios! Nada disto faz parte da história que ele conta, muito menos históricas  do que os livros e as escolas são as palavras que se ensinam e aprendem, veja-se ou não o que elas dizem! Ora é neste buraco que tenho trabalhado, como mostro sobretudo no e.livro Da Natureza à Técnica (construção, desconstrução e reconstrução), edição de autor na Leya. Não lhe passa pela cabeça que a escrita alfabética, a invenção socrática da definição de essências [que claro que não ‘existem’ à mão de semear] (e da ‘ignorância’: “sei que nada sei” é o que lança a filosofia que tornou possível os laboratórios científicos!) e da argumentação lógica por Aristóteles, em seguida a da geometria por Euclides, que tudo isso – e também a alma imortal que também não ‘existe’, mas foi extremamente  eficaz para induzir o individualismo ocidental, ignorado pelas outras civilizações – fizesse parte do que Newton, citando um medieval, chamava os gigantes aos ombros dos quais ele se sentava. Ou seja, a sua concepção da ficção de coisas que não existem como o mais importante da “revolução cognitiva”, e provavelmente o papel do “imaginário comum” a sobrepor-se à existência da companhia Peugeot – de quem todos os que nela trabalham e lhe compram carros falam constantemente, sem necessidade de nenhum impossível, por definição, imaginário comum a milhões de pessoas – é que o impede de ‘ver’ o buraco da escrita que existe transmitindo-se por aprendizagem através de escolas e de livros. Apetece pensar que se trata dum exemplo (inesperado para mim) do que Heidegger chamou ontoteologia: este senhor lê ‘vendo e mexendo’ nas coisas lidas, discernindo nesse referente real o que existe e o que não existe, como um ‘sujeito’ diante de objectos. Para um ‘ateu’, deveria ser terrível ganhar consciência dessa sua posição herdeira da teologia.
7. Mas que esta brincadeira não afaste leitores: vale muito a pena lê-lo, aprende-se imenso.





[1] O nominalismo é a única corrente filosófica que refere a linguagem no título.

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