1. Pela primeira vez vi referida uma corrente de pensamento de cientistas e filósofos
que escrevem sobre “ciência pós-materialista”, denunciando a ciência europeia
ocidental a partir dos séculos XIX e XX como “materialista”. Foi um texto no Público de 3/2/2018 de Leonor Nazaré que cita, além de
dois livros, um em francês e outro em inglês, um “manifesto para uma ciência
pós-materialista” de 2014, que se encontra na Web tanto em francês como em
inglês. A autora reclama-se desse movimento para criticar o dogmatismo de David
Marçal (não fala do seu comparsa Fiolhais) contra tudo o que não seja medicina
ocidental da segunda metade do século XX, no caso a medicina tradicional
chinesa, cuja licenciatura foi aprovada recentemente pelo Ministério da
Ciência, sem que no texto dos inquisidores se perceba se alguma vez tentaram
saber em que é que consiste essa ‘medicina’ que não é ‘ciência’. Nem se os vê
preocupados, com o que Leonor Nazaré lembra de passagem: “não me alongarei em
relação à componente financeira avassaladora associada às indústrias
agro-química e farmacêutica mundiais, na dependência da qual 25.000 lobbyistas
trabalham diariamente em Bruxelas, no sentido de inverter, impedir, ludibriar,
adiar qualquer esforço legislativo que vise proibir, por exemplo, os
perturbadores endócrinos e, de forma geral, os mais de 1500 produtos tóxicos e
cancerígenos cuja utilização é LEGAL no que comemos, respiramos, habitamos,
cultivamos, medicamos, etc. (cf. Stéphane Horel, Intoxication. Perturbateurs
endocriniens, lobbyistes et eurocrates: une bataille d’influence contre la
santé,
2015)”.
2.
Se há pois boas razões para se
argumentar contra o dogmatismo de muitos cientistas, da física à bioquímica e
neurologia (o resto não é costume achar-se ser científico, a linguística estrutural,
por exemplo), a critica de que essas ciências seriam ‘materialistas’ e de que
se possa querer uma ciência pós-materialista (quando se trata de neurologia e
psicologia face a fenómenos paranormais e espirituais) é algo que merece
reflexão, já que se baseia na oposição entre material e espiritual, típica do século XIX positivista, como se o interesse pela dita
‘espiritualidade’ implicasse anti-materialidade.
3. A primeira questão é esta: a
física é ‘materialista’? O argumento é aduzido a partir da mecânica quântica,
da necessidade de ter em conta a interacção do observador para decidir da
mensuração das partículas. Ora, no que diz respeito à física clássica dos engenheiros,
à química e à bioquímica, a questão não se põe dessa maneira, nunca soube de
cientistas destas áreas que reclamassem esta característica quântica para as
suas questões laboratoriais. Por um lado, o motivo de ‘medida’ e de ‘dimensões’
susceptíveis de medidas só tem sentido em relação a coisas que chamamos
habitualmente ‘matéria’, dimensões a que se pode atribuir convenções de
sistemas de medida a partir duma unidade (centímetro, grama, segundo, no que no
meu tempo de liceu e IST se chamava o sistema CGS). Mas por outro lado, como
ilustra extraordinariamente bem o balde de água com que Galileu media o tempo em “diferenças e proporções”
de peso de água, são os resultados dessas medidas que se prestam às equações
físicas de tipo algébrico, seja qual for o exemplo material da experimentação laboratorial:
não é a matéria – enquanto
realidade substancial, bolinha de pedra ou de ferro que desliza pelo plano
inclinado de madeira – que é conhecida
cientificamente, mas as regras de
movimento, tipo lei da gravidade, que as equações e as suas variáveis preenchidas
com os resultados da experimentação permitem conhecer de forma universal,
científica. Aqui, o que faz o observador enquanto medidor não é relevante, a
não ser a exigência de que não erre, foi por isso que o problema da mecânica
quântica provocou um alvoroço tão grande, mas sem reflexos retroactivos sobre a
física de dimensões macroscópicas: o critério nesta, que está na base da maioria
da engenharia e tecnologia actuais, é ‘universal’ para qualquer laboratório,
independentemente da subjectividade dos cientistas. Isto não é ‘materialismo’,
é exactidão científica, que
não joga da mesma maneira noutras ciências como a linguística estrutural ou
outras ciências sociais, nem sequer na economia. Foi esta exactidão que levou
Heidegger a dizer que “a ciência não pensa”, indo ao encontro de a ciência ser
estruturalmente laboratorial, mensuração e matemática algébrica adequada. Onde
o cientista pensa – usando linguagem de palavras articuladas em frases – é
quando propõe novas maneiras de experimentação ou de medir, ou novas hipóteses
teóricas, ou quando discute paradigmas. Nada disso é ‘materialista’ no sentido
pejorativo da palavra: a intervenção da matemática – que mede e conta, isto é
faz operações com coisas materiais, não soma ‘ideias’ nem sequer ‘imagens’ –
joga com “diferenças e proporções”, as quais também não são coisas materiais,
nem os números, nem sequer as palavras, diferenças entre sons ou riscos que
referem ‘coisas’, aliás tanto materiais como ideais. Já o marxismo teve
dificuldade em caracterizar a ciência e as línguas como ‘materialistas’ e não
como ‘ideologia’ (Estaline decidiu no debate soviético que a língua não
pertence à super-estrutura).
4. Não é pois por aí que o gato vai
às filhozes, as ciências, laborando com coisas materiais, não são
materialistas. A meu ver, a grande crítica que as ciências em geral merecem e
sobretudo a concepção que os cientistas delas têm, tem a ver com o ‘fora do
laboratório’: teoricamente, os resultados científicos só são válidos nas
condições de determinação criadas pelos laboratórios, os quais são necessários porque justamente na
realidade quotidiana reina a indeterminação, vários tipos de efeitos jogando de
forma casual ou pelo menos aleatória. Há, que eu saiba, duas grandes excepções,
bastante opostas: a astronomia, cujo laboratório de telescópios enfrenta
directamente a cena astral e pode calcular com exactidão as suas causalidades
sem interferências terrestres significativas, e os aceleradores de partículas
em que o laboratório não se distingue da cena em que elas explodem, o que provocará
provavelmente os limites da
mecânica quântica (não sei que chegue para garantir esta afirmação). Ora, é
fora do laboratório que se situam as poluições todas e os efeitos secundários,
tudo resultante de lacunas laboratoriais inevitáveis, isto é, de experimentações
não feitas além das que foram feitas, das que as técnicas confirmam a exactidão
científica. Que os gases dos automóveis provoquem doenças respiratórias ou
efeitos climáticos nocivos, que o que cura certo tipo de células tenha efeitos
catastróficos noutros tipos, etc. Fora do laboratório e de certas rotinas, os
efeitos de factores com causas diversas congregam-se em acontecimentos, que são possíveis, isto é, não determinados,
imotivados, desconhecidos pelas ciências fora dos seus laboratórios. Ora, o
dogmatismo dos cientistas vem de não terem em conta a importância do laboratório
para as verdades que eles descobrem e de transporem indevidamente essas
‘verdades’, uma concepção
determinista para a realidade
em geral, o que é mil vezes pior
do que um pretenso ‘materialismo’.
5. Do tal manifesto para uma ciência
pós-materialista[1] (do seu §
15) retiro alguns pontos que merecem consideração. A afirmação de que as
ciências reduzem o ‘espírito’, que um pouco adiante é exemplificado pela dupla
vinda da psicologia racional clássica “vontade / intenção”, é perfeitamente
correcta. Qualquer ciência só tem um mínimo de cientificidade se reduzir a
subjectividade do cientista, mas mais além, a necessidade estrutural do
laboratório implica a redução
de tudo o que não corresponde às dimensões retidas para serem medidas do
fenómeno. Para dar um exemplo fora da física e das químicas, a linguística
estrutural reduz a Acústica e a Fonação fisiológica nas operações de comutação
com as quais constrói os seus paradigmas científicos (fonológicos, morfológicos,
sintácticos, lexicais). Nenhuma ciência pode ser retida, na tradição ocidental,
sem esta redução, o que significa que os ensaios de conhecimento das realidades
espirituais ou criam uma ciência própria (teológica ou agnóstica, não vejo o
que possa ser) ou procedem apenas a argumentação filosófica, não científica.
6. Dito isto, há uma série de “fenómenos psi” que
merecem todo o interesse, nomeadamente a telepatia, fenómeno que muito me intriga,
claramente atestado frequentemente e de difícil explicação em termos das
ciências vigentes, ou ainda as “experiências de morte iminente” com
experiências fora do corpo durante uma paragem do coração, ou experiências
espirituais profundas durante essas paragens, donde se conclui que o espírito é
separado do cérebro, manifesta-se através dele mas não é produzido por ele;
ainda se citam, sem que se possa duvidar, casos de “médiums que comunicam mentalmente
com pessoas falecidas e obtêm informações muito precisas delas”, sugerindo
sobrevida da consciência após a morte e a existência de realidades que não são
de ordem física; acrescenta-se que “espíritos individuais podem aparentemente
unir-se” o que “sugere a existência dum Espírito envolvendo-os”. Os dois casos
obviamente ‘metafísicos’, a imortalidade do espírito e a existência dum
Espírito divino, são denunciados enquanto tais pelo verbo ‘sugerir’, que parece
afastar qualquer hipótese de ‘ciência’. Mas a telepatia e os médiums põem uma
questão muito interessante, a de saber se eles exigem a autonomia duma instância
‘espiritual’ relativamente ao cérebro. O que é difícil é que nos laboratórios de neurologia põe-se também
a questão da relação entre a análise estritamente bioquímica-biológica das redes neuronais e o ‘conteúdo’ dos
neurónios a que só o próprio tem acesso, o que Damásio chamou ‘mente’: entre
análise neurológica laboratorial e o discurso subjectivo da mente, contado pelo
próprio, há um salto metodológico que julgo intransponível, o que deixará lugar
para uma concepção filosófica espiritualista, mas não vejo como ‘científica’.
7. Argumentarei por isso duma forma indirecta. Há
um caso extraordinário, mencionado noutro sítio da Web[2],
dum tsunami na Indonésia em 2005 em que morreram 150 mil pessoas e em que não
se encontraram praticamente carcaças de animais – elefantes, javalis, búfalos,
leopardos – que pressentiram a vinda do mar e fugiram para as serras. Um
biólogo, especialista em ecologia e comportamento animal, explica que não se
trata dum “sexto sentido”, mas que “os animais teriam sentidos mais desenvolvidos
do que os nossos para detectar certos sinais premonitórios: uns ouvirão uma
gama maior de sons, outros perceberão melhor as modificações da pressão
atmosférica ou do campo magnético; em tudo o que é vibratório, tremores de
terra ou ondas sonoras, os animais têm aptidões que nós não temos ou já não
temos” (Hervé Fritz, CNRS). Ora, o ‘já não temos’ sugere que tinham os nossos
antepassados vivendo na selva e devendo defender-se dos perigos desta mas que
se foram perdendo com as novas tarefas trazidas pela agricultura e sobretudo
pela vida citadina. Então, os tais fenómenos psi, telepatia e médiums (para não
falar de levitação), corresponderiam a gente que guarda, sabe-se lá porquê ou
como, algumas possibilidades arquétipas, se dizer se pode, prévias à
aprendizagem da linguagem provavelmente; isto seria o caso dos “espíritos
individuais [que] podem aparentemente unir-se”, o que me lembra uma proposta de
José Gil em As metamorfoses do corpo, a do “corpo comunitário” das tribos vivendo na selva, procurando
alertar-nos para comunidades muito diferentes do individualismo exacerbado da
contemporaneidade. “O corpo de que falam os selvagens não é o ‘corpo’
individual, porque este é em cada instante investido dos outros corpos da
comunidade – seja pela fala, pelos gestos, pela expressividade afectiva, pelos
jogos, por toques, carícias [...] Em cada comunidade primitiva o laço que une
todos os membros funda-se neste corpo comunitário [...] É onde se jogam partilhas
profundas: as funções mais imediatas, mais vitais – como a nutrição, a reprodução,
as excreções, as percepções – canalizam e reproduzem o Mesmo em que cada corpo
individual, fragmento e transmissão do corpo comunitário, compõe e analisa os
seus ritmos deixando-se atravessar pelos ritmos de todos os outros [...] É ele
que, oferecendo à comunidade a sua coesão, abre o espaço em que se elabora cada
singularidade, o espaço da individuação dos corpos, quer dizer dos ritmos
singulares. [...] As formas de educação que se encontram nas sociedades primitivas
mostram como desde muito pequenos as crianças entram em relação com uma
multidão de outros corpos, são manipulados por múltiplas mãos, balançados por
dez mulheres, confrontados com mil imagens parentais, identificados a mil
outras crianças e adultos. [...] A criança aprende os seus próprios ritmos,
aprendendo a modelar em si os dos outros. [...] em vez de implicar uma
atomização como nas sociedades ocidentais, o efeito de singularização supõe uma
coesão social extremamente potente”[3].
8.
A hipótese muito geral a tirar seria
a de que médiums e gente capaz de telepatia seriam pessoas que guardam algo
desta potência comunitária, desta intuição de outros, da capacidade de uma
certa ‘comum unidade’ que poderá parecer-se com ‘relação espiritual’, sem ter
implicações metafísicas nem ser ‘materialista’, esta oposição não tendo aqui
lugar. Como dizer esta espiritualidade?[4]
O motivo releva no Ocidente da tradição cristã, em que predominou a perspectiva
platónica, opondo-a à matéria, como é o caso no manifesto em questão. Só vejo
como alternativa o sopro judaico que em Orígenes aparece platonizado como ‘espírito’ (“hipóstase
intelectual”), tenha sido ele como creio provável a fazê-lo, ou já antes
Clemente de Alexandria ou outro filósofo cristão anterior. Seria digno dessa
perspectiva o que releve de acontecimentos que escapem ao domínio dos outros humanos, ao poder do dinheiro, ou ao poder social em
instituições ou ao poder politico ou ao poder dos saberes estabelecidos,
mediáticos, científicos, eclesiásticos, académicos ou que sejam. É fácil dar
exemplos, além dos espirituais anónimos, mulheres e homens que possamos
conhecer, os clássicos Mahatma Gandhi, Martinho Lutero King, o nosso Aristides
Sousa Mendes, Francisco, que está a renovar espiritualmente aos nossos olhos um
lugar de poder.
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