segunda-feira, 5 de março de 2018

Ciência, pós-materialismo e espiritualidade



1. Pela primeira vez vi referida uma corrente de pensamento de cientistas e filósofos que escrevem sobre “ciência pós-materialista”, denunciando a ciência europeia ocidental a partir dos séculos XIX e XX como materialista. Foi um texto no Público de 3/2/2018 de Leonor Nazaré que cita, além de dois livros, um em francês e outro em inglês, um “manifesto para uma ciência pós-materialista” de 2014, que se encontra na Web tanto em francês como em inglês. A autora reclama-se desse movimento para criticar o dogmatismo de David Marçal (não fala do seu comparsa Fiolhais) contra tudo o que não seja medicina ocidental da segunda metade do século XX, no caso a medicina tradicional chinesa, cuja licenciatura foi aprovada recentemente pelo Ministério da Ciência, sem que no texto dos inquisidores se perceba se alguma vez tentaram saber em que é que consiste essa ‘medicina’ que não é ‘ciência’. Nem se os vê preocupados, com o que Leonor Nazaré lembra de passagem: “não me alongarei em relação à componente financeira avassaladora associada às indústrias agro-química e farmacêutica mundiais, na dependência da qual 25.000 lobbyistas trabalham diariamente em Bruxelas, no sentido de inverter, impedir, ludibriar, adiar qualquer esforço legislativo que vise proibir, por exemplo, os perturbadores endócrinos e, de forma geral, os mais de 1500 produtos tóxicos e cancerígenos cuja utilização é LEGAL no que comemos, respiramos, habitamos, cultivamos, medicamos, etc. (cf. Stéphane Horel, Intoxication. Perturbateurs endocriniens, lobbyistes et eurocrates: une bataille d’influence contre la santé, 2015)”.
2. Se há pois boas razões para se argumentar contra o dogmatismo de muitos cientistas, da física à bioquímica e neurologia (o resto não é costume achar-se ser científico, a linguística estrutural, por exemplo), a critica de que essas ciências seriam ‘materialistas’ e de que se possa querer uma ciência pós-materialista (quando se trata de neurologia e psicologia face a fenómenos paranormais e espirituais) é algo que merece reflexão, já que se baseia na oposição entre material e espiritual, típica do século XIX positivista, como se o interesse pela dita ‘espiritualidade’ implicasse anti-materialidade.
3. A primeira questão é esta: a física é ‘materialista’? O argumento é aduzido a partir da mecânica quântica, da necessidade de ter em conta a interacção do observador para decidir da mensuração das partículas. Ora, no que diz respeito à física clássica dos engenheiros, à química e à bioquímica, a questão não se põe dessa maneira, nunca soube de cientistas destas áreas que reclamassem esta característica quântica para as suas questões laboratoriais. Por um lado, o motivo de ‘medida’ e de ‘dimensões’ susceptíveis de medidas só tem sentido em relação a coisas que chamamos habitualmente ‘matéria’, dimensões a que se pode atribuir convenções de sistemas de medida a partir duma unidade (centímetro, grama, segundo, no que no meu tempo de liceu e IST se chamava o sistema CGS). Mas por outro lado, como ilustra extraordinariamente bem o balde de água  com que Galileu media o tempo em “diferenças e proporções” de peso de água, são os resultados dessas medidas que se prestam às equações físicas de tipo algébrico, seja qual for o exemplo material da experimentação laboratorial: não é a matéria – enquanto realidade substancial, bolinha de pedra ou de ferro que desliza pelo plano inclinado de madeira – que é conhecida cientificamente, mas as regras de movimento, tipo lei da gravidade, que as equações e as suas variáveis preenchidas com os resultados da experimentação permitem conhecer de forma universal, científica. Aqui, o que faz o observador enquanto medidor não é relevante, a não ser a exigência de que não erre, foi por isso que o problema da mecânica quântica provocou um alvoroço tão grande, mas sem reflexos retroactivos sobre a física de dimensões macroscópicas: o critério nesta, que está na base da maioria da engenharia e tecnologia actuais, é ‘universal’ para qualquer laboratório, independentemente da subjectividade dos cientistas. Isto não é ‘materialismo’, é exactidão científica, que não joga da mesma maneira noutras ciências como a linguística estrutural ou outras ciências sociais, nem sequer na economia. Foi esta exactidão que levou Heidegger a dizer que “a ciência não pensa”, indo ao encontro de a ciência ser estruturalmente laboratorial, mensuração e matemática algébrica adequada. Onde o cientista pensa – usando linguagem de palavras articuladas em frases – é quando propõe novas maneiras de experimentação ou de medir, ou novas hipóteses teóricas, ou quando discute paradigmas. Nada disso é ‘materialista’ no sentido pejorativo da palavra: a intervenção da matemática – que mede e conta, isto é faz operações com coisas materiais, não soma ‘ideias’ nem sequer ‘imagens’ – joga com “diferenças e proporções”, as quais também não são coisas materiais, nem os números, nem sequer as palavras, diferenças entre sons ou riscos que referem ‘coisas’, aliás tanto materiais como ideais. Já o marxismo teve dificuldade em caracterizar a ciência e as línguas como ‘materialistas’ e não como ‘ideologia’ (Estaline decidiu no debate soviético que a língua não pertence à super-estrutura).
4. Não é pois por aí que o gato vai às filhozes, as ciências, laborando com coisas materiais, não são materialistas. A meu ver, a grande crítica que as ciências em geral merecem e sobretudo a concepção que os cientistas delas têm, tem a ver com o ‘fora do laboratório’: teoricamente, os resultados científicos só são válidos nas condições de determinação criadas pelos laboratórios, os quais são necessários porque justamente na realidade quotidiana reina a indeterminação, vários tipos de efeitos jogando de forma casual ou pelo menos aleatória. Há, que eu saiba, duas grandes excepções, bastante opostas: a astronomia, cujo laboratório de telescópios enfrenta directamente a cena astral e pode calcular com exactidão as suas causalidades sem interferências terrestres significativas, e os aceleradores de partículas em que o laboratório não se distingue da cena em que elas explodem, o que provocará provavelmente os limites da mecânica quântica (não sei que chegue para garantir esta afirmação). Ora, é fora do laboratório que se situam as poluições todas e os efeitos secundários, tudo resultante de lacunas laboratoriais inevitáveis, isto é, de experimentações não feitas além das que foram feitas, das que as técnicas confirmam a exactidão científica. Que os gases dos automóveis provoquem doenças respiratórias ou efeitos climáticos nocivos, que o que cura certo tipo de células tenha efeitos catastróficos noutros tipos, etc. Fora do laboratório e de certas rotinas, os efeitos de factores com causas diversas congregam-se em acontecimentos, que são possíveis, isto é, não determinados, imotivados, desconhecidos pelas ciências fora dos seus laboratórios. Ora, o dogmatismo dos cientistas vem de não terem em conta a importância do laboratório para as verdades que eles descobrem e de transporem indevidamente essas ‘verdades’, uma concepção determinista para a realidade em geral, o que é mil vezes pior do que um pretenso ‘materialismo’.
5. Do tal manifesto para uma ciência pós-materialista[1] (do seu § 15) retiro alguns pontos que merecem consideração. A afirmação de que as ciências reduzem o ‘espírito’, que um pouco adiante é exemplificado pela dupla vinda da psicologia racional clássica “vontade / intenção”, é perfeitamente correcta. Qualquer ciência só tem um mínimo de cientificidade se reduzir a subjectividade do cientista, mas mais além, a necessidade estrutural do laboratório implica a redução de tudo o que não corresponde às dimensões retidas para serem medidas do fenómeno. Para dar um exemplo fora da física e das químicas, a linguística estrutural reduz a Acústica e a Fonação fisiológica nas operações de comutação com as quais constrói os seus paradigmas científicos (fonológicos, morfológicos, sintácticos, lexicais). Nenhuma ciência pode ser retida, na tradição ocidental, sem esta redução, o que significa que os ensaios de conhecimento das realidades espirituais ou criam uma ciência própria (teológica ou agnóstica, não vejo o que possa ser) ou procedem apenas a argumentação filosófica, não científica.
6. Dito isto, há uma série de “fenómenos psi” que merecem todo o interesse, nomeadamente a telepatia, fenómeno que muito me intriga, claramente atestado frequentemente e de difícil explicação em termos das ciências vigentes, ou ainda as “experiências de morte iminente” com experiências fora do corpo durante uma paragem do coração, ou experiências espirituais profundas durante essas paragens, donde se conclui que o espírito é separado do cérebro, manifesta-se através dele mas não é produzido por ele; ainda se citam, sem que se possa duvidar, casos de “médiums que comunicam mentalmente com pessoas falecidas e obtêm informações muito precisas delas”, sugerindo sobrevida da consciência após a morte e a existência de realidades que não são de ordem física; acrescenta-se que “espíritos individuais podem aparentemente unir-se” o que “sugere a existência dum Espírito envolvendo-os”. Os dois casos obviamente ‘metafísicos’, a imortalidade do espírito e a existência dum Espírito divino, são denunciados enquanto tais pelo verbo ‘sugerir’, que parece afastar qualquer hipótese de ‘ciência’. Mas a telepatia e os médiums põem uma questão muito interessante, a de saber se eles exigem a autonomia duma instância ‘espiritual’ relativamente ao cérebro. O que  é difícil é que nos laboratórios de neurologia põe-se também a questão da relação entre a análise estritamente bioquímica-biológica das  redes neuronais e o ‘conteúdo’ dos neurónios a que só o próprio tem acesso, o que Damásio chamou ‘mente’: entre análise neurológica laboratorial e o discurso subjectivo da mente, contado pelo próprio, há um salto metodológico que julgo intransponível, o que deixará lugar para uma concepção filosófica espiritualista, mas não vejo como ‘científica’.
7. Argumentarei por isso duma forma indirecta. Há um caso extraordinário, mencionado noutro sítio da Web[2], dum tsunami na Indonésia em 2005 em que morreram 150 mil pessoas e em que não se encontraram praticamente carcaças de animais – elefantes, javalis, búfalos, leopardos – que pressentiram a vinda do mar e fugiram para as serras. Um biólogo, especialista em ecologia e comportamento animal, explica que não se trata dum “sexto sentido”, mas que “os animais teriam sentidos mais desenvolvidos do que os nossos para detectar certos sinais premonitórios: uns ouvirão uma gama maior de sons, outros perceberão melhor as modificações da pressão atmosférica ou do campo magnético; em tudo o que é vibratório, tremores de terra ou ondas sonoras, os animais têm aptidões que nós não temos ou já não temos” (Hervé Fritz, CNRS). Ora, o ‘já não temos’ sugere que tinham os nossos antepassados vivendo na selva e devendo defender-se dos perigos desta mas que se foram perdendo com as novas tarefas trazidas pela agricultura e sobretudo pela vida citadina. Então, os tais fenómenos psi, telepatia e médiums (para não falar de levitação), corresponderiam a gente que guarda, sabe-se lá porquê ou como, algumas possibilidades arquétipas, se dizer se pode, prévias à aprendizagem da linguagem provavelmente; isto seria o caso dos “espíritos individuais [que] podem aparentemente unir-se”, o que me lembra uma proposta de José Gil em As metamorfoses do corpo, a do “corpo comunitário” das tribos vivendo na selva, procurando alertar-nos para comunidades muito diferentes do individualismo exacerbado da contemporaneidade. “O corpo de que falam os selvagens não é o ‘corpo’ individual, porque este é em cada instante investido dos outros corpos da comunidade – seja pela fala, pelos gestos, pela expressividade afectiva, pelos jogos, por toques, carícias [...] Em cada comunidade primitiva o laço que une todos os membros funda-se neste corpo comunitário [...] É onde se jogam partilhas profundas: as funções mais imediatas, mais vitais – como a nutrição, a reprodução, as excreções, as percepções – canalizam e reproduzem o Mesmo em que cada corpo individual, fragmento e transmissão do corpo comunitário, compõe e analisa os seus ritmos deixando-se atravessar pelos ritmos de todos os outros [...] É ele que, oferecendo à comunidade a sua coesão, abre o espaço em que se elabora cada singularidade, o espaço da individuação dos corpos, quer dizer dos ritmos singulares. [...] As formas de educação que se encontram nas sociedades primitivas mostram como desde muito pequenos as crianças entram em relação com uma multidão de outros corpos, são manipulados por múltiplas mãos, balançados por dez mulheres, confrontados com mil imagens parentais, identificados a mil outras crianças e adultos. [...] A criança aprende os seus próprios ritmos, aprendendo a modelar em si os dos outros. [...] em vez de implicar uma atomização como nas sociedades ocidentais, o efeito de singularização supõe uma coesão social extremamente potente”[3].
8. A hipótese muito geral a tirar seria a de que médiums e gente capaz de telepatia seriam pessoas que guardam algo desta potência comunitária, desta intuição de outros, da capacidade de uma certa ‘comum unidade’ que poderá parecer-se com ‘relação espiritual’, sem ter implicações metafísicas nem ser ‘materialista’, esta oposição não tendo aqui lugar. Como dizer esta espiritualidade?[4] O motivo releva no Ocidente da tradição cristã, em que predominou a perspectiva platónica, opondo-a à matéria, como é o caso no manifesto em questão. Só vejo como alternativa o sopro judaico que em Orígenes aparece platonizado como ‘espírito’ (“hipóstase intelectual”), tenha sido ele como creio provável a fazê-lo, ou já antes Clemente de Alexandria ou outro filósofo cristão anterior. Seria digno dessa perspectiva o que releve de acontecimentos que escapem ao domínio dos outros humanos, ao poder do dinheiro, ou ao poder social em instituições ou ao poder politico ou ao poder dos saberes estabelecidos, mediáticos, científicos, eclesiásticos, académicos ou que sejam. É fácil dar exemplos, além dos espirituais anónimos, mulheres e homens que possamos conhecer, os clássicos Mahatma Gandhi, Martinho Lutero King, o nosso Aristides Sousa Mendes, Francisco, que está a renovar espiritualmente aos nossos olhos um lugar de poder.




[2] Google: Tsunami - Incroyable : les animaux ont échappé à la menace !
[3] J. Gil, Métamorphoses du corps, La Différen­ce, 1985, pp. 155-6.
[4] Ver texto de 15/10/17 neste blogue, os §§ 1-2

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