1. Escrevi
isto no meu último texto deste blogue. “A meu ver, a grande crítica que as
ciências em geral merecem, sobretudo a concepção que os cientistas delas têm,
tem a ver com o ‘fora do laboratório’: teoricamente, os resultados
científicos só são válidos nas condições de determinação criadas pelos
laboratórios, os quais são
necessários porque justamente na realidade quotidiana reina a indeterminação,
vários tipos de efeitos jogando de forma casual ou pelo menos aleatória. Há,
que eu saiba, duas grandes excepções, bastante opostas: a astronomia, cujo
laboratório de telescópios enfrenta directamente a cena astral e pode calcular
com exactidão as suas causalidades sem interferências terrestres
significativas, e os aceleradores de partículas, em que o laboratório não se
distingue da cena em que elas explodem, o que provocará provavelmente os limites da mecânica quântica (não sei que
chegue para garantir esta afirmação)”. Escrevi,
e só depois de o ter publicado é que me dei conta de que estas duas excepções
correspondem, nada mais nada menos, do que aos dois novos domínios da Física, a
da relatividade e da velocidade astral da luz (que só se pode medir / calcular
nos astros não terrestres) e a mecânica quântica. O que merece uma pequena reflexão.
2. Que a astronomia, decana das
ciências antigas como da física europeia, tenha como campo de compreensão um
mundo ‘determinado’ é o que corresponderá à perspectiva dos astrónomos gregos,
Aristóteles, por exemplo, considerando o movimento dos astros como perfeito, em contraste com os movimentos terrestres, o que
porventura conduziu à noção astrológica de que o ‘movimento perfeito influía
nos dos humanos’ (a palavra medieval influir foi criada para dizer essa relação astrológica).
Mas também a lógica da demonstração do heliocentrismo de Newton (resumida num
texto deste blogue) supõe as órbitas dos planetas como determinadas, repetindo-se
periodicamente; creio que isso ainda é assim. Por outro lado, os cometas como o
de Halley também têm algo como uma trajectória que é conhecida, prevendo-se as
passagens dele à vista da Terra. Dito isto, haverá nos céus movimentos
erráticos? Se for o caso, isso não se opõe a esta característica da astronomia
de o seu laboratório coincidir, se dizer se pode, com a cena dos fenómenos
astrais, sendo certo todavia que a Terra é uma grande excepção em relação aos
outros astros: é dela que partem todas as medidas astronómicas, é do ponto de
vista dela que se fazem todas as cartas celestes, ainda quando tenham
contributos de sondas espaciais, uma vez que essas cartas são lidas na Terra,
ou com ‘olhos terrestres’ de astronautas no espaço.
3. Quanto à Mecânica quântica, sem
dúvida que, desde a teoria do átomo nos começos do século XX, foi em
laboratório que ela foi sendo construída, Niels Bohr dizendo que “o átomo é um
ser de laboratório”, com a célebre indeterminação de Heisenberg sobre a medida
simultânea da posição e da velocidade duma partícula. Aqui, ao contrário da
astronomia, é a cena fora de laboratório que como que falta: presumo que ela
existe de duas maneiras. A primeira é sob a forma de bombas atómicas, o
filósofo greco-francês Cornelius Castoriadis tendo dito, ironicamente mas com
inteira razão, que a verdade da teoria física dos átomos foi validada pelas
mortes dos cidadãos de Hiroshima e de Nagasaki, ou ainda sob a forma de
centrais nucleares; a segunda, sob a forma de grandes aceleradores de
partículas por desintegração de certo tipo de núcleos atómicos. Tanto quanto
sei, e é certo que não sei muito, em todos estes casos o que se passa na cena,
fora do laboratório no primeiro caso e na cena-laboratório no segundo, são explosões
de partículas, onde as causalidades
são incontroláveis cientificamente e os procedimentos de medida da ordem da
estatística, a qual é sempre um recurso, uma confissão de não-saber no sentido
tradicional da física de Galileu e Newton. Apesar disso, há um (inacreditável)
estigma dessa física clássica como “errada” pelos físicos modernos, que têm a
mecânica quântica como “o infinitamente pequeno no qual se apoia a física
actual”, como diz a contracapa dum belo livro de Étienne Klein (Einstein +6.
A revolução). No entanto, já
Castoriadis falava “da antinomia epistemológica formulada por Heisenberg desde
1935 entre a constatação da não validade das categorias e das leis da física
ordinária no domínio microfísico e a demonstração dessa não validade por meio
de aparelhos construídos segundo as leis dessa física ordinária e interpretadas
segunda as categorias usuais” [1].
4. A que vêm estas reflexões ? Provavelmente não são senão mais um ponto do meu
desconforto fenomenológico (ignorante) diante, não destas duas novas físicas, é
claro, mas duma consequência da junção das duas na especulação sobre os
primeiros tempos do universo, uns 180 milhões de anos até à formação das
primeiras estrelas. Como é pensável tantos milhões de anos sem astros dignos
desse nome, apenas multidões de poeiras de átomos e de partículas? É a noção de
‘evolução’, a que é difícil de escaparmos, creio, como fazemos em relação à
formação da Terra e à epopeia da vida, que me parece que falta nesta
especulação, algo que se possa compreender. Ora, não se tratará aqui apenas de
Física mas também, e talvez antes de mais, da construção da Química: do núcleo
atómico, dos átomos mais simples (H e He) juntando um e dois electrões a esses
núcleos, depois dos outros átomos da fabulosa Tabela Periódica de Mendeleiev,
em seguida como átomos se juntaram para formar moléculas simples e mais
complexas. Questões que põem decisivamente a de saber como é que se fizeram as
ligações das forças nucleares e dos vários patamares de forças
electromagnéticas (que juntam electrões ao átomo, juntam átomos em moléculas,
depois juntam estas em graves), donde vieram, quando aparentemente, pensa o leigo,
quanto mais a multidão de poeiras se expandir mais as partículas estruturais
(protões, neutrões e electrões) se afastam umas das outras, quando a regra das
transformações químicas que geram moléculas é a da proximidade entre elas, que
nesta noção de expansão parece se desfazer: em vez de se aproximarem,
afastam-se.
5. Estas teorias do big Bang e da sua
sequência até às primeiras estrelas (a partir das quais julgo que uma lógica se
apresenta), além de cálculos matemáticos que ignoro, serão apenas ‘especulativas’
ou haverá experimentação laboratorial adequada, inversão da que existe nas
explosões atómicas de bombas e centrais nucleares como de aceleradores de
partículas? Nestes casos, sabe-se experimentalmente como é que moléculas, átomos
e núcleos atómicos se desagregam; mas há também experiências de protões e neutrões
se agregarem para formarem núcleos atómicos, de se lhes juntarem electrões e se
produzir um átomo? Em mais
complicado, François Jacob, na Logique du vivant (1970) dizia, se bem me lembro, que se era capaz
de sintetizar todas as moléculas duma célula mas não se sabia com elas construir uma célula, as que temos vêm sempre de outras anteriores
(tanto quanto sei, as bio-tecnologias acrescentam moléculas a células, não
fazem o que F. Jacob dizia não se saber então fazer). A única experimentação
retroactiva, por assim dizer, que eu saiba é a famosa de Stanley Miller em
1953, que reconstituiu a atmosfera primitiva e conseguiu que hidrogénio,
amónio, metano, vapor de água, sob descargas eléctricas, tivessem originado
moléculas orgânicas. Nem sequer o estimado M. Barbieri, com uma excelente
teoria sobre as moléculas ribóticas na génese das células, fala em ter feito
experimentações sobre essas moléculas que justificassem a sua teoria. Voltando
à física, seria talvez mais fácil conseguir experimentalmente ‘construir’
átomos, que são bem mais simples do que células. Talvez que o problema dos
físicos seja justamente este, o da simplicidade que resiste a ser ‘pensada’; talvez que, em
épocas de “complexidade” (Edgar Morin), o método cartesiano da redução das
questões ao mais simples seja a esparrela filosófica em que caiu a especulação
física, a de imaginar uma poeira de partículas em procissão no céu das estrelas
ainda por virem, quando nos aceleradores de partículas não se constroem átomos
nenhuns.
6. Seria preciso um/a novo/a Einstein, um/a
físico/a que tenha – como ele teve com o seu emprego em Zurich de leitor de
relatórios de “patentes nas quais se trata incessantemente de
electromagnetismo” (Klein, p. 54) – uma espécie de ‘laboratório de ideias’ que
lhe permita repensar o paradigma, repensar a antinomia epistemológica de Heisenberg
(§ 3), a relação entre a mecânica quântica e os instrumentos laboratoriais da
física ordinária. Mas se o/a houver – talvez que já o/a haja, sabe-se lá, longe
das universidades de topo – far-se-á ouvir de maneira a ser levado/a a sério?
7. Devaneios meus, porventura.
[1] “Science
moderne et interrrogation philosophique”, Encyclopædia Universalis, vol. Organon, 1975, p. 48.
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