1. Por exemplo, porque é que se diz que se joga às cartas ou ao futebol? Em primeira
aproximação, porque se trata de coisas não sérias, comparadas com o trabalho no
emprego ou com fazer o almoço ou comê-lo, é coisa de tempos ‘livres’; em
seguida, porque um jogo tem as suas regras, que todos os parceiros têm que
seguir, até um árbitro nos casos oficiais, para vigiar o cumprimento dessas
regras, e ainda porque delas se conclui, no final do jogo, quem ganhou e quem
perdeu, que há uma disputa entre adversários, o que significa que não se trata
apenas de seguir as regras mas de, seguindo-as, de manifestar habilidade para
se vencer o adversário, contando-se pontos, por exemplo frequente (a lotaria
não é um jogo). E até sucede que certos jogos congreguem espectadores que se partilham
em apoio a um (ou mais) dos adversários e se entusiasmam com as peripécias do
jogo. Todavia, nos desportos oficiais, os jogos tornaram-se coisas ‘sérias’ de
profissionais, negócios de muito dinheiro, sem deixarem de ser jogos.
2. Limitando-nos aos desportos, as
ciências podem aplicar-se aos jogos? Sim e não. Há uma medicina desportiva,
tratando de cada atleta, psicologia também, podendo ter um complemento
colectivo de equipa; pode haver uma espécie de balística da bola (ou de
‘bolística’) que estude o percurso entre o pé e a baliza de um remate que
subiu, curvou e desceu, e outras coisas do género. Mas não há argumentos
físicos, biológicos, neurológicos ou antropológicos que expliquem o porquê do
futebol ou do ténis ou do ping-pong, nenhuma dessas ciências pode deduzir das
suas regras a razão de ser das regras de um qualquer desporto: são as próprias diferenças entre as regras, nos espaços tempos em que elas
valem separando o jogo do não jogo – no futebol, que o guarda redes possa usar
as mãos na sua área e as regras do fora de jogo impedem que haja muitos pontos,
como os pode haver no rugby e os há no basquetebol, o tamanho das bolas no
ténis e no ping-pong – as diferenças das regras mostram que elas são imotivadas
em relação à lei da gravidade ou
à anatomia humana e por aí fora. Este é o mesmo argumento que o de Saussure
sobre a imotivação das línguas consoante os povos e seus usos, a que chamou
‘arbitrário’ antes de preferir ‘imotivado’: é a não motivação, a não
causalidade da geografia, ecologia e antropologia em relação aos paradigmas das
línguas, fonológicos (as pronúncias regionais) ou sintáctico-semânticos, que
vale também para os paradigmas dos jogos desportivos. [O filósofo greco-francês
Cornelius Castoriadis estendeu esse argumento àquilo a que chamou a
“instituição imaginária da sociedade”, portanto às estruturas organizativas das
sociedades que serão imotivadas, sociedade por sociedade, em relação à física e
à biologia, estendeu portanto o argumento além dos jogos, como estou a usá-lo
aqui. Mas teria que o reler, passados mais de 30 anos da data em que essa
leitura me fascinou e depois da qual aprendi muita coisa sobre ciências,
mormente sobre biologia, e aprendi a não separar os domínios delas, ou melhor,
a ter em conta a interferência da dimensão biológica na dimensão social dos
humanos, teria que o reler para ter argumentos sobre essa proposta, em que o motivo
de ‘imaginário’, provavelmente lacaniano, me parece incerto].
3. Ora bem, o que o desporto ajuda a
perceber quanto ao motivo de jogo, é que a existência de regras – que não são apenas limitativas, tipo ‘no
futebol os dez não podem tocar na bola com as mãos’, mas dizem também quando é
que há golos, atravessada a linha da baliza adversária em condições legais –
não se opõe ao carácter aleatório do jogo, bem pelo contrário, as regras são
pensadas em função desse aleatório, para o tornar mais sugestivo e os jogadores mais hábeis. Ou seja, ao
nível do conjunto do futebol (e não da medicina desportiva ou da ‘bolística’,
dos casos pontuais em que se pode aplicar ciência) regras e acaso são
indescerníveis, como escreveu Derrida: “o conceito de jogo anuncia, na véspera
e para além da filosofia, a unidade do acaso e da necessidade num cálculo sem
fim”[1],
fórmula esta que permite definir o que é acontecimento em geral. Não só um jogo é um acontecimento, como
num jogo todos os lances são acontecimentos: esta é a condição da paixão dos
contendores e dos espectadores. É por isso que não há ciência que permita
prever o resultado dum jogo, desde que haja um mínimo de equilíbrio entre ambas
as equipas, tal como as ciências não podem prever o comportamento dos fenómenos
que observaram no laboratório fora do contexto deste, é por isso que o
laboratório é necessário: fora dele só há ‘jogos’ ou ‘acontecimentos’, só há a
unidade da necessidade e do acaso. Pode-se mesmo dizer que os desportos, com os
seus estádios, courts ou ginásios e os tempos da competição, têm uma certa
parecença com os laboratórios científicos: são experimentações – medidas em pontos
que classificam as equipas – de disputas tal como as há na vida quotidiana, as
suas rivalidades e habilidades para as suplantar. São estas as duas facetas do
jogo: a habilidade dos jogadores e a beleza que dão aos lances, por um lado, o
desejo de ganhar e de ser considerado o melhor, em comunhão com os outros adeptos e as equipas
do seu clube. A vantagem destas experimentações é a de deslocar a lei da
guerra das rixas e zaragatas dos
bairros para os desafios desportivos e suas regras. Por vezes também as há, mas
seria por certo muito pior se não houvesse tantas modalidades para se exercer
habilidades físicas e gosto de ganhar.
4. É difícil aos cientistas
entenderem esta noção de acontecimento ou de jogo, no entanto o que costumo
propor sobre a circulação dum automóvel permite perceber como há dois níveis de
compreensão: o do laboratório dos engenheiros que criam o automóvel, cada sua
peça sendo testada segundo as regras descobertas pela física e pela química em condições
de determinação, isto é,
excluindo todos os outros factores de aleatório que jogam fora do laboratório,
e o da estrada em que o aleatório é fundamental e determina teoricamente o lugar que as peças têm no conjunto; ou seja há
dois níveis, o dos exames rigorosos de cada peça, que é um nível por definição
laboratorial, fragmentário, a compor cada fragmento com todos os outros, e o
nível desta composição teórica, que depende do aleatório da lei do tráfego. O
que para o engenheiro (que inventa) é essencial, a atenção constante ao aleatório extra-laboratorial, parece
ser difícil ao cientista que anda à descoberta laboratorial das leis, o que parece corresponder
à diferença desde Einstein pelo menos, entre físicos teóricos e físicos de
laboratório, ou entre os bioquímicos que foram analisando os ácidos nucleicos e
Crick e Watson que imaginaram a dupla hélice dos genes. Mas provavelmente em
ambos os lados se encontra a mesma concepção de ‘determinação substancial’ que
impede de chegar ao ‘acontecimento’ ou ao jogo. Se um jogador dá um chuto
forte, a física propõe que a força da perna provoca substancialmente o
movimento da bola. Mas, pressupondo isso, as regras do futebol têm a ver com as
diferenças de posição dos onze jogadores de cada equipa e os treinos com
maneiras de delinear tácticas de onze a onze, contando com as habilidades de
cada um, é claro, mas em função da correlação com os outros dez e com o que se
sabe do onze adversário, sem que a ‘substância’ de cada jogada possa ser
pensada (excepto nos casos de bola parada perto da baliza adversária,
provavelmente treinados à parte).
5. Ora, a substancialidade veio às
ciências da filosofia, as quais chegaram a um ponto de crítica do discurso
religioso, com Laplace, por exemplo que não precisou do arquitecto para pensar
o universo, que lhe opôs as suas descobertas como substituindo as verdades
religiosas, colocando Deus como o “tapa buracos” de que elas vinham agora a
prescindir, colmatando esses buracos com a razão experimental. Em relação a
Copérnico e Galileu, nos começos da ciência europeia, e à biologia molecular
nos finais, a crítica bate certo: tenho para mim que a ida à lua de Armstrong e
seus companheiros e à dupla hélice e a engenharia genética que se lhe seguiu,
foram das causas mais fortes do surto de secularização dos anos 60 e 70, além
da libertação sexual e feminista (mais evidente no campo católico, que fizera
antes uma forte tentativa de actualização moderna no chamado concílio Vaticano
II). O Céu é o lugar dos deuses em todas mitologias e atravessa a Bíblia bem
como o platonismo, é fácil de ver que uma máquina com humanos na Lua, no Céu,
torna muito complicado ler a dimensão mítica desses textos veneráveis. A outra
coisa é a fecundidade na
Terra, essa estranhíssima capacidade duma semente minúscula atirada à terra dar
uma árvore enorme com sementes para outras árvores, ou duma coelha dar várias
vezes à luz uma caterva de coelhinhos, algumas das quais darão por sua vez
outras tantas: este ‘menos’ que na Terra dá ‘mais’, esta fecundidade
inexplicável foi sempre atribuída aos deuses pelas mitologias. Eis pois duas
grandes descobertas científicas do que eram grandes mistérios e a fonte das
suas respostas religiosas.
6. Mas..., há sempre um mas...,
rapidamente os biólogos bioquímicos fizeram da sua grande descoberta a Causa
determinista de todo o organismo
vivo e dos seus diversos comportamentos (hoje toda a gente fala do ADN como
segredo de algo, pessoa ou instituição), tornando assim difícil de entender a
grande lição de Darwin, que viu a evolução como ‘jogos’, pode-se dizer, ensaios
e tentativas entre organismos em luta pela sobrevivência e seus contextos
ecológicos variando, jogo que foi permitindo as pequenas transformações das
anatomias desses organismos (como nos criadores de gados e engenheiros
agrícolas). Com efeito, colocando um dogma sobre a possibilidade de os genes
serem alterados pelo que chamam ambiente, transferem o ‘aleatório’ da evolução de
forma substancialista para as
mutações casuais dos genes, tão acertadas que, sem o saberem (os genes são
cegos para o exterior), batem certo com os acontecimentos da ‘solução’
darwiniana da evolução. Ora, estas mutações “batem às cegas”, diz M. Barbieri,
um excelente biólogo italiano, isto é, não têm regras, é a lei da selva que lhes escapa, não se trata de jogo e de
habilidade dos jogadores, mas de lotaria, só acaso; ora, a lei da selva ‘determina’
as anatomias de todas as espécies animais enquanto capazes do jogo da alimentação para captar moléculas orgânicas,
jogo em torno da predação, caçador ou fugitivo. Quanto aos físicos, recuaram
até à origem matematicamente calculada da origem do universo e conceberam uma
grande explosão que é difícil de entender senão como a nova aparência duma
Causa primeira do universo, do Primeiro Motor aristotélico ou do Criador
bíblico. Aqui o que é surpreendente a quem vê de fora é que é a própria causalidade
‘substancialista’ que é renegada – a revisão quântica extraordinária de todas
as leis físicas desde Galileu e Newton e dos conceitos que até então vigoravam
– no estatuto duma multidão de partículas a altíssimas temperaturas que, em vez
de evoluírem, ‘desevoluem’ para temperaturas mais baixas e vão dando origem
anarquicamente ao que antes não havia, matéria, espaço e tempo, enquanto que as
explosões provocadas nos aceleradores de partículas parecem revelar, pelo
contrário, que as partículas encontram-se no que chamam ‘acontecimentos’ mas
sem se pegarem, fogem ou desfazem-se, sem que se saiba – e se se soubesse,
seria o grande triunfo da mecânica quântica – se alguma vez se juntaram para
formar átomos de hidrogénio ou de hélio, como se crê que sucedeu nesse passado
mítico dos físicos. Ou seja, se for verdade que os grandes aceleradores de partículas
não são nem laboratório nem cena extra-laboratorial, o que se passa neles será
puramente casual, sem nenhuma necessidade: novamente não é jogo, é outra vez lotaria! Será isso a razão do grande assombro da
epistemologia quântica? Não havendo ‘acontecimentos’ no sentido de algo que tem
efeitos que perduram, não havendo jogo com regras e aleatório nos grandes
aceleradores, poder-se-ia deduzir o mesmo para a nuvem de partículas do pós big
Bang. Até à formação das estrelas, tudo parece manter algo da dimensão mítica
desta ‘origem’, mas talvez que algum/a jovem cientista esteja a matutar numa
nova especulação. Por mim, que já sou velho e sem divulgação, posso ousar o que
quiser, posso disparar, disparatar.
7. Voltando à questão acima, o que
Deus ‘tapava’ não eram buracos deterministas desconhecidos que a ciência veio a abrir, mas buracos
imotivados, resultantes de jogos ou acontecimentos. Deus era a Causa ou a Razão
do jogo, mas a definição deste é justamente não ter causa ou razão, ser a
necessidade unida ao acaso, aquilo que é impossível de pensar pela razão
substancialista.
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