terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O que é um jogo ?



1. Por exemplo, porque é que se diz que se joga às cartas ou ao futebol? Em primeira aproximação, porque se trata de coisas não sérias, comparadas com o trabalho no emprego ou com fazer o almoço ou comê-lo, é coisa de tempos ‘livres’; em seguida, porque um jogo tem as suas regras, que todos os parceiros têm que seguir, até um árbitro nos casos oficiais, para vigiar o cumprimento dessas regras, e ainda porque delas se conclui, no final do jogo, quem ganhou e quem perdeu, que há uma disputa entre adversários, o que significa que não se trata apenas de seguir as regras mas de, seguindo-as, de manifestar habilidade para se vencer o adversário, contando-se pontos, por exemplo frequente (a lotaria não é um jogo). E até sucede que certos jogos congreguem espectadores que se partilham em apoio a um (ou mais) dos adversários e se entusiasmam com as peripécias do jogo. Todavia, nos desportos oficiais, os jogos tornaram-se coisas ‘sérias’ de profissionais, negócios de muito dinheiro, sem deixarem de ser jogos.
2. Limitando-nos aos desportos, as ciências podem aplicar-se aos jogos? Sim e não. Há uma medicina desportiva, tratando de cada atleta, psicologia também, podendo ter um complemento colectivo de equipa; pode haver uma espécie de balística da bola (ou de ‘bolística’) que estude o percurso entre o pé e a baliza de um remate que subiu, curvou e desceu, e outras coisas do género. Mas não há argumentos físicos, biológicos, neurológicos ou antropológicos que expliquem o porquê do futebol ou do ténis ou do ping-pong, nenhuma dessas ciências pode deduzir das suas regras a razão de ser das regras de um qualquer desporto: são as próprias diferenças entre as regras, nos espaços tempos em que elas valem separando o jogo do não jogo – no futebol, que o guarda redes possa usar as mãos na sua área e as regras do fora de jogo impedem que haja muitos pontos, como os pode haver no rugby e os há no basquetebol, o tamanho das bolas no ténis e no ping-pong – as diferenças das regras mostram que elas são imotivadas em relação à lei da gravidade ou à anatomia humana e por aí fora. Este é o mesmo argumento que o de Saussure sobre a imotivação das línguas consoante os povos e seus usos, a que chamou ‘arbitrário’ antes de preferir ‘imotivado’: é a não motivação, a não causalidade da geografia, ecologia e antropologia em relação aos paradigmas das línguas, fonológicos (as pronúncias regionais) ou sintáctico-semânticos, que vale também para os paradigmas dos jogos desportivos. [O filósofo greco-francês Cornelius Castoriadis estendeu esse argumento àquilo a que chamou a “instituição imaginária da sociedade”, portanto às estruturas organizativas das sociedades que serão imotivadas, sociedade por sociedade, em relação à física e à biologia, estendeu portanto o argumento além dos jogos, como estou a usá-lo aqui. Mas teria que o reler, passados mais de 30 anos da data em que essa leitura me fascinou e depois da qual aprendi muita coisa sobre ciências, mormente sobre biologia, e aprendi a não separar os domínios delas, ou melhor, a ter em conta a interferência da dimensão biológica na dimensão social dos humanos, teria que o reler para ter argumentos sobre essa proposta, em que o motivo de ‘imaginário’, provavelmente lacaniano, me parece incerto].
3. Ora bem, o que o desporto ajuda a perceber quanto ao motivo de jogo, é que a existência de regras – que não são apenas limitativas, tipo ‘no futebol os dez não podem tocar na bola com as mãos’, mas dizem também quando é que há golos, atravessada a linha da baliza adversária em condições legais – não se opõe ao carácter aleatório do jogo, bem pelo contrário, as regras são pensadas em função desse aleatório, para o tornar mais sugestivo e os jogadores mais hábeis. Ou seja, ao nível do conjunto do futebol (e não da medicina desportiva ou da ‘bolística’, dos casos pontuais em que se pode aplicar ciência) regras e acaso são indescerníveis, como escreveu Derrida: “o conceito de jogo anuncia, na véspera e para além da filosofia, a unidade do acaso e da necessidade num cálculo sem fim”[1], fórmula esta que permite definir o que é acontecimento em geral. Não só um jogo é um acontecimento, como num jogo todos os lances são acontecimentos: esta é a condição da paixão dos contendores e dos espectadores. É por isso que não há ciência que permita prever o resultado dum jogo, desde que haja um mínimo de equilíbrio entre ambas as equipas, tal como as ciências não podem prever o comportamento dos fenómenos que observaram no laboratório fora do contexto deste, é por isso que o laboratório é necessário: fora dele só há ‘jogos’ ou ‘acontecimentos’, só há a unidade da necessidade e do acaso. Pode-se mesmo dizer que os desportos, com os seus estádios, courts ou ginásios e os tempos da competição, têm uma certa parecença com os laboratórios científicos: são experimentações – medidas em pontos que classificam as equipas – de disputas tal como as há na vida quotidiana, as suas rivalidades e habilidades para as suplantar. São estas as duas facetas do jogo: a habilidade dos jogadores e a beleza que dão aos lances, por um lado, o desejo de ganhar e de ser considerado o melhor, em comunhão com os outros adeptos e as equipas do seu clube. A vantagem destas experimentações é a de deslocar a lei da guerra das rixas e zaragatas dos bairros para os desafios desportivos e suas regras. Por vezes também as há, mas seria por certo muito pior se não houvesse tantas modalidades para se exercer habilidades físicas e gosto de ganhar.
4. É difícil aos cientistas entenderem esta noção de acontecimento ou de jogo, no entanto o que costumo propor sobre a circulação dum automóvel permite perceber como há dois níveis de compreensão: o do laboratório dos engenheiros que criam o automóvel, cada sua peça sendo testada segundo as regras descobertas pela física e pela química em condições de determinação, isto é, excluindo todos os outros factores de aleatório que jogam fora do laboratório, e o da estrada em que o aleatório é fundamental e determina teoricamente o lugar que as peças têm no conjunto; ou seja há dois níveis, o dos exames rigorosos de cada peça, que é um nível por definição laboratorial, fragmentário, a compor cada fragmento com todos os outros, e o nível desta composição teórica, que depende do aleatório da lei do tráfego. O que para o engenheiro (que inventa) é essencial, a atenção constante ao aleatório extra-laboratorial, parece ser difícil ao cientista que anda à descoberta laboratorial das leis, o que parece corresponder à diferença desde Einstein pelo menos, entre físicos teóricos e físicos de laboratório, ou entre os bioquímicos que foram analisando os ácidos nucleicos e Crick e Watson que imaginaram a dupla hélice dos genes. Mas provavelmente em ambos os lados se encontra a mesma concepção de ‘determinação substancial’ que impede de chegar ao ‘acontecimento’ ou ao jogo. Se um jogador dá um chuto forte, a física propõe que a força da perna provoca substancialmente o movimento da bola. Mas, pressupondo isso, as regras do futebol têm a ver com as diferenças de posição dos onze jogadores de cada equipa e os treinos com maneiras de delinear tácticas de onze a onze, contando com as habilidades de cada um, é claro, mas em função da correlação com os outros dez e com o que se sabe do onze adversário, sem que a ‘substância’ de cada jogada possa ser pensada (excepto nos casos de bola parada perto da baliza adversária, provavelmente treinados à parte).
5. Ora, a substancialidade veio às ciências da filosofia, as quais chegaram a um ponto de crítica do discurso religioso, com Laplace, por exemplo que não precisou do arquitecto para pensar o universo, que lhe opôs as suas descobertas como substituindo as verdades religiosas, colocando Deus como o “tapa buracos” de que elas vinham agora a prescindir, colmatando esses buracos com a razão experimental. Em relação a Copérnico e Galileu, nos começos da ciência europeia, e à biologia molecular nos finais, a crítica bate certo: tenho para mim que a ida à lua de Armstrong e seus companheiros e à dupla hélice e a engenharia genética que se lhe seguiu, foram das causas mais fortes do surto de secularização dos anos 60 e 70, além da libertação sexual e feminista (mais evidente no campo católico, que fizera antes uma forte tentativa de actualização moderna no chamado concílio Vaticano II). O Céu é o lugar dos deuses em todas mitologias e atravessa a Bíblia bem como o platonismo, é fácil de ver que uma máquina com humanos na Lua, no Céu, torna muito complicado ler a dimensão mítica desses textos veneráveis. A outra coisa é a fecundidade na Terra, essa estranhíssima capacidade duma semente minúscula atirada à terra dar uma árvore enorme com sementes para outras árvores, ou duma coelha dar várias vezes à luz uma caterva de coelhinhos, algumas das quais darão por sua vez outras tantas: este ‘menos’ que na Terra dá ‘mais’, esta fecundidade inexplicável foi sempre atribuída aos deuses pelas mitologias. Eis pois duas grandes descobertas científicas do que eram grandes mistérios e a fonte das suas respostas religiosas.
6. Mas..., há sempre um mas..., rapidamente os biólogos bioquímicos fizeram da sua grande descoberta a Causa determinista de todo  o organismo vivo e dos seus diversos comportamentos (hoje toda a gente fala do ADN como segredo de algo, pessoa ou instituição), tornando assim difícil de entender a grande lição de Darwin, que viu a evolução como ‘jogos’, pode-se dizer, ensaios e tentativas entre organismos em luta pela sobrevivência e seus contextos ecológicos variando, jogo que foi permitindo as pequenas transformações das anatomias desses organismos (como nos criadores de gados e engenheiros agrícolas). Com efeito, colocando um dogma sobre a possibilidade de os genes serem alterados pelo que chamam ambiente, transferem o ‘aleatório’ da evolução de forma substancialista para as mutações casuais dos genes, tão acertadas que, sem o saberem (os genes são cegos para o exterior), batem certo com os acontecimentos da ‘solução’ darwiniana da evolução. Ora, estas mutações “batem às cegas”, diz M. Barbieri, um excelente biólogo italiano, isto é, não têm regras, é a lei da selva que lhes escapa, não se trata de jogo e de habilidade dos jogadores, mas de lotaria, só acaso; ora, a lei da selva ‘determina’ as anatomias de todas as espécies animais enquanto capazes do jogo da alimentação para captar moléculas orgânicas, jogo em torno da predação, caçador ou fugitivo. Quanto aos físicos, recuaram até à origem matematicamente calculada da origem do universo e conceberam uma grande explosão que é difícil de entender senão como a nova aparência duma Causa primeira do universo, do Primeiro Motor aristotélico ou do Criador bíblico. Aqui o que é surpreendente a quem vê de fora é que é a própria causalidade ‘substancialista’ que é renegada – a revisão quântica extraordinária de todas as leis físicas desde Galileu e Newton e dos conceitos que até então vigoravam – no estatuto duma multidão de partículas a altíssimas temperaturas que, em vez de evoluírem, ‘desevoluem’ para temperaturas mais baixas e vão dando origem anarquicamente ao que antes não havia, matéria, espaço e tempo, enquanto que as explosões provocadas nos aceleradores de partículas parecem revelar, pelo contrário, que as partículas encontram-se no que chamam ‘acontecimentos’ mas sem se pegarem, fogem ou desfazem-se, sem que se saiba – e se se soubesse, seria o grande triunfo da mecânica quântica – se alguma vez se juntaram para formar átomos de hidrogénio ou de hélio, como se crê que sucedeu nesse passado mítico dos físicos. Ou seja, se for verdade que os grandes aceleradores de partículas não são nem laboratório nem cena extra-laboratorial, o que se passa neles será puramente casual, sem nenhuma necessidade:  novamente não é jogo, é outra vez lotaria! Será  isso a razão do grande assombro da epistemologia quântica? Não havendo ‘acontecimentos’ no sentido de algo que tem efeitos que perduram, não havendo jogo com regras e aleatório nos grandes aceleradores, poder-se-ia deduzir o mesmo para a nuvem de partículas do pós big Bang. Até à formação das estrelas, tudo parece manter algo da dimensão mítica desta ‘origem’, mas talvez que algum/a jovem cientista esteja a matutar numa nova especulação. Por mim, que já sou velho e sem divulgação, posso ousar o que quiser, posso disparar, disparatar.
7. Voltando à questão acima, o que Deus ‘tapava’ não eram buracos deterministas  desconhecidos que a ciência veio a abrir, mas buracos imotivados, resultantes de jogos ou acontecimentos. Deus era a Causa ou a Razão do jogo, mas a definição deste é justamente não ter causa ou razão, ser a necessidade unida ao acaso, aquilo que é impossível de pensar pela razão substancialista.


[1] Marges. De la philosophie, 1972, p. 7.

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