quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Uma ética do dom, de não violência






A lei da selva é anti-ética
A lei da guerra necessita de moral disciplinar
Autoridade e poder substantivo, com seus feitiços
Doação retirada e possibilidade
Uma ética da contingência
Uma ética de não violência

1. “Deixar ser o ente”, foi a fórmula em que Heidegger burilou algures o que se poderia chamar a sua ética geral. Ela resulta do retiro da doação do ente e do seu tempo pelo Ereignis, na proposta final de 1962, e como ética poderá ser dita assim: deixar a um dado ente com que se tenha relação, não apenas mas sobretudo humanos, deixar-lhe possibilidades da forma fecunda que convém à sua doação. É sobre esta questão que queria reflectir brevemente, duma forma necessariamente simplista, já que nunca frequentei a bibliografia deste tipo de questões, não cheguei à filosofia por razões éticas ou existenciais, como por vezes sucede: assentei-me nos seus bordos para as ciências sociais e humanas, nomeadamente a linguística por razões históricas, da proeminência estruturalista desta disciplina nos anos 60 e 70 em que trabalhei em Paris. Mas antes, vindo de questões teológicas tratadas por um tomismo insuficiente, ia lendo alguns textos de Heidegger.

A lei da selva é anti-ética
2. A lei da selva, que obriga cada animal de qualquer espécie a sobreviver comendo o que lhe chegue de outros vivos, vegetais ou animais, e que segrega hormonas que empurram para os comportamentos de sobrevivência, não é uma lei ética no que diz respeito às espécies carnívoras, sem falar de insectos e outros invertebrados. As espécies herbívoras, tanto quanto eu imagino, não destroem as plantas de que comem as folhas, já que estas as regeneram e, se elas desenvolveram músculos e astúcias na evolução, foi para se defenderem dos músculos e astúcias de carnívoros que não podem fugir ao destino de predadores. E deles os humanos herdaram – ainda que seus primos primatas sejam herbívoros, dignos antepassados comuns dos actuais vegetarianos –, tornando-se mais ou menos precocemente carnívo­ros, com ajuda do domínio do fogo ou precedendo-o, passando obrigatoriamente pelo canibalismo ou não, tudo questões que têm os seus especialistas e que não me parece virem agora ao caso, se for certo, como creio, que os nossos músculos e astúcias de mamíferos foram herdados da existência colateral de espécies carnívoras, como já eram muitas espécies invertebradas e vertebradas não mamíferas. O ponto que importa aqui é que os herdámos da lei da selva, como selvagens que foram os nossos antepassados antes de aprenderam a cultivar plantas e a criar rebanhos. E já então essa lei se desdobrara em lei da guerra.

A lei da guerra necessita de moral disciplinar
3. É esta lei da guerra, que a história e a antropologia atestam inexoravelmente[1], que põe o problema da violência, outrora dito ‘problema do mal’, que angustiava teólogos e filósofos, saberem como explicar a origem dele por um Criador suposto bom: nas nossas línguas, este motivo teológico não era totalmente separável desta violência, a noção de ‘criador’ se ligando à de ‘criação de gado’, como à de ‘criança’ e de ‘criado’, tudo entes que teriam em comum a necessidade de cuidadores para os deixar crescer sem violência, sabendo discipliná-la. A moral, tenha o nome que tiver em qualquer língua, é justamente a necessidade social elementar de controlar as dinâmicas hormonais excessivas, não propriamente de as ‘reprimir’ mas de as disciplinar, com o que este termo implica de aprendizagem de discípulo, isto é, dessas dinâmicas variadas saber fazer motivos (motores) de vida social, de vida com os outros, aprender a discernir nas rivalidades estímulos que não se oponham às necessidades de alianças na vida doméstica ou social.

Doação retirada e possibilidade
4. O que é que o motivo heideggeriano de doação retirada pode esclarecer nesta questão de ética disciplinar? “Deixar ser o ente” terá a ver, para começar, com o sentido das pulsões hormonais que, de secreção endócrina, são delas mesmas cegas para o exterior e por isso excessivas, como se sabe desde o choro dos bebés. São justamente, como dizer?, o pólo activo que há que ‘deixar ser’, que não se pode querer ‘apagar’, fazer desaparecer, mas que há que passivar por doação disciplinar, ‘actipassivar’ por aprendizagem de comportamentos com finalidades de aliança: por exemplo, jogos com os outros que impliquem um motivo de rivalidade, mas com regras que obriguem a criar habilidades e a merecer ganhar, ao rival ou adversário que não ao inimigo, com quem noutros comportamentos se tecem alianças. Educar é deixar ser aquele que se educa, ainda que por vezes em revolta contra o educador, sinal de que pode estar a abrir-se-lhe uma possibilidade que escape a este. O meu filho ou aluno não tem que ser como eu.
5. O motivo heideggeriano de possibilidade é, de certa maneira, uma retomada da dunamis aristotélica, a capacidade ou potencial de movimento (implicando ‘força’, dinamização), mas com uma diferença importante, a da sua temporalidade; sem oposição aos ‘acidentes’ (temporais na sua acidentalidade), as possibilidades vão-se reconfigurando a partir dos seus efeitos, devido a ‘acontecimentos’[2] em que outros igualmente intervêm: ‘possibilidade’ articula-se de muito perto com ‘aprendizagem’, esta sendo susceptível de suceder uma vida inteira. Este motivo é o ponto forte quando a questão se põe em termos mais largos, da ordem do social e político. Se há uma maneira de dizer com brevidade o que é a exigência da democracia no que diz respeito a todos e a cada um dos cidadãos, é que ela fomente e respeite possibilidades, que em cada caso seja esse o critério da sua fecundidade. Pode-se talvez dizer que este motivo de possibilidade, central em Ser e Tempo, pode circunscrever melhor o motivo de ‘liberdade’ que é muito genérico e se arrisca a ficar esvaziado: porque as possibilidades são mais claramente individuais e diversas enquanto tais. A elas corresponde o verbo poder, o que cada um pode, com a temporalidade que lhe advém de possibilidades conseguidas abrirem novas possibilidades e dizer-se assim, quer para a frente, quer retroactivamente (em currículos), a caminhada social de cada um. A outra vantagem do termo é a de se poder também caracterizar o que barra socialmente essa caminhada de cada possibilidade com o uso do substantivo poder: o que não deixa ser tal possibilidade, se lhe opõe, impede a sua doação manifesta. Haverá que distinguir aqui dois substantivos, ‘poder’ e ‘autoridade’, esta sendo provisória no caso da educação, cujo objectivo é ‘deixar ser’, ou sendo estruturalmente necessária por razões de especialização, a autoridade dum médico ou enfermeiro, dum engenheiro ou dum juiz, que são sempre susceptíveis de crítica por outros especialistas ou por abuso da autoridade exercida como poder.

Autoridade e poder substantivo, com seus feitiços
6. Um emprego numa empresa implica o seu organigrama de lugares de trabalho onde esse emprego é circunscrito, assim como regulamentos e directivas das várias actividades que criam formas de autoridade a que ele é sujeito, os próprios dirigentes devendo em princípio submeterem-se a eles, o que significará evitar que a autoridade abuse como poder, isto é, que o lugar de trabalho seja uma esfera de relativa possibilidade, de relativa autonomia, consentânea com as capacidades do trabalhador. Uma boa parte da ética ou justiça da organização do organigrama e da sua gestão deverá consistir neste cuidado das possibilidades dos vários lugares de trabalho, sendo óbvio que elas serão crescentes com o nível de competência pedido por tal ou tal lugar; uma maneira simples de conduzir essa gestão democrática da empresa é a de saber ouvir os próprios, individualmente ou por inquéritos, deixá-los exprimirem as suas reclamações de melhores possibilidades, com as responsabilidades correlativas. Se bem me lembro do filme ecologista Amanhã, a fábrica de envelopes Pocheco, em Forest-sur-Marque, no norte da França, de que o filme fala, tem 20 anos de experiência voltada para as condições de trabalho e de produção e não para o lucro, com um ciclo de reprodução que tende a dispensar matéria prima nova, recorrendo aos desperdícios do século XX e vendendo por sua vez os seus para reciclagem de agricultura. Será um caso exemplar de utopia económica, em que o que conta é o produto, o processo de produção e o ambiente, tanto o dos trabalhadores na fábrica como o do planeta, ou seja tudo o que é doado, pessoal e seu saber, maquinaria e matéria prima, é recebido como tal, como dom que se respeita no cuidar do processo de produção. Um exemplo de economia que não existe para dar lucro, o que há é reinvestido.
7. Após este belo exemplo, peguemos na questão mais geral. O substantivo poder poderá ser abordado através dos indicadores das suas três principais formas, que já o eram nas sociedades antigas, como revelam os textos dos evangelhos ditos sinópticos, que contam uma rebelião não armada que avança contra o poder financeiro e político envolvendo a religião estabelecida em torno do Templo de Jerusalém e a sua cumplicidade com o ocupante romano. Esses textos oferecem, a uma leitura que saiba entender a componente política e financeira dessa estrutura religiosa, a tríade do que se pode chamar os feitiços (palavra portuguesa donde Marx decalcou o “fetiche”) que coarctam desejos e portanto possibilidades: o do Dinheiro, o do César e o do Deus dos mortos[3], o primeiro indicando claramente o poder financeiro, o segundo o poder politico e das armas e o terceiro o poder de ‘publicidade’, no sentido, hoje mediático, do discurso que a sociedade publica, das ortodoxias que se impõem, a distância e por sedução, ao saber dos que, espectadores, são captados pelos diversos doutos e stars que substituíram os antigos clérigos e os intelectuais que lhes sucederam: os seus efeitos são de limitação das possibilidades dos que lhes estão – literalmente – confinados, efeitos de violência social que se sobrepõe às diversas ‘autoridades’ que a organização social implica como inerentes à reprodução do conjunto. Mas aqui as coisas tornam-se extremamente complicadas, que ao fenomenólogo não cabe fazer ciência social, além de lembrar o testemunho do Amanhã, mas procurar discernir linhas utópicas de justiça, recorrendo ao motivo da doação e do seu retiro.
8. Os feitiços são armaduras que tornam possível o poder substantivo, o fazem jogar ao invés do retiro: impõe-se de forma constrangedora e sofrida aos que se lhes sujeitam sem saberem e poderem evitá-lo. Impõem o ‘querer ser rico’, o ‘querer vir a mandar’ na politica ou equivalente, procurar prestígio mediático, tudo maneiras de se atrofiarem possiblidades fecundas, abertas, de as gentes se encafuarem em poses e etiquetas de circunstância, demolidoras da vida, de que a gravata masculina oferece a simbologia, uma corda apertando o pescoço. ‘Sofrida’, porque contra-doação, restrição de possibilidades abertas pela doação (biológico-tribal), possibilidades que cada um pode compreender do que vê, ouve e lê, como dizia Sophia e canta F. Fanhais. Dito duma forma geral, os salários poderiam ser melhores, se a economia fosse para serviço das comunidades e não para enriquecer patrões e accionistas; os cidadãos deveriam ser tratados como tal, ainda quando julgados e condenados; as gentes poderiam estudar, se não fossem aliciadas permanentemente para sei lá o quê. As doações acabam por se revelarem um imenso desperdício de possibilidades individuais, e portanto colectivas.

Uma ética da contingência
9. A questão ética atravessa Ser e Tempo, ainda que o autor o negue, nomeadamente na distinção entre “autêntico / inautêntico” (ou “próprio / impróprio): a descrição do Mann (‘on’ em francês) na peugada do Mitsein (ser-com) é de facto uma ilustração do que ele considera “inautêntico”, em linha com uma longa tradição misantrópica ocidental; há acontecimento da autenticidade quando a componente da temporalidade do Dasein, ser no mundo, implicando a sua finitude, se desvela como angústia do ser-para-a-morte. Hei-de confessar que é uma zona do livro que nunca me interessou muito, justamente porque a dimensão ética não foi o que me atraíu na fenomenologia, nem no existencialismo sartriano, mas a finitude parece-me ser fulcral para a questão da doação que será, com o seu retiro ou dissimulação, a grande descoberta do chamado II Heidegger. A finitude, com a noção de ‘fim’ que retém, terá a ver com a questão da morte e com a sua ocultação pela alma cristã imortal e pelo seu céu que anula o ‘fim’ que é a morte: é provável que é aonde se move o pensamento heideggeriano, que tenta desengatar-se dessa que foi a sua tradição de juventude (minha também). Mas os Gregos que veneramos como pensadores tinham uma outra palavra, por assim dizer pré-cristã, a de contingência, que Platão ilustrava com o par geração / corrupção, ou seja nascimento / morte, para dizer a radicalidade, não apenas humana mas terrestre, de qualquer vivo, sendo, por outro lado, os vivos – os que crescem (phuô), os da phusis – o que no terrestre é o mais surpreendente, mais digno de ser pensado e estimado, como Aristóteles mostrou de forma extraordinária ainda a olhos de hoje. A própria noção de tempo (chronos) é marcada pela contingência (que é a "facticidade" em Heidegger, ou seja, aquilo que nele muda, releva do tempo): naquele motivo temporal por excelência a que este filósofo chamou “acidentes” e que afectam os vivos sem necessidade (por acaso, acontecimentos, contingência), mas também no que se repete como ciclos, desde o dia e a noite ao ano, os ciclos das plantações agrícolas que se inscrevem nos do ano, os da vida de cada um, o próprio par geração / corrupção indicando nomeadamente os ciclos da vida humana[4].
10. O motivo heideggeriano de doação, tal como eu lhe entendo o alcance, é antes de mais plural: todos os entes, vivos ou fabricados, são dados por acontecimentos, ainda que rotineiros mas podendo não ter sido, dados com suas possibilidades temporais e sem destinos prévios, já que sempre sujeitos a acidentes imprevisíveis. Essas possibilidades, dos humanos de hoje, são regradas: temos que comer e dormir diariamente, por exemplo duma contingência maior e em torno da qual jogam direitos humanos fundamentais, questões de justiça que devem passar à frente de todas as outras; regras também dos usos e costumes tribais (familiares, escolares, profissionais) que, vindo de aprendizagens, são sempre abertos a correcções e inovações, portanto a alargamentos de possibilidades, que são de cada um e do seu mundo, isto é, das suas unidades sociais e das sociedades em que elas se inserem. Este ‘regrado’ consiste nas rotinas das diversas estruturas sociais, as quais, com suas autoridades, são estritamente necessárias para confortar a precariedade das contingências de cada um, que não pode ser deixado ao deus-dará na sua vulnerabilidade face às rivalidades permanentes resultantes da lei da guerra. Doadas igualmente por tradições e suas correcções, regras e rotinas e autoridades são o que garante as possibilidades singulares, em unidades sociais e na ordem política de que elas precisam. É óbvio no caso dos pais e dos professores que a autoridade deles é para se apagar com as aprendizagens de filhos e alunos, quando eles vão à vida e ao trabalho.
11. Ora, esta autoridade estrutural, estruturalmente necessária, é / foi de longa tradição apropriada pelo poder substantivo em proveito próprio, coarctando parcial mas decisivamente possibilidades daqueles que contribuem para o movimento de reprodução das unidades sociais, a quem se pode dar o nome de trabalhadores no sentido da reprodução social. Retomemos os três feitiços de forma artesanal, já que as questões são imensas e não são o meu forte. O ‘dinheiro’ é necessário como ‘propriedade’ de cada um que lhe permite liberdade na esfera do consumo: nenhum destes dois termos está em questão, mas sim a possibilidade, com origem antiga e feudal nos tempos dos guerreiros como nobres, de dominadores sociais se apropriarem como riqueza sua, em dinheiro acumulado, uma parte importante do que resulta de trabalho doutros. Igualmente, a autoridade política de ‘reger’ (rex) o mundo social com corpos armados, havendo lei da guerra de que eles são sintoma e efeito, é necessária em vista das leis e para resultarem em ordem, mas as armas calam as bocas que reclamam justiça para as possibilidades dos trabalhadores, o poder político resulta em segurança dos que o exercem e dos outros dominadores à custa das restrições que impõem. Enfim, o saber, que nas sociedades hodiernas aparece cada vez mais como factor decisivo de trabalho de compreensão de inúmeras dimensões e solução de inúmeros problemas, pede acesso facilitado ao conhecimento a qualquer um que manifeste capacidade de vir a ser um especialista. Aqui é mais difícil de simplificadamente dizer como é que os que trabalham nos médias, de livros e jornais a rádios e televisões, se tornam facilmente coniventes com os ‘poderosos’ do capital e do poder politico, ao servirem o novo “ópio do povo” dos tempos de lazer, tão necessário enquanto divertimento e festa como o sono nocturno (o ‘ópio’ implica gozo, Marx deu por isso ao cunhar a célebre expressão).

Uma ética de não violência
12. Chega-se enfim à questão levantada pelo título deste texto, entre dom e violência. O poder substantivo é a forma mais violenta de violência, porque perene, com raízes que as revoluções não têm conseguido arrancar, mas que se apresenta mascarada de ‘realismo’, de ‘sempre foi assim’. Em face dela, da lei da guerra que a protege, que fazer? Ser e Tempo propunha o par “autêntico / inautêntico”, ou “próprio / impróprio”; ‘próprio’ certamente inadequado face ao motivo derridiano de “apropriação”, tal como em ‘autêntico’, há algo da insularidade dos sujeitos e das almas nesta adjectivação. Preferiria o termo de justo para pôr a questão da atitude diante da lei da guerra e dos seus efeitos nefastos, como forma geral da questão ética, se é permitida esta simplificação. Que pode significar “deixar ser o ente”, se for questão de seu ‘ser’: querer ‘ser justo’ e não  se submeter ao dinheiro e ao poder de César e às respectivas ortodoxias? Deixar desvelar-se as doações de que se é fruto, tratar com desvelo – linda palavra heideggeriana da nossa língua – a descoberta da sua contingência, como quando se diz que se teve “muita sorte na vida”[5], reconhecimento que, se por um lado é constatação dum certo contentamento com o que se foi sendo, é também o outro sentido da palavra ‘reconhecimento’, gratidão pela sorte recebida. Esta duplicidade do reconhecimento é uma palavra de justo, que reconhece os dons. Que enfrenta a lei da guerra, localmente (como sempre cada um em qualquer posto que seja) sem o reforço dos feitiços, do poder do dinheiro que compra ou da instância política ou social que ordena ou das ortodoxias que fazem rebanhos. Um dos indícios de que se trata dum/a justo/a é a guerra que os poderes lhe fazem, contraste claro com a desapropriação pelo justo de coisas que aprendeu na tribo, a despossessão dos feitiços e das suas poses mediáticas, fecundidade não sabida de dons. A fecundidade é um outro indício, quando sucede algo que vai além das possibilidades aprendidas, inesperado por isso (“rasto diacrónico”, em linguagem de Levinas). Experiência de algo que em linguagem cristã se chamava “graça”, a gratuidade d’ “a rosa (que) é sem porquê” (Angelus Silesius, poeta alemão citado por Heidegger), tudo nela é dom.
13. A doação retirada heideggeriana é pré-ética, já que também é doação da violência, aqui Heidegger (§ 9) teria razão. Se o dom triunfou na não-violência do Mahatma Gandhi, que obteve a independência da Índia face ao império inglês, desvalido é certo das consequências da guerra mundial, ele está longe de assegurar sempre a fecundidade: a ‘graça’ pode virar ‘desgraça’, como aconteceu ao líder galileu dum movimento popular a quem propôs uma ética de doação não violenta, se se pode dizer, para enfrentar desabridamente os poderosos do seu tempo no Templo deles, mas que acabou traído e crucificado.



[1] Como é manifesto na seguinte citação do antropólogo francês Pierre Clastres que evoca o silêncio do discurso etnológico recente sobre a guerra nas socie­dades primitivas, em contraste com a unanimidade, desde o sec. XVI, dos viajantes, exploradores, missionários, comerciantes ou es­tudiosos: “americanos (do Alaska à Terra do Fogo) ou africanos, siberianos das este­pes ou melanesianos das ilhas, nómadas dos desertos australianos ou agri­cultores sedentários das florestas da Nova Guiné, os povos primitivos são sempre apresentados como apaixonadamente dados à guerra; é o seu carác­ter particularmen­te belicoso que impressiona, sem excepção, os observado­res euro­peus. [...] o que é suficiente para autorizar uma constatação socio­lógica: as sociedades primitivas são sociedades violentas, o seu ser social é um ser-para-a-guerra”. P. Clastres, "Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas", in Clastres e outros, Guerra, religião, poder, [Libre 77-1], Ed. 70, 1980. Para a História, bastará a constatação de que as sociedades sem industrialização foram dominadas politicamente por castas nobres de guerreiros.
[2] ‘Acidente’ e ‘acontecimento’ são motivos equivalentes, implicando ambos a não necessidade ou imotivação, só que o primeiro é mais conotado negativamente e o segundo positivamente, mas ambos são alheios à diferença entre bem e mal.
[3] Esses três textos, de Marcos, Mateus e Lucas, com as suas diferenças também políticas, opõem o seu principal actor, Jesus como Messias que fomenta o reino de Deus”, ao Templo que, na altura em que o primeiro deles foi escrito, acabava de ser incendiado por Tito no ano 70. Ora, este reino escatológico por vir (que não veio) cifra-se no debate ideológico em três oposições: “Deus e o Dinheiro” (Mateus 6,24,), “Deus e César” (Marcos 12,13-17 e paralelos nos dois outros), “Deus dos vivos e Deus dos mortos” (Marcos 12,27 e paralelos)
[4] A nossa noção de história, com uma finalização, era ignorada por eles, não passando de acidentes em série, por assim dizer. O antes / depois de Cristo assinala como a noção iraniana e hebraica de escatologia marcou a possibilidade da noção moderna de história, de que as filosofias de Hegel e depois de Marx revelam as marcas históricas e evolutivas do século XIX, industrial e pós revolução francesa.
[5] Como disseram Miguel Lobo Antunes e Rui Vilar, exemplos que retive dos bons tempos das entrevistas de Ana Sousa Dias no 2º canal da RTP.

Sem comentários: