1. Uma questão que se pode pôr à ciência que se
ocupa dela, a Física, é a de saber o que é a energia, que reconhecidamente se conserva no universo e
nele se degrada, segundo os dois princípios da Termodinâmica, mas também é
susceptível de constituir estabilidades instáveis (Prigogine), segredo
entrópico da evolução dos vivos e da história dos humanos[1].
Dizia o conceituado físico generalista R. Feynman, num texto citado a seguir,
que “na física de hoje, não temos o conhecimento do que é a energia” (p. 95).
Então haverá que questionar a Física e a Química com os olhos instruídos por
Prigogine, como ele próprio não o terá conseguido por falta de filosofia
adequada. Antes porém, interroguemos a própria palavra que o físico inglês
Thomas Young, em 1807, foi buscar ao vocabulário filosófico de Aristóteles para
substituir as ‘forças vivas’ dos físicos clássicos. O par dunamis / energeia
corresponde na Physica de Aristóteles a duas situações do movimento dum
ente vivo, animal ou humano, da sua alteração: dunamis, a que precede o movimento mas corresponde a
haver já a sua capacidade, a ‘potência’ (tradução habitual) ou possibilidade,
‘ele pode’ (do verbo dunamai,
poder) mudar, incluindo a força para tal (donde a ‘dinâmica’ newtoniana como
teoria das forças); en-ergeia,
a situação que corresponde ao ‘acto’ (tradução habitual) desse movimento
efectuado, trabalho (-ergon)
sobre si (en-); e como
movimento diz-se kinêsis,
donde ‘cinético’, o que dá para entender porque é que os físicos europeus foram
buscar este par aristotélico para dizer as energias potencial / cinética, com a
diferença de que em Aristóteles se trata da própria substância (ousia) que se move, que se altera, enquanto que na
nossa física se trata da diferença medida, relativa à energia, entre duas
posições de graves, por exemplo, no campo da gravitação: numa barragem, a
diferença entre o nível da água da albufeira e a posição mais baixa da turbina
é a energia potencial, enquanto que a energia cinética é a do movimento da água
caindo efectivamente dum desses níveis para o outro.
O labor no conhecimento científico
2. Poder-se-ia pensar que, anterior à vida, a
matéria de que Física e Química se ocupam, a matéria ‘verdadeiramente substancial’,
conhece uma autêntica estabilidade sem oscilações instáveis. É o que aliás
Prigogine parece ter pensado, ao falar na “estabilidade dos átomos do nosso
Universo morno”, como que se postulasse que eram inacessíveis à ‘produção de
entropia’, descoberta na química do metabolismo celular (o que lhe valeu o
Prémio Nobel de Química em 1977) e que ele buscava em turbilhões e outros
fenómenos mais ou menos marginais, embora por vezes diga que a sua nova
concepção se destina a toda a Física. Para tratar da questão, podemos recorrer
ao famoso texto Seis lições sobre os fundamentos da Física do prémio Nobel Richard Feynman[2],
cuja pedagogia inovou de tal maneira que talvez se o possa ler na sua lógica de
1961-62, sem ter que saber das descobertas dos mais de 50 anos posteriores,
acreditando que os ‘fundamentos’ da Física não foram entretanto alterados nem
terá havido textos acessíveis a leigos tão pujantes de clareza.
3. Para adaptar a perspectiva entrópica de
Prigogine além do metabolismo celular, à Biologia animal e às ciências
relativas aos humanos, foi necessário denunciar o preconceito aristotélico
substancialista no paradigma dessas ciências: ‘corpo próprio’ nas biologias em vez de ser no mundo[3], ‘população de indivíduos’ como constituindo as
sociedades, em vez dos paradigmas dos usos dessa população nas unidades
sociais. A questão será a de saber se se pode, e como, ‘des-substancializar’ os
átomos e as moléculas de que os graves e os astros são constituídos. O que será
um procedimento fenomenológico equivalente em relação à Física lendo o texto de
Feynman? implicará privilegiar o motivo do campo de forças atractivas sobre
os corpos ou os átomos a eles sujeitos. Trata-se dum motivo da Física que é paradoxal, já que, tomando o exemplo
do sistema solar e dos seus planetas, são os astros que se atraem
reciprocamente, com o sol como foco principal, não sendo o campo ‘nada’ de substancial, apenas o jogo entre si dessas diferentes forças
de atracção, jogo esse que é no entanto o que sustenta o sistema na sua estabilidade,
reconhecida desde os antigos Caldeus e Egípcios. Este paradoxo não permite
decidir entre os astros e o campo, já que este não existe sem eles, mas é o que
faz o preconceito substancialista, de índole empirista, que considera o campo
‘depois’ dos astros, a partir das suas substâncias e massas. Para compreender
isto, teremos que começar por uma questão epistemológica prévia: porque é que o
laboratório é essencial à Física?
4. O laboratório busca aliar saber e técnica para pôr à prova as definições e argumentos
filosóficos herdados dos Gregos e dos Medievais[4];
ele consiste 1) em retirar um
fenómenos dado (delimitado, definido) da respectiva cena de circulação aleatória, 2) determinando-lhe o movimento em condições
de determinação com técnicas de
medição apropriadas, 3) ao conhecimento adquirido devendo seguir-se um
movimento de restituição teórica do fenómeno conhecido à cena donde fora retirado (já que é esta
‘realidade’ que se busca finalmente conhecer por etapas laboratoriais). Tal
como em geometria e astronomia, os números da matemática, entre equações e
medidas, permitem uma exactidão maior do que aquela que as definições teóricas
buscam em linguagens estruturalmente polissémicas como a matemática não é: esta
sua exactidão – adentro de margens de erro, repetem-se tais quais em qualquer
outro laboratório – corresponde a uma estabilidade a que as filosofias nunca chegaram, mas também
não as próprias teorias científicas que interpretam os resultados das
experiências laboratoriais. Já que estas têm um ponto fraco, são fragmentárias
(como qualquer tipo de problemas em álgebra clássica, cada um com a sua
equação), só permitem conhecer com exactidão laboratorial de cada vez um
aspecto determinado do movimento dum fenómeno, sendo à teoria, herdeira da filosofia,
que cabe a unificação do conhecimento, mas este sempre aproximado, instável pois, já que os ‘fenómenos inteiros’ não são
susceptíveis de laboratório e são obviamente indeterminados nas respectivas
cenas de aleatório[5]. Assim, por
exemplo famoso, Newton descobre as equações da força da gravidade sem saber
imaginar esta, como ainda hoje, segundo Feynman, não se sabe o que é a energia
ou o porquê da inércia.
5. Uma questão decisiva do laboratório pode ser
ilustrado a partir da famosa experiência de Galileu demonstrando o movimento
uniformemente acelerado com uma bolinha correndo por uma ranhura num plano
inclinado. Não havendo ainda relógios adequados a medir esses tempos, Galileu
usa um recipiente com água que escorre durante o tempo da queda e depois se
pesa, “as diferenças e proporções entre os pesos dando-nos as diferenças e
proporções entre os tempos”[6].
Medir o tempo em gramas de água ou em segundos, tanto vale, só das
diferenças sabe o físico experimentalmente, e não das ‘substâncias’; sobre o tempo define e argumenta, faz teoria, ou
seja, filosofia; o mesmo se dirá do espaço, da massa, da força, da energia, da
intensidade de electricidade, como atesta a convencionalidade (arbitrária) das
‘convenções’ que definem unidades das diversas dimensões (esta palavra
sublinhando que em Física só se trabalha sobre medidas). As teorias evoluem
historicamente, enquanto que as experiências, fora a precisão das técnicas de
mensuração, continuam válidas: por exemplo, se a física de Newton foi
reelaborada por Einstein para fenómenos de velocidade perto da da luz, ela
continua válida cientificamente para a velocidade da maior parte dos fenómenos
de engenharia corrente na Terra. Ora, com as técnicas de mensuração, foi a
técnica que entrou no âmago das ciências físicas e (bio)químicas, donde que
delas tenham vindo a resultar as invenções técnicas mais diversas,
testemunhando da estabilidade
dessas ciências, enquanto que os cientistas debatem as respectivas teorias,
testemunhando assim da sua instabilidade: o grande problema destas é o movimento de restituição do saber
fragmentário adquirido laboratorialmente sobre o fenómeno, restituição à cena
donde ele foi retirado, fora do laboratório pois, ao fenómeno inteiro, já que é
sobre este que deve versar a teoria. As técnicas laboratoriais fazem parte da
elevação entrópica das ciências exactas, juntamente com as ‘vontades’ dos
cientistas que, na definição de ‘paradigma’ de Kuhn, são por este ‘atraídos’ (attract)[7]
e ligadas as suas ‘vontades’ como colegas do mesmo paradigma pela respectiva
aprendizagem. À estabilidade
corresponde o curso normal dos paradigmas segundo Kuhn, o que se poderia chamar
a homeostasia laboratorial, em
contraste com as suas crises, manifestação de instabilidade em fortes polémicas, quantas vezes de gerações.
6. Podemos agora voltar ao heliocentrismo. Se fez
parte do génio de Newton compreender a estabilidade heliocêntrica do sistema em
termos do princípio da inércia e da sua descoberta das forças de gravidade como
atracção dos corpos na razão directa das suas massas e na inversa do quadrado
da sua distância – isto é, ele não teria lá chegado sem estes dois motivos
fundamentais da sua Mecânica –, o que é notável é que a sua demonstração não se
fez através deles mas utilizando as leis de Kepler (o qual utilizara as
medições de Tycho Brahe, anti-copérnico), nas quais jogam apenas os espaços e
tempos dos percursos das órbitas dos planetas e as razões entre as respectivas
superfícies. Parte-se portanto do sistema enquanto ‘campo’ teórico, concluindo aliás Newton pela confissão,
reiterada por Feynman cerca de três séculos mais tarde, de que não sabe
explicar o que é a força da gravidade enquanto atracção a distância[8],
como ainda hoje, segundo o mesmo Feynman, não se sabe qual é a causa do
princípio de inércia (que mantém um corpo em movimento se nenhuma força actua
sobre ele, p. 114), cujos efeitos podem todavia ser medidos e calculados.
Pode-se dizer que esta maneira ‘não substancialista’ de demonstrar o
heliocentrismo bate certo com o que se pode deduzir da afirmação de Galileu
medindo o tempo em unidades de peso de água: ele só conhece “diferenças e
proporções” entre medidas de tempo, e não
o tempo em si, não as substâncias (númenos, dirá o newtoniano Kant).
Ora, acontece que Feynman procede de maneira inversa à de Newton, por exemplo,
ao definir carga eléctrica, parte das cargas para os campos: “temos assim duas
regras: (a) as cargas geram um campo e (b) as cargas em campos ficam sujeitas a
forças e movem-se” (p. 60), 1º cargas, 2º campo, 3º forças! Outro exemplo: no primeiro capítulo,
argumenta longamente sobre os átomos de água, vapor e gelo sem nunca referir as
forças electromagnéticas perdidas na vaporização ou ganhas na solidificação. O
problema manifesta-se ainda na sua concepção de força como interacção, a da
gravidade sendo uma interacção a distância (p. 57), o que parece significar que
a força é pensada como as forças habituais da mecânica, tipo bola de bilhar
sobre outra bola de bilhar, acção e reacção, aquilo a que se pode chamar ‘força
local’. Feynman chega ao ponto de caracterizar a força electromagnética pela
“propriedade de gostar de repelir e não de atrair” (p. 58): só considera a
relação entre cargas do mesmo sinal e não entre as de sinal contrário, de
atracção, ora, são estas que justificam que os átomos tenham electrões,
atraídos pelos protões, bem como que haja moléculas e graves, gelo, água e
vapor! Ora bem, as forças fundamentais da Física, nuclear, electromagnética
e da gravidade, constituintes dos
átomos, moléculas, graves e astros, as únicas das quais há campos, são forças atractivas, e é porventura a razão pela qual não sabemos
imaginá-las: a nossa experiência intuitiva é justamente de ‘forças locais’, tão
importantes na dinâmica newtoniana[9].
Dada a sua portentosa atenção ao detalhe que muda as perspectivas, não se pode
apontar estas coisas como devidas à inatenção de Feynman, só pode ser algo de
inscrito na força do paradigma (atractiva!) que institui os físicos enquanto
tais (donde que não haja que esperar da parte deles grande aceitação deste
texto).
Energia, força e entropia
7. Se os grandes ‘génios’ da Física, desde Newton
até Feynman, não conseguiram, a partir das ‘substâncias’, imaginar o que são as forças atractivas, a
energia e a inércia[10],
não se tratará de esperar um futuro ‘génio’ que o consiga; é mais provável
pensar que o problema está mal posto: porque não partir destes motivos
‘inexplicados’ para compreender melhor o que são as tais ‘substâncias’? Estes
motivos, que logo de início estruturaram a Física clássica, manifestando como
os seus inventores eram também hábeis filósofos, constituem o motivo
fundamental de campo; é claro
que não tenho a pretensão de os ‘compreender enfim’, mas, assim como se fala de
princípio de inércia, eles
poderão ter um estatuto, digamos, de princípios laboratoriais, isto é, de princípios duma filosofia (duma
teoria) confrontada com a experimentação de movimentos, princípios necessários
à compreensão de qualquer análise de laboratório[11].
Des-substancializar será então considerar teoricamente forças e energia como
epistemologicamente (e não cronologicamente!) prévias às ‘substâncias’, ao
átomo, molécula, grave, astro, carga electrica, as 3 forças jogando juntas e a
energia sendo o que, por inércia, se expande sem elas. Não se ‘parte’ do átomo,
como faz Feynman, porque não há ‘o’ átomo, nem ‘a’ molécula, nem ‘o’ grave: o
que há, antes de mais, são os campos dos astros em que os três tipos de força
actuam. No caso do sistema solar, as órbitas dos astros são estáveis devido ao
campo de forças de gravidade que os retêm, campo que são eles próprios em movimento inerte faces uns aos outros[12];
também os graves de que cada astro é feito são retidos pelo campo dessas forças, graves que por sua vez
são feitos de moléculas que forças electromagnéticas retêm agregadas, os seus átomos por sua vez devendo a
sua estabilidade à retenção de
protões e neutrões no núcleo por forças nucleares. O que significa este ‘reter’
sublinhado quatro vezes? Que o que é retido tem estabilidade e que a perderia se deixasse de ser retido: a explosão
da gasolina líquida num motor é um exemplo do fim duma tal retenção por forças
electromagnéticas e a consequência é que as suas moléculas, gasosas agora, se
expandem sob forma de explosão, o mesmo sucedendo, mutatis mutandis, aos protões e neutrões das bombas nucleares que
explodem por lhes serem retiradas as forças nucleares, como ainda se expandem
os fotões quando electrões se movem e perdem algo da força que os retinha. Se
um foguetão enviado à Lua ou uma sonda a Marte, após deixarem o campo da força
de gravidade que os retinha na Terra, seguem sem precisarem de mais energia do
que a que os expulsou (seria impossível alimentá-los pela estratosfera fora
como o foram até aí), seguem num movimento inerte, perdido de ligações a forças
quaisquer. Então definir-se-ia uma força atractiva pela sua capacidade de
reter o que, de inércia sua, se expande ilimitadamente. Ora, o que assim se expande, explode, são
exemplos essenciais e não quaisquer, de energia. Então, o que as forças atractivas fazem em
seu reter ou ligar, é criar
entropia positiva, isto é,
energia interna tal como Einstein a concebeu como equivalente à massa vezes o
quadrado da velocidade da luz[13].
A palavra grega ‘entropia’ (‘fechar-se em si, timidez, vergonha’)[14]
convém a esta ‘energia’ einsteiniana. Não são só os gases e os líquidos, os
ares e os mares, que são sujeitos a ventos, ondas e outros turbilhões, também
os sólidos são instáveis
segundo a sua posição no campo da gravitação, como rochas sujeitas a erosão,
sucedendo por vezes, de forma dramática, que vulcões ou sismos nos venham
recordar que as palavras ‘terrível’ e ‘terror’ derivam de ‘terra’.
Instabilidade química ainda, sempre que a proximidade entre moléculas dê azo às
transformações que a química estuda, como os ferros que se oxidam. Tudo isto
será construído entropicamente, em sentido de Prigogine, e é por isso que tudo
pode ser destruído, que há entropia no sentido de Clausius, é por isso que há
uma ‘história’ do Universo, da cena da gravitação[15].
8. Explosão, expansão, inércia, serão pois
contra-exemplos da entropia prigoginiana, são movimentos de degradação dela,
entropia clausiana que cresce. Mas são também os exemplos da estranha mecânica
quântica, cuja principal estranheza é justamente a instabilidade da sua
população de partículas, electrões à solta que disparam como balas ou como
ondas (exemplos de Feynman no último capítulo), raras sendo as que conseguem
perseverar quando soltas (protão, electrão, fotão e poucas mais); nem se lhes
pode chamar ‘população’, que implica duração, nem ‘mundo’ ou ‘universo’
quântico, nem sequer ‘matéria’, já que ‘aquilo’ (que é estranho) só existe na
luz, irradiações e corrente eléctrica e fora disso fugazmente em laboratórios.
Quando o grande físico multiplica as advertências sobre a dificuldade de compreender
a gravitação em termos de forças electromagnéticas quânticas, deplorando o que
se veio a chamar a não unificação das duas grandes teorias da Física do século
XX, relatividade e quântica, a questão que o leigo pode colocar é a seguinte: qual
é a barreira entre a grande
estabilidade do nosso universo macro e a instabilidade inacreditável, ultra
caótica, deste estranho micro quântico? Eis a resposta que arrisco: os
campos das forças atractivas. Dum
lado, só partículas, ainda que átomos isolados, do outro graves e astros que,
analisados, se vê que são constituídos por átomos e seus núcleos, por moléculas[16].
Ora, como é que esta barreira pode ser ultrapassada? De cá para lá, por
desintegração técnica dos graves até às partículas, em bombas nucleares ou nos
grandes aceleradores; e de lá para cá, para a nossa matéria? Do big Bang para
as estrelas? É possível ‘pegar’ em protões, neutrões e electrões e fabricar
átomos e moléculas?
9. Se se aceita a concepção de ciência física
proposta acima (§§ 4-5), haveria que concluir que o seu núcleo duro consiste
nas equações correspondentes aos resultados experimentais, estes sendo os
‘dados’ que vão ‘verificar’ nessas equações as suas ‘variáveis’. Enquanto os
instrumentos de medida não variarem, essas equações (variáveis e dados) verificam-se, como se diz, são verdadeiras. Galileu e
Newton resistem às físicas do século XX, era sobretudo a física deles que se
ensinava nas escolas de engenharia de meados desse século. Interpretar essas
equações e essas experiências fragmentárias numa teoria, com as suas definições
de conceitos e respectiva argumentação, sendo necessário para criar o próprio
laboratório, é todavia trabalho de físicos ‘filósofos’ (ou teóricos) que
definem e argumentam para compreenderem o que ao laboratório vem, já que as
equações não atingem as ‘substâncias’, apenas diferenças e proporções, como
disse Galileu[17]. Isso tem
algumas consequências que os físicos terão dificuldade filosófica em aceitar.
Uma delas é que os laboratórios são irredutíveis e portanto as equações e as
técnicas de mensuração da Física newtoniana continuam cientificamente válidas,
nomeadamente permitindo inúmeras construções técnicas, ainda que a
interpretação ‘filosófica’, vinda de outros contextos laboratoriais
(velocidades altíssimas, distâncias ultra microscópicas), possa rever as
antigas interpretações, mas não declará-las ‘erradas’, como faz Feynman
peremptoriamente uma vez ou outra. Fazendo-o, e é uma segunda consequência, não
é enquanto físico (já que os respectivos laboratórios são irredutíveis) mas
enquanto filósofo. Igualmente ‘filosófica’ será a pretensão de que a mecânica
quântica seja válida em toda a realidade extra-laboratorial, no nosso universo
material onde as velocidades são ‘pequenas’ e ‘minúsculos’ os comprimentos de onda,
por via das dimensões macroscópicas dos graves. Ou seja, dada a
irredutibilidade dos laboratórios respectivos, a tão desejada unificação das
duas grandes teorias do século XX só poderia ser ‘filosófica’, incluindo a
dimensão filosófica das ciências. Ora, o filósofo Cornelius Castoriadis evoca
“a antinomia epistemológica formulada por Heisenberg desde 1935 entre a
constatação da não validade das categorias e das leis da física ordinária no
domínio microfísico e a demonstração dessa não validade por meio de aparelhos
construídos segundo as leis dessa física ordinária e interpretadas segunda as
categorias usuais”[18].
O que significa que a unificação das duas Físicas, relatividade e quântica, só
seria possível tendo em conta os laboratórios em que elas foram formuladas, os
seus instrumentos de medição e respectivas diferenças de escala[19],
e portanto também a validade laboratorial da Física de Galileu e Newton, cujas
equações aparecem quando reduzidos os factores de escala (quando v/c tende para
zero nas equações relativistas).
A entropia e a flecha do tempo contra o determinismo
10. O que Prigogine descobriu foi o segredo de
toda a evolução, de toda a história, invenções e descobertas, da chamada flecha
do tempo. A partir duma situação
caótica ameaçando degradação, implosão ou explosão, entropia de tipo Clausius,
como é que pode a vida adiar a morte, a desintegração: como é que, de formas
muito diversas consoante o nível de que se trata da chamada realidade, se
produz entropia de tipo Prigogine, se criam novas estabilidades com suas regras
adequadas a circulações aleatórias, portanto instáveis. Permitiu compreender
que a entropia não é só ‘não’, é ‘sim’ e ‘não’, sem se oporem (como foi talvez
a sua tendência de pensamento), já que a flecha do tempo vai primeiro ao ‘sim’
e depois ao ‘não’, a morte depois da vida e como condição desta (já que só
sobrevivemos comendo cadáveres).
11. Recapitulemos. Há duas formas essenciais de
matéria na Terra. Matéria inerte em sentido clássico que se faz da agregação de moléculas relativamente
simples e iguais para atingir
dimensões macroscópicas, sólidas, líquidas e gases: como perdura, de gelo a
água e desta a vapor, a ligação entre os átomos de oxigénio e de hidrogénio,
que se revela mais forte do que a solidez e a liquidez. A outra, matéria
viva, que, para também chegar a
dimensões macroscópicas e formar organismos muitíssimo variáveis, se faz da
composição de moléculas diferentes em suas funções celulares e muito complexas, à base nomeadamente de carbono, e por isso
instáveis e pedindo serem refeitas constantemente, pedindo alimentação; que
contraste com a estabilidade e a impenetrabilidade dos átomos, graças aos seus
núcleos, impenetrabilidade que
os torna irremediavelmente outros entre si. O que fez a vida, foi inventar um novo nível de mesmo, acima desta alteridade empírica radical: o nível
de indivíduos diferentes da mesma espécie. E foi no metabolismo da matéria viva que
Prigogine descobriu uma entropia positiva.
12. É de crer que o sábio tenha sido levado pela
importância da sua descoberta a uma oposição entre a sua entropia e a de
Clausius, a uma exclusão entre os fenómenos entrópicos, a uma oposição em
seguida às certezas que acompanharam as lendárias descobertas dos seus
predecessores, cujo fim um seu título proclama: “o fim das certezas”[20].
Ora, as certezas da física clássica, laboratoriais, mantêm-se, como se disse,
não passaram a ser leis meramente estatísticas, e em vez de se dizer que são
leis deterministas, deve-se dizer que são leis determinadas, isto é, deduzidas nas condições de determinação do laboratório. O
problema é que sempre se pensou que o que era válido no laboratório era
automaticamente válido na chamada ‘realidade’; mas obviamente que aí sempre
houve incertezas, devido à confluência não dominável de efeitos, que é
justamente o que implica a necessidade de laboratório. Ora, o motivo da cena, como é claro com a
máquina automóvel, esclarece a questão: as regras de detalhe estudadas pelos
laboratórios correspondem no todo teórico a situações aleatórias, a máquina é
construída rigorosamente nas
suas peças para seguir o aleatório da lei do tráfego. Como a anatomia de qualquer animal, ‘construída’
segundo a cruel lei da selva que comanda que se coma outro vivo para se
sobreviver. A lei da gravidade vale sempre na terra, mas a trajectória de cada
grave depende da sua posição aleatória na cena. Quanto à mecânica quântica, o
problema da incerteza das medidas terá a ver com o facto de que a distinção
entre laboratório e cena fora desaparece num acelerador de partículas
(instabilidade total, nem de cena se pode falar). Que fora do laboratório reina
a contingência sempre se soube, duma maneira ou doutra, desde Platão que
colocou as entidades resultantes da definição na eternidade celeste porque na
terra só havia contingência, geração e corrupção. Mas é certo que, na esteira
dele e do neoplatonismo do século III onde o terrível Agostinho foi beber, um
Deus absoluto opunha-se a essa contingência e marcou os sábios europeus, fossem
ou não crentes, com uma concepção determinista que extrapolava as certezas
laboratoriais (que a astronomia justificava), e contra esse determinismo
Prigogine estava certo. Mas era preciso outro argumento em tal combate. O que
não se sabia – não se escreveu que se soubesse da forma generalizada que convém
a um tal saber –, o que o mestre também não soube, é que as regras (ou leis),
os saberes científicos que alimentaram a narrativa lendária das ciências
europeias dos últimos quatro séculos, não se realizam substancialmente, vimo-lo com Galileu, mas são regras estruturais
de regimes aleatórios de circulação: exemplo do automóvel entre o rigor laboratorial da sua construção e o
aleatório do seu jogo no tráfego, da anatomia animal que joga no aleatório da
caça ecológica e da fuga a ser-se caçado, das regras da língua que servem para
o aleatório das conversas ou das escritas. E este ser das regras para o
aleatório só é possível, em todos os seus níveis, devido à entropia
prigoginiana. Como acima das
rochas, dos mares e dos ares, móveis por certo mas duradouras de grande
estabilidade se as temperaturas não mexerem muito, se estabeleceram
in/estabilidades vivas, não só eminentemente frágeis já que mortais, mas fazendo
da morte vida, lei da selva, em
espécies cada vez mais complexas, que são elas que duram além das gerações de
indivíduos mortais que procriam.
13. É o ser das leis científicas para o
aleatório, quero crer, que
reabilita – sem determinismos e segundo a relatividade do saber ocidental
enquanto histórico – a verdade delas e a das ciências exactas dos sábios
europeus, contra muitos dos seus
próprios herdeiros que hoje facilmente crêem que uma tal ‘verdade’ é
provisória, um erro suspenso. As técnicas que dos laboratórios delas derivaram
desmentem esse cepticismo.
[1] Com alguns acrescentos ao que aqui coloquei em 10/ 2014 e agora retirei, por ocasião da comunicação que dele fiz ao Colóquio de Fenomenolgia e Física na Faculdade de Letras de Lisboa, 16-18/10/17, What is a physical entity?, é um texto que propõe uma fenomenologia científica (http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/)
e considera quatro grandes cenas históricas: a do gravitação (cosmo), a da
alimentação (vida), a da habitação (sociedades humanas) e a da inscrição (saber
definido ocidental), os elementos de cada uma sendo caracterizados
respectivamente pelo núcleo atómico, pelo ADN, pelas unidades sociais com
disciplina sobre a sexualidade e pelo alfabeto e definição. A viragem
fenomenológica em relação à filosofia europeia deu-se com Husserl, Heidegger e
Derrida, colocando as diferenças (respectivamente ontológica e com a) antes das substâncias, como adiante se
dirá terem iniciado Galileu e Newton.
[3] Ver No paradigma da Biologia falta
o ‘ser no mundo’ (debate com Teresa Avelar e António Damásio) in http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/
[4] Herança reconhecida pelo grande
físico que foi Feynman: “[...] o que era hábito chamar filosofia natural, de
onde derivou a maior parte das ciências” (p. 74), crendo aliás, erradamente mas
como Newton, que a Física é o seu equivalente moderno.
[5] As regras que as ciências
descobrem jogam em função de tal aleatório, como um automóvel é projectado
laboratorialmente para se mover no aleatório do tráfego.
[6] Galilée, Discours et démonstrations
mathématiques concernant deux sciences nouvelles, introd., trad. e notas por M.
Clavelin, 1970, A. Colin, p. 144.
[8] Feynman
diz que “Newton não elaborou hipóteses, ficou satisfeito por descobrir o que
ela fazia, sem se interessar pelo seu mecanismo. Ninguém desde então propôs
qualquer mecanismo” (p. 128). De facto o que Newton disse foi que não era capaz
de ficcionar (latim ‘fingere’, fingir), imaginar, uma hipótese explicativa
dessa estranha força a distância : “não consegui ainda deduzir dos
fenómenos a razão destas propriedades da gravidade e não imagino uma
hipótese (hypothesim non fingo)” (Newton,
Principes mathématiques de la Philosophie naturelle, trad. de Mme Châtelet, Paris
[1756], édition fac-simile de A. Blanchard, 1966, pp. 178-179).
[9] Quero
crer, seja dito de passagem, que o ‘gravitão’ dos físicos que não há meio de
ser encontrado, releva desta concepção de força local e que não terá cabimento
em forças atractivas. Mas como não se sabe o que estas são, só que não são
substanciais...
[10] Feynman sublinha constantemente
esta ignorância dos físicos do seu tempo sobre motivos fundamentais da Física:
pp. 57, 66, 95, 106, 107, 113-4, 128-9, 133.
[11] As forças atractivas, a
energia e a inércia não têm qualquer sentido senão pela sua proveniência do
laboratório físico, o que não é verdade de espaço, tempo, velocidade, peso… Sem
o campo da gravidade, não há movimentos de graves na terra, sem explosões
electromagnéticas ou nucleares não há óptica nem relatividade nem mecânica
quântica.
[12] A diferença fenomenológica entre o campo das forças e os astros ou graves que o
constituem é equivalente à diferença entre espécie biológica e os seus
indivíduos, uma língua e os seus discursos e textos, uma sociedade e as suas
populações. Afirmar num primeiro tempo o primado do ‘campo’ sobre os astros, só
se pode fazer apagando-o em seguida para se dizer que são o ‘mesmo’, um não vai
sem os outros.
[13] Foi sobre radiações
electromagnéticas que ele argumentou no 4º texto de 1905, de três páginas
apenas, que estabelece essa fórmula.
[14] Em 'entropia', o verbo trepô significa ‘mudar, virar’, que o
‘en-’
interioriza, significando ‘mudança interior’, de sentimentos: aqui, de energia
interna.
[15] Até onde é que a ‘atracção’ por forças continua a jogar nos níveis
entrópicos da vida e dos humanos? Ao nível biológico, as noções de ‘faro’ e de
‘fome’ jogam como atracções químicas essenciais na reprodução alimentar dos
vivos, assim como as pulsões sexuais são atracções químicas para a reprodução
das espécies. Na habitação social, o motivo de ‘vontades’ responde igualmente
ao paradigma dos usos que as ‘atrai’, continuando o jogo dos desejos a ser de
atracção, tal como as rivalidades funcionam entre rivais que se buscam combater
e vencer. Enfim, ao nível da inscrição, a curiosidade é o grande motor atractivo
de todo o saber, aprendizagens como descobertas e invenções. Treino e educação
são maneiras de reter a espontaneidade química dessas atracções para criar nelas entropia, isto
é, fazer delas uma espontaneidade hábil capaz de servir em qualquer momento
útil. Eis uma maneira de justificar aos físicos a ousadia da proposta feita.
[16] Seria tentado a dizer que a
física das partículas é kantiana e a do átomo husserliana. Os pés de barro do
kantismo são o seu ponto de partida nas ‘sensações’, como se estas fossem
‘entes’ donde partir, enquanto que Husserl foi mais avisado e assentou o seu
edifício fenomenológico na percepção da coisa, sempre a mesma ainda que
variando as percepções dela. Quer Kant quer a compreensão (que me parece ser a)
da física das partículas obedecem ao princípio cartesiano de ir até ao mais
simples e depois ir subindo. A questão é a de saber se esse mais simples,
sensações e partículas respectivamente, subsistem por si de maneira a poderem
servir de base possível da síntese.
[17] A primeira definição de Newton é
de “quantidade de matéria”, que designa pelas palavras ‘corpo’ ou ‘massa’ e
conhece-se pelo peso dos corpos, isto é, por mensuração; começara aliás por
dizer que “os Modernos rejeitaram enfim, há algum tempos, as formas
substanciais e as qualidades ocultas”. Quantidade (por diferenças medidas, como
Galileu) e não qualidade: des-substancialização.
[18] “Science
moderne et interrrogation philosophique”, Encyclopædia Universalis, vol. Organon, 1975, p. 48.
[19] Tidas em
conta nas respectivas equações, como faz para a relatividade restrita Laurent Nottale, La relativité dans tous
ses états. Au-delà de l’espace-temps, Hachette, 1998.
[20] Também editado pela Gradiva,
1996.
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