1. “Na
natureza, disse Lavoisier, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. É
certo, mas ‘nada’ e ‘tudo’ reenviam a coisas, a substâncias que se fazem e se
estragam, vivos que nascem e morrem: surgem de transformações de outras
substâncias, acabam transformando-se em outras substâncias. Este verbo
‘transformar’ parece ser aristotélico: a mesma matéria muda de forma, o que
significaria que não haveria desmaterialização nas transformações de Lavoisier.
Mas a química, que é a ciência destas transformações, sabe o que é a ‘matéria’?
sabe pesá-la, medir-lhe a massa, detectar-lhe as moléculas e os átomos, a
energia que se ganha ou perde nas tais transformações, sobretudo quando se
trata de explosões, nas nucleares surgem as partículas dos quantas, aonde é
difícil de saber a quantas anda a matéria, ou sequer se este termo e o de
substância ainda têm sentido. A dizer verdade, esta falta de sentido possível
acaba por implicar a dúvida de saber se a química ou a física sabem qual o
sentido desses termos tradicionais, ou melhor, se eles têm sentido científico.
Se o labor dos laboratórios nunca passa de medir o que se chama ‘dimensões’ das
coisas, objectos, substâncias materiais, para fazer cálculos com essas medidas
de maneira a saber o ‘como’ quantitativo das transformações medidas e poder
usar esses resultados para criar artefactos técnicos muito diversos, haverá que
concluir com Galileu e Newton que no reino da ‘quantidade’, das ‘diferenças e
proporções’ das medidas, não se sabe da substância ou da matéria. Que as
medidas são convencionais, sabemo-lo desde o balde de água com que Galileu
mediu o tempo das suas experiências: têm regras, mas a convencionalidade das
unidades definidas é uma arbitrariedade no coração da medida – metros ou pés,
quilos ou libras, Celsius ou Fahrenheit – que tem como correlato a
des-substancialização: conhecem-se (e calcula-se) dimensões, medidas, não aquilo
que é medido.
2. Uma incidência manifesta mas pouco
assinalada desta questão é a diferença entre os pensamentos de Kant e de
Husserl, o primeiro assentando a sua critica da razão pura no laboratório de
Newton onde a geometria recebe com o movimento o tempo, enquanto que o segundo
retrocede à geometria anterior à introdução do tempo por Galileu. Porque é que
Kant vai buscar o ponto de partida da sua análise às sensações? Faz parte do
epistema da época, diria Foucault, toda a gente fazia assim, empiristas ou racionalistas:
o dispositivo anti-aristotélico da análise / síntese que analisava até ao nível
mais simples das coisas, aos indivisíveis (átomos, indivíduos), tal como hoje
em dia os físicos quânticos e as suas partículas. E porquê essas estranhas
formas a priori da sensibilidade, a do espaço e a do tempo? Aí parece mais
clara a inspiração newtoniana: ainda era uma novidade extraordinária a medida
do tempo, como novidade era, apesar da geometria, a medida da distância entre
as coisas (e não o lugar delas) a par da do tempo (medida do movimento), nós é
que estamos habituados; um século mais tarde (como era lenta a história!) Kant
estava a revolucionar a filosofia tal como Newton fizera para a ciência, estava
a ter filosoficamente em conta as grandes novidades desta[1].
Porque, saído do tal sono dogmático, tinha um desafio imenso pela frente: a
crítica do conhecimento por Hume deitava por terra justamente essa
extraordinária inovação de cariz científico e filosófico. Há pois que recorrer
a Newton e à sua matemática para combater eficazmente o cepticismo empirista,
deixando a filosofia para os combates mais difíceis da razão pura (ou teórica).
Kant foi popular na literatura do século XIX[2]
um pouco como Einstein no XX, tinha nem mais nem menos salvado a ciência e a
filosofia, digamos retoricamente. O que ele fez foi des-substancializar radicalmente
os ‘objectos’, as coisas a conhecer – que não podem ser conhecidas nelas mesmas,
na sua ‘substância’ (já Aristóteles o pensava, os ‘acidentes’ não o permitiam),
reduzidas pois a númenos. Ou
seja, assim como o laboratório com as suas técnicas de medir espaço e tempo é o
dispositivo central do conhecimento científico, da física, também o sujeito
kantiano tem as suas ‘maneiras’ de fornecer espaço e tempo às coisas
exteriores, que ficam reduzidas, por assim dizer, à inércia em termos de cognoscibilidade. Desorganizadas
enquanto objecto ou ‘fenómeno’, elas oferecem-se às formas de espaço e tempo
como lugar de sensações diversas, que precisam de serem ‘síntetizadas’.
3. O que Kant fez foi retirar à
filosofia, senão a ontologia, pelo menos a fenomenologia, oferecendo os
fenómenos à ciência (onde tive que os ir buscar!), ao conhecimento pelo
entendimento. O que é deixado à filosofia da razão pura é, não o ‘conhecimento’
mas o pensamento enquanto filosofia do conhecimento e da ciência, epistemologia,
pensamento além da ciência e sem ciência. Émulo de Aristóteles num contexto de
civilização quase oposto, é com ele que corta como que definitivamente em
termos de modernidade[3].
Salto por cima de Hegel porque não sei tratar suficientemente da sua fenomenologia
da história e do espírito, coisas que Husserl ignora soberanamente quando
retoma uma preocupação que se pode comparar com a de Kant: com uma grande
diferença, o seu mote do “retorno às próprias coisas” consiste justamente em
contrariar os númenos de Kant (e os acidentes de Aristóteles), o qual aliás
contrariava a grande cisão cartesiana entre duas substâncias, a do pensamento –
res cogitans – e a das coisas
- res extensa – e é o que Husserl busca ligar, mas para isso,
em vez de re-substancializar contra Newton e Kant, prefere
des-substancializá-las a ambas. Como assim? Com uma dupla audácia: por um lado,
dizer que a consciência só é a intencionalidade das coisas que percepciona, dos fenómenos, não é nada sem estes, não tem
‘substância’ dela própria (o sujeito não é autista, se se pode dizer assim);
por outro lado, para evitar o empirismo com que chocara no seu projecto duma
psicologia dos números, des-substancializa aquilo que, da coisa substancial,
‘aparece’ à consciência, esta não retendo senão o seu ‘aparecer’ fenomenal,
estrutural[4].
O fenómeno tal como ele é intencionalizado pela consciência é reduzido da sua substância empírica, mundana. Volta atrás
de Kant e Newton, volta aos Gregos, disse Gardel no artigo sobre ele da Encyclopædia
Universalis, antes pois do
laboratório[5], mas com a
vantagem sobre Kant de abandonar as sensações e de ancorar a consciência na percepção
da coisa, do fenómeno: não integralmente, visto que as percepções são sempre
parciais, nunca se vê as costas do que estamos a ver, mas o que aparece mantém-se sempre ele mesmo na diversidade das suas percepções. Só que a
percepção é predominantemente visual, ignora o espaço (a distância) e o tempo,
este só é considerado num segundo tempo, tal como a linguagem e as categorias,
com o juízo sobre o fenómeno percepcionado. Esta colocação, ultrapassando a
oposição alma / corpo que Descartes recuperara do platonismo e do cristianismo,
aloja todavia a intencionalidade do lado do ‘inteligível’, reduzido o
‘sensível’ do objecto, o empírico e mundano. Não sai da metafísica que Heidegger
caracteriza por esta oposição; este radicaliza a integração da intencionalidade
com o seu ‘ser no mundo’ dotado de tempo, de mãos, de linguagem, ficando retido
apenas pelo seu motivo do ‘pensamento’, que parece não ter chegado a ser
pensamento dum ser no mundo com outros seres no mundo; será a gramatologia de
Derrida que o fará, tendo em conta implicitamente a aprendizagem.
4. Esta questão que dividiu Kant e Husserl, entre
as ‘sensações’ dos cinco sentidos por um lado e por outro a ‘percepção’, que
consiste de facto no privilégio tradicional do sentido visual sobre os outros
quatro, mas nele privilegia também de forma tradicional a visão como actividade de quem vê sobre a recepção do visível dado pelo mundo, ocultando que é a tribo que
ensina a ver de tal ou tal maneira, consoante os seus usos, como se torna óbvio
nos trabalhos de especialização, com suas habilidades e artes implicam aprender
a ver e a nomear o que o leigo não distingue[6].
Uma citação saborosa de Condillac no Tratado das sensações (no texto sobre a psicologia de Maio passado)
conta muito bem o primado do aprender a ver na doação (Heidegger) da visão, esta que a filosofia sempre
privilegiou fazendo par com a voz, se se pode dizer, ambas, visão e voz, vêm
de dentro do sujeito, da sua
intimidade, fonte impartilhável: o logocentrismo (Derrida) não é apenas o privilégio da voz mas
também com ele o da visão, privilégio patriarcal do logos do pai-patrão que vigia os seus escravos, filhos,
mulher, e que não usa as mãos em usos ditos ‘servis’ porque são os servos que
os executam[7].
5. Este tipo de questões sobre as sensações são
hoje em dia assunto das neurociências, mas as minhas leituras deixam-me uma
decepção muito grande: elas tratam das suas coisas segundo um empirismo que se
poderia dizer empírico ele mesmo, já que se ignorando enquanto tal, ignorando o
que são as correntes filosóficas empiristas pré-kantianas; como que um
empirismo empírico que será resultado do carácter necessariamente fragmentado
das experimentações laboratoriais dos neurologistas, tanto de ordem física como
bioquímica. Parece óbvio ao fenomenólogo que não será muito fácil evitar a
dispersão dos fenómenos neuronais, e para começar a questão das áreas neuronais
a analisar, onde os tais cinco sentidos se diferenciam à partida pela
respectiva localização, embora se juntem os grafos dos três principais que se
cruzam em áreas comuns, nos humanos com uma dificuldade acrescida, a audição
também veicula as palavras e as frases, que não fazem parte dos cinco sentidos
tradicionais mas que no entanto abrem ao pensamento, uma outra imensa
dificuldade neurológica, lá iremos. Como é claro que em tudo o que fazemos, em
sentido estrito, mãos e olhos
vão de par, formam o que se pode chamar um eixo comportamental, em que as mãos
tanto relevam do sentido do tacto como dos gestos musculares inerentes ao
fazer, parece óbvio que a este eixo corresponde um grande ‘grafo’ (termo de Changeux)
dos cérebros humanos, o mesmo se podendo dizer do eixo entre ouvidos e voz, segundo grande grafo, um terceiro sendo o dos olhos
e pernas, não apenas para andar e
correr, mas também para firmar-se no fazer o que quer que seja que se faça. Trabalho,
linguagem e andar firme, seria a trindade tribal que a neurologia partilharia
com a antropologia sem saber.
Ora, o seu material de investigação laboratorial é feito essencialmente de
química e electricidade e de, em consequência, o que se mede em suas
experimentações pede uma interpretação teórica, isto é, a integração com inúmeras outras
experimentações, todas igualmente fragmentárias (a ‘teoria’, no grego, é uma
visão de um conjunto extenso, um exército, por exemplo, visto duma colina).
Claro que qualquer experiência supõe uma hipótese teórica, que releva do que o
(paradigma) neurologista crê ser o funcionamento... de quê? eis a grande
dificuldade: do ser humano no mundo? do cérebro? De tal pequena zona dele com
ramificações muito diversas a outras, incluindo os tais órgãos dos sentidos e a
tal zona do córtice antigo que sempre se cruza quando se vem de fora antes de
voltar às áreas comuns do novo córtice (Changeux insistiu nisto, trata-se dum
duplo cérebro, não de dois cérebros)? O risco desta fragmentação é o de haver
um ‘humano aos bocados’, digamos assim. Ora, se essa zona em estudo fica no
percurso dum dos tais grandes grafos[8],
em vez de se procurar uma função específica dela, haverá que pensá-la na
integração desse eixo maior, dos olhos às mãos ou vice-versa, ou aos pés, dos
ouvidos à voz, de eixos neuronais que vão dos órgãos periféricos aos
músculos dos gestos. Pois que se
trata dum eixo biográfico, que se aprendeu e continua a aprender todos os dias,
com frequências temporais mais ou menos susceptíveis de serem apreendidas, o
que permitirá em princípio articular o laboratório do neurologista com o do antropólogo, os usos da tribo do
humano em análise. Difícil será, mas se for possível, que bom não seria para um
uso saudável da neurologia. É certo que é muito complicado, mas é um desafio
que ainda será o de muitas gerações.
6. Ora bem, o que é que isto tem a ver com a
des-substancialização? É que tratar o cérebro como pequenas ilhas locais de
actividades, é tratá-lo como uma ‘coisa’ ou uma mão cheia de coisinhas, ao
invés de se o conceber como rede diferencial de percursos – de espaços e
tempos, ritmos, frequências –, o ‘gravado’ dos grafos reenviando para a tribo e
suas repetições e ritmos, paradigma tecido de usos oscilando entre alianças e
rivalidades. Atender à linguagem pode ajudar a compreender esta dificuldade, já
que ela não se apreende em palavras nem sequer em frases, mas no encadeado
destas que reenviam constantemente para o que já ficou dito e para o que ainda
falta dizer que cria suspense, num jogo espácio-temporal de diferenças
alternando com o outro falante (a différance com a de Derrida). A experiência de J. Gallant mostrou que as palavras se espalham por
todo o novo córtice, segundo um mapa
(para americanos) do que eu chamaria ‘paradigmas de usos ditos’. O discurso
ouvido no eixo ouvidos / voz, ao chegar ao novo córtice, pode ter um destino
neste relativamente localizado (se se trata de especialistas discutindo), ou
oscilar entre vários, se a conversa for eclética, digamos. Uma resposta
prosseguirá do/s mesmo/s local/is (ou talvez de outro/s, se se desconversar ou
se ripostar) para as áreas de Broca e Wernicke onde se articulará para os
músculos da voz. Obviamente que isto é conversa de fenomenólogo, sem outras
pretensões do que ajudar a pensar coisas muito difíceis. De qualquer forma, faz
parte da dificuldade que se trata sempre de trajectos ou percursos
espácio-temporais em que se faz o jogo da compreensão retendo e diferindo, não
é nunca algo de meramente local. Outra parte dificílima é a do pensamento que
se faz neste eixo que se espraia pelo dito mapa, quando não parte de ouvir ou
de ler e não chega à voz, que fica pois ‘mental’ em sentido de Damásio, ou no
de Derrida, a auto-afectação da voz silenciosa. Trata-se da corrente de pensamento
em cada um de nós e das suas associações de ideias, atentos ou divagando. Há de
haver um mecanismo neuronal que silencia a voz, Changeux faz-lhe algures uma
alusão sem detalhe, mas parece certo que essa corrente mental silenciosa[9]
se faz neste eixo ouvidos / voz da linguagem, como qualquer um de nós pode
experimentar que pensa numa das línguas que conhece bem, nunca fora da língua,
ainda que seja músico ou pintor e o seu pensamento despose frequentemente a
musicalidade ou a visão de desenhos e cores.
7. Mas tanto neles como nos não artistas, esta
corrente pensada, ouvida ou dita, tem relação no seu jogo diferencial ao que é
pensado, ouvido ou dito, às ‘coisas’ do mundo ou de si no mundo, e é outro
berbicacho de monta. É todavia onde a linguagem, em sua sintaxe-semântica,
presta ao cerebral o enorme serviço de ser ‘alavanca’ além do puro biológico,
como a tabuada também faz com os números e suas operações elementares, como
escrevi a propósito da psicologia. Para entender a dificuldade desta questão
entre as palavras pensadas e as coisas exteriores que elas nomeiam, vale a pena
procurar perceber uma afirmação estranha de Derrida, a de que “não há fora do
texto”, com uma aparência falsa de idealismo (não se trata de ‘ideias’!): só
atentamos, vemos, ouvimos, apalpamos, cheiramos, saboreamos, com texto mental,
ainda que divagando. Um texto é um encadeado de frases correlacionadas por
‘códigos’ (Barthes, Lévi-Strauss), os quais por sua vez se relacionam com a
lógica dos usos sociais, domésticos ou especializados, das ‘receitas’ que
ensinam esses usos. Por sua vez, as palavras correntes são aprendidas em
relação estrita com a aprendizagem de usos (domésticos, escolares,
profissionais...), o que implica que cada uma traz consigo um significado
referencial a algo dum uso, significado como o que os dicionários assinalam,
que tanto pode ser literal como metafórico (a língua quotidiana cria frequentemente
metáforas para não ter que inventar novas palavras, trata-se dum mecanismo de
economia linguística), significado que vem nela, sob pena de não ser palavra[10].
Os textos são frases de palavras assim significantes, em jogos de diferenças
que são o pensamento desses
textos. Ora bem, só há pensamento reduzindo a imensidade das coisas possíveis de serem
pensadas e é o que as palavras fazem enquanto nomes: dizer ‘cão’ ou ‘casa’ reduz as ‘sensações’
kantianas ou os ‘acidentes’ aristotélicos de todos os cães e de todas as casas,
guardando apenas uma generalidade que a frase pode afinar para tal cão ou tal
casa singulares com determinantes, artigos, demonstrativos, possessivos – ‘o
meu cão’ ou ‘a casa dele’ –, sem perder a generalidade do significado e
ganhando as singularidades contextuais (como acontece em qualquer romance ou
conversa). O que significa que os nomes no pensamento são ligados pela lenta aprendizagem às ‘coisas’ nomeadas por
uma relação textual (semântica e de determinantes sintácticos), essa ligação
joga na nossa relação com as ditas coisas em seus usos variados: Derrida chegou
a dizer, contra Husserl, que “não há percepção”, não haverá ‘sensações’ de tal
coisa sem o seu nome, “não há fora de texto”. Posso pensar ou dizer a torre de
Belém sem a ver, imaginá-la nela mesma, sem ‘representações’ nem ‘informações’:
mas se a vejo, pensar e ver ou dizer e ver não se separam como dois actos ou
dois níveis.
8. Um texto escrito des-substancializa o seu próprio
contexto de escrita, as ‘sensações’ de quem escreve, o que ele vê, ouve ou
cheira, os seus ‘sentimentos’ e até as suas intenções (embora tudo isso possa
transparecer no texto, é claro, tal como os músicos encontram sentimentos em
partituras escritas nas barras do solfejo); uma carta enviada vai ela só, sem
outro contexto do que o texto que ela diz (‘o meu cão pegou fogo à casa’) e que
o leitor restitui através da sua competência semântica (posso enganar-me ou
mesmo mentir, a carta será lida igualmente por cada leitor, embora possam
variar as interpretações, conhecendo-se o autor dela). O ponto é o seguinte:
aquilo a que se chama ‘percepção’ de qualquer dos sentidos só se dá nos textos
ditos ou pensados que dizem o que vem aos tais sentidos. Nada se vê ou se mexe
ou faz sem ser pensado textualmente: é a condição derridiana de não admitir
a separação que nos vem dos
Gregos: tanto alma / corpo, como dentro / fora, inteligível / sensível,
palavras / coisas. É por certo um dos pontos mais difíceis do seu pensamento. O
que não pode deixar de ser complicado para o neurologista, dada a formação
dualista recebida nos liceus, mas poderá também abrir-lhe outras portas mais
simplificadas (sou incapaz de dizer algo de útil neste sentido). Mesmo quando
sem falar se pensa o que se faz, sempre que se vê ou cheira ou ouve, se deseja
ou se tem medo, é sempre em palavras, em texto, que se acede ao que se diz. No cérebro – oh espanto dos
espantos – o que foi imaginado como espiritual para o bem como para o mal dá-se
ao neurologista como um jogo da ordem da bioquímica e da electricidade iónica, esta
corrente eléctrico-química na rede sináptica é para o neurologista a
des-substancialização do que
para a mente do próprio são palavras, olhos, mãos, pés e o mais que seja, o seu
viver mais ou menos tumultuoso, seus segredos e paixões, de que só uma parte
diz em volta alta, havendo outra que, se o fizer diante dum psicanalista, o
surpreenderá como tendo vindo de si, do seu não saber de si. O problema é que o
neurologia também parte das sensações, não consegue ver que linguagem as integra,
como Kant também não viu, como mostra as inenarráveis formas a priori da
sensibildade[11].
9. ‘Retorno às coisas’ em neurologia que é uma
limitação muito grande: o neurologista, enquanto tal, sem se fazer psicólogo,
não sabe interpretar (laboratorialmente) o que lhe é dito. Donde a tentação de
fazer como os críticos literários que vão em busca de dados biográficos para
discernirem intenções escondidas nos textos que lêem, também o neurologista tem
a tentação de ‘substancializar’ o que se passa na electricidade das sinapses,
ficcionando uma hipótese teórica que liga tal localização com um correlato ‘na
realidade’. Fraca ajuda filosófica, que seria como se ele quisesse encontrar
apoio em Kant, que lhe recusou a tal ‘realidade’ (númenos incognoscíveis),
envolvendo os dados cerebrais, sensações em formas a priori de espaço e tempo.
Dir-se-á que aqui também é complicado, mas proponho algo que Kant ignorou
completamente: que espaço, tempo e sensações como ver e ouvir e mexer também se
aprendem, e não de forma subjectivista individualista mas segundo as regras
sociais da tribo: seriam estas por ventura que poderiam sugerir ao neurologista
algo de relativamente ‘firme’ para conjecturar as suas hipóteses, saber que o
cérebro que estuda tem os arquétipos dos seus grafos cá fora, relativamente
acessíveis na tribo. Interdisciplinaridade: correlacionar a cartografia
neuronal com o paradigma dos usos quotidianos.
Umas semanas antes tinha escrito os parágrafos que seguem, sem saber o que
lhe fazer. É um pré-escrito.
O cérebro desintegrado
10. A revista do Expresso de 9/9 trouxe uma reportagem da jornalista
Alexandra Carita junto de neurologistas do Instituto Champallimaud que oferece a quem se
interessa pelo tema há mais de 30 anos um retrato da prática actual da
neurologia muito problemático: o cérebro é tratado triplamente desintegrado.
Antes de mais, como um órgão ao lado de outros órgãos com que tem relações, mas
sem se saber qual é a sua função no conjunto anatómico; em seguida, nele mesmo
são apresentadas uma série de ‘curiosidades’ localizadas aqui ou ali em zonas
estudadas, mas também falta a unidade do conjunto, que é certamente muito
complexa, mas não se limita a ser feita de conjuntos de células; enfim, em relação
ao mundo ambiente há um esquema computacional em termos de in/out put que coloca as relações entre ambos como de
exterioridade. Quem me tenha lido, perceberá que a minha perspectiva
fenomenológica funciona de maneira integrada e que o ‘defeito’ desta desintegração
é da filosofia espontânea dos neurologistas, como dizia Althusser, faz parte do
paradigma das ciências bio/neurológicas, cujo laboratório é de ordem bioquímica
e se ocupa de células, tendo uma dificuldade grande em ‘imaginar’ um modelo integrado
do que se estuda.
11. A primeira dificuldade releva de se porem
questões de investigação aos cérebros humanos no seu desenvolvimento social
actual, aos adultos de hoje, em vez de se partir das suas funções na anatomia
dos vertebrados, articulando o sistema que assegura a reprodução das células
pelos aparelhos digestivo, respiratório e pelo sangue que chega a cada uma
delas com as moléculas de que elas necessitam com o sistema da mobilidade que
tem que caçar animais ou plantas na cena ecológica, sistema esse que vai dos
órgãos periféricos da sensibilidade pelo cérebro aos músculos dos movimentos de
caça e de fuga a ser caçado. A principal função do cérebro é essa, a do velho
córtice, tendo aves e mamíferos desenvolvido um suplemento cerebral, o novo
córtice, que permite estratégias mais complexas.
12. A segunda dificuldade tem a ver com o facto de
tudo o que se tem que ‘saber’, enquanto vertebrado, implica conhecer o mundo
onde caçar e defender-se, que nos humanos é muito mais desenvolvido pelos usos
e costumes sociais, linguagem incluída, que como Changeux sugeriu no Homem
neuronal, são grafados
cerebralmente: são estes usos sociais exteriores que são aprendidos, isto é, estruturam o cérebro de forma tal que
ele só ‘reconhece’ algo do mundo em que actua porque já o tem grafado em si. O
cérebro é simultaneamente um órgão
biológico e social, o essencial
do seu movimento releva do que se aprendeu.
13. A terceira dificuldade releva das outras duas:
a memória é essencialmente a rede dos grafos que se vai constituindo ao longo
da vida. O que, enquanto filósofo, me preocupa, mas que me parece de correcção
extremamente difícil porque se trata de adultos fortemente estruturados, são os
conceitos usados pelos neurologistas para porem as suas hipóteses. Dou só o
exemplo do termo ‘informação’, usado também por psicólogos, sociólogos e
outros, que é melhor do que a ‘ideia’ que ela substitui, mas é, tal como esta,
uma ilha isolada, sem relação entre ‘informações’ e sem contexto: ora, uma
‘informação’ – saber as horas do comboio, o nome de um livro, os anos duma
pessoa – tem sempre contexto de legibilidade. Em termos de linguagem, a unidade
mais óbvia para ser usada será a frase, que tem algum conteúdo, que se liga a
várias outras em geral e que tem contexto; também é mais complicada do que
‘informação’, só que esta é uma caricatura (na informática trata-se primeiramente
de números).
[1] Há um livro do filósofo
francês Jules Vuillemin, Physique et métaphysique kantiennes,
Paris, PUF, 1955, rééd. PUF, coll. Dito, 1987, que elucida esta relação entre
Newton e Kant.
[2] Evocado por J.-L. Nancy
num livro sobre o filósofo de Königsberg, Le discours de la syncope. Logodædalus, Aubier-Flammarion, 1976.
[3] Se
Heidegger retornou a ele, não foi sem um horizonte quase reaccionário de ruralidade,
que não coincide com o nazismo e o anti-semitismo.
[5] Matemático
e lógico, Husserl é movido pela necessidade de fundamentar as ciências da sua
época ‘em crise’, mas a maneira como a sua Origem da geometria (PUF, 19995) duvida
de Galileu mostra que considera a ruptura que o seu laboratório introduziu nas
disciplinas de forma matemática como negativa no sentido da experiência de
pensamento geométrico puro. “Origem da geometria, para abreviar, juntamos neste
título todas as disciplinas que tratam de formas cuja existência matemática se
desenvolve na espácio-temporalidade pura” (p. 174), esta ‘pureza’ exclui o
laboratório como impureza. Mas o que ele faz é romper com a relação da
filosofia europeia com o laboratório, como se pode ver pelo título que dá a
outro pequeno texto do início dos anos 30: “a terra não se move”. Com efeito,
nós, terrestres, nós não podemos ‘ver’ que há movimento da terra, o que
percepcionamos é o do sol, só sabemos que a terra é um astro por cálculos
posteriores. A ‘percepção’ faz-se no contexto da terra imóvel; sem este
retorno, não teria havido Heidegger nem Derrida, os seus dois grandes
dissidentes.
[6] Devo dizer
que esta distinção entre visão e receber o visível veio-me pela primeira vez à
escrita agora. Se é certo que me repito muito neste blogue, também julgo que só
escrevo quando há coisas novas a mexer comigo, pequenas nuances muitas vezes
que melhorem a minha proposta de 2007. Passados 10 anos, modéstia à parte,
as melhorias são-me claramente
manifestas. A reforma é agradável, resiste ao envelhecimento.
[8] ‘Circuito’,
parece preferirem os neurologistas, perdendo a noção de que as sinapses foram
gravadas pela aprendizagem, como mostrou Eric Kandel (igualmente no texto sobre
psicologia).
[9] A que
Platão no Sofista chama dianoia ‘pensamento’ na tradução habitual (à letra ‘do nous [intelecto] para o nous’, de mente a mente, de mim a
mim), à diferença do logos, com voz, e do dia-logos, entre dois ou mais.
[11] É na síntese dos
fenómenos da sensibilidade pelas categorias do entendimento que Kant mete
subrepticiamente a linguagem, pelos ‘signos’ na escala que sobe das sensações
por ali acima.
Sem comentários:
Enviar um comentário