quarta-feira, 4 de outubro de 2017

A des-substancialização : Física, Kant, Husserl, Neurologia




1. “Na natureza, disse Lavoisier, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. É certo, mas ‘nada’ e ‘tudo’ reenviam a coisas, a substâncias que se fazem e se estragam, vivos que nascem e morrem: surgem de transformações de outras substâncias, acabam transformando-se em outras substâncias. Este verbo ‘transformar’ parece ser aristotélico: a mesma matéria muda de forma, o que significaria que não haveria desmaterialização nas transformações de Lavoisier. Mas a química, que é a ciência destas transformações, sabe o que é a ‘matéria’? sabe pesá-la, medir-lhe a massa, detectar-lhe as moléculas e os átomos, a energia que se ganha ou perde nas tais transformações, sobretudo quando se trata de explosões, nas nucleares surgem as partículas dos quantas, aonde é difícil de saber a quantas anda a matéria, ou sequer se este termo e o de substância ainda têm sentido. A dizer verdade, esta falta de sentido possível acaba por implicar a dúvida de saber se a química ou a física sabem qual o sentido desses termos tradicionais, ou melhor, se eles têm sentido científico. Se o labor dos laboratórios nunca passa de medir o que se chama ‘dimensões’ das coisas, objectos, substâncias materiais, para fazer cálculos com essas medidas de maneira a saber o ‘como’ quantitativo das transformações medidas e poder usar esses resultados para criar artefactos técnicos muito diversos, haverá que concluir com Galileu e Newton que no reino da ‘quantidade’, das ‘diferenças e proporções’ das medidas, não se sabe da substância ou da matéria. Que as medidas são convencionais, sabemo-lo desde o balde de água com que Galileu mediu o tempo das suas experiências: têm regras, mas a convencionalidade das unidades definidas é uma arbitrariedade no coração da medida – metros ou pés, quilos ou libras, Celsius ou Fahrenheit – que tem como correlato a des-substancialização: conhecem-se (e calcula-se) dimensões, medidas, não aquilo que é medido.
2. Uma incidência manifesta mas pouco assinalada desta questão é a diferença entre os pensamentos de Kant e de Husserl, o primeiro assentando a sua critica da razão pura no laboratório de Newton onde a geometria recebe com o movimento o tempo, enquanto que o segundo retrocede à geometria anterior à introdução do tempo por Galileu. Porque é que Kant vai buscar o ponto de partida da sua análise às sensações? Faz parte do epistema da época, diria Foucault, toda a gente fazia assim, empiristas ou racionalistas: o dispositivo anti-aristotélico da análise / síntese que analisava até ao nível mais simples das coisas, aos indivisíveis (átomos, indivíduos), tal como hoje em dia os físicos quânticos e as suas partículas. E porquê essas estranhas formas a priori da sensibilidade, a do espaço e a do tempo? Aí parece mais clara a inspiração newtoniana: ainda era uma novidade extraordinária a medida do tempo, como novidade era, apesar da geometria, a medida da distância entre as coisas (e não o lugar delas) a par da do tempo (medida do movimento), nós é que estamos habituados; um século mais tarde (como era lenta a história!) Kant estava a revolucionar a filosofia tal como Newton fizera para a ciência, estava a ter filosoficamente em conta as grandes novidades desta[1]. Porque, saído do tal sono dogmático, tinha um desafio imenso pela frente: a crítica do conhecimento por Hume deitava por terra justamente essa extraordinária inovação de cariz científico e filosófico. Há pois que recorrer a Newton e à sua matemática para combater eficazmente o cepticismo empirista, deixando a filosofia para os combates mais difíceis da razão pura (ou teórica). Kant foi popular na literatura do século XIX[2] um pouco como Einstein no XX, tinha nem mais nem menos salvado a ciência e a filosofia, digamos retoricamente. O que ele fez foi des-substancializar radicalmente os ‘objectos’, as coisas a conhecer – que não podem ser conhecidas nelas mesmas, na sua ‘substância’ (já Aristóteles o pensava, os ‘acidentes’ não o permitiam), reduzidas pois a númenos. Ou seja, assim como o laboratório com as suas técnicas de medir espaço e tempo é o dispositivo central do conhecimento científico, da física, também o sujeito kantiano tem as suas ‘maneiras’ de fornecer espaço e tempo às coisas exteriores, que ficam reduzidas, por assim dizer, à inércia em termos de cognoscibilidade. Desorganizadas enquanto objecto ou ‘fenómeno’, elas oferecem-se às formas de espaço e tempo como lugar de sensações diversas, que precisam de serem ‘síntetizadas’.
3. O que Kant fez foi retirar à filosofia, senão a ontologia, pelo menos a fenomenologia, oferecendo os fenómenos à ciência (onde tive que os ir buscar!), ao conhecimento pelo entendimento. O que é deixado à filosofia da razão pura é, não o ‘conhecimento’ mas o pensamento enquanto filosofia do conhecimento e da ciência, epistemologia, pensamento além da ciência e sem ciência. Émulo de Aristóteles num contexto de civilização quase oposto, é com ele que corta como que definitivamente em termos de modernidade[3]. Salto por cima de Hegel porque não sei tratar suficientemente da sua fenomenologia da história e do espírito, coisas que Husserl ignora soberanamente quando retoma uma preocupação que se pode comparar com a de Kant: com uma grande diferença, o seu mote do “retorno às próprias coisas” consiste justamente em contrariar os númenos de Kant (e os acidentes de Aristóteles), o qual aliás contrariava a grande cisão cartesiana entre duas substâncias, a do pensamento – res cogitans – e a das coisas -  res extensa – e é o que Husserl busca ligar, mas para isso, em vez de re-substancializar contra Newton e Kant, prefere des-substancializá-las a ambas. Como assim? Com uma dupla audácia: por um lado, dizer que a consciência só é a intencionalidade das coisas que percepciona, dos fenómenos, não é nada sem estes, não tem ‘substância’ dela própria (o sujeito não é autista, se se pode dizer assim); por outro lado, para evitar o empirismo com que chocara no seu projecto duma psicologia dos números, des-substancializa aquilo que, da coisa substancial, ‘aparece’ à consciência, esta não retendo senão o seu ‘aparecer’ fenomenal, estrutural[4]. O fenómeno tal como ele é intencionalizado pela consciência é reduzido da sua substância empírica, mundana. Volta atrás de Kant e Newton, volta aos Gregos, disse Gardel no artigo sobre ele da Encyclopædia Universalis, antes pois do laboratório[5], mas com a vantagem sobre Kant de abandonar as sensações e de ancorar a consciência na percepção da coisa, do fenómeno: não integralmente, visto que as percepções são sempre parciais, nunca se vê as costas do que estamos a ver, mas o que aparece mantém-se sempre ele mesmo na diversidade das suas percepções. Só que a percepção é predominantemente visual, ignora o espaço (a distância) e o tempo, este só é considerado num segundo tempo, tal como a linguagem e as categorias, com o juízo sobre o fenómeno percepcionado. Esta colocação, ultrapassando a oposição alma / corpo que Descartes recuperara do platonismo e do cristianismo, aloja todavia a intencionalidade do lado do ‘inteligível’, reduzido o ‘sensível’ do objecto, o empírico e mundano. Não sai da metafísica que Heidegger caracteriza por esta oposição; este radicaliza a integração da intencionalidade com o seu ‘ser no mundo’ dotado de tempo, de mãos, de linguagem, ficando retido apenas pelo seu motivo do ‘pensamento’, que parece não ter chegado a ser pensamento dum ser no mundo com outros seres no mundo; será a gramatologia de Derrida que o fará, tendo em conta implicitamente a aprendizagem. 
4. Esta questão que dividiu Kant e Husserl, entre as ‘sensações’ dos cinco sentidos por um lado e por outro a ‘percepção’, que consiste de facto no privilégio tradicional do sentido visual sobre os outros quatro, mas nele privilegia também de forma tradicional a visão como actividade de quem vê sobre a recepção do visível dado pelo mundo, ocultando que é a tribo que ensina a ver de tal ou tal maneira, consoante os seus usos, como se torna óbvio nos trabalhos de especialização, com suas habilidades e artes implicam aprender a ver e a nomear o que o leigo não distingue[6]. Uma citação saborosa de Condillac no Tratado das sensações (no texto sobre a psicologia de Maio passado) conta muito bem o primado do aprender a ver na doação (Heidegger) da visão, esta que a filosofia sempre privilegiou fazendo par com a voz, se se pode dizer, ambas, visão e voz, vêm de dentro do sujeito, da sua intimidade, fonte impartilhável: o logocentrismo (Derrida) não é apenas o privilégio da voz mas também com ele o da visão, privilégio patriarcal do logos do pai-patrão que vigia os seus escravos, filhos, mulher, e que não usa as mãos em usos ditos ‘servis’ porque são os servos que os executam[7].


5. Este tipo de questões sobre as sensações são hoje em dia assunto das neurociências, mas as minhas leituras deixam-me uma decepção muito grande: elas tratam das suas coisas segundo um empirismo que se poderia dizer empírico ele mesmo, já que se ignorando enquanto tal, ignorando o que são as correntes filosóficas empiristas pré-kantianas; como que um empirismo empírico que será resultado do carácter necessariamente fragmentado das experimentações laboratoriais dos neurologistas, tanto de ordem física como bioquímica. Parece óbvio ao fenomenólogo que não será muito fácil evitar a dispersão dos fenómenos neuronais, e para começar a questão das áreas neuronais a analisar, onde os tais cinco sentidos se diferenciam à partida pela respectiva localização, embora se juntem os grafos dos três principais que se cruzam em áreas comuns, nos humanos com uma dificuldade acrescida, a audição também veicula as palavras e as frases, que não fazem parte dos cinco sentidos tradicionais mas que no entanto abrem ao pensamento, uma outra imensa dificuldade neurológica, lá iremos. Como é claro que em tudo o que fazemos, em sentido estrito, mãos e olhos vão de par, formam o que se pode chamar um eixo comportamental, em que as mãos tanto relevam do sentido do tacto como dos gestos musculares inerentes ao fazer, parece óbvio que a este eixo corresponde um grande ‘grafo’ (termo de Changeux) dos cérebros humanos, o mesmo se podendo dizer do eixo entre ouvidos e voz, segundo grande grafo, um terceiro sendo o dos olhos e pernas, não apenas para andar e correr, mas também para firmar-se no fazer o que quer que seja que se faça. Trabalho, linguagem e andar firme, seria a trindade tribal que a neurologia partilharia com a antropologia sem saber. Ora, o seu material de investigação laboratorial é feito essencialmente de química e electricidade e de, em consequência, o que se mede em suas experimentações pede uma interpretação teórica, isto é, a integração com inúmeras outras experimentações, todas igualmente fragmentárias (a ‘teoria’, no grego, é uma visão de um conjunto extenso, um exército, por exemplo, visto duma colina). Claro que qualquer experiência supõe uma hipótese teórica, que releva do que o (paradigma) neurologista crê ser o funcionamento... de quê? eis a grande dificuldade: do ser humano no mundo? do cérebro? De tal pequena zona dele com ramificações muito diversas a outras, incluindo os tais órgãos dos sentidos e a tal zona do córtice antigo que sempre se cruza quando se vem de fora antes de voltar às áreas comuns do novo córtice (Changeux insistiu nisto, trata-se dum duplo cérebro, não de dois cérebros)? O risco desta fragmentação é o de haver um ‘humano aos bocados’, digamos assim. Ora, se essa zona em estudo fica no percurso dum dos tais grandes grafos[8], em vez de se procurar uma função específica dela, haverá que pensá-la na integração desse eixo maior, dos olhos às mãos ou vice-versa, ou aos pés, dos ouvidos à voz, de eixos neuronais que vão dos órgãos periféricos aos músculos dos gestos. Pois que se trata dum eixo biográfico, que se aprendeu e continua a aprender todos os dias, com frequências temporais mais ou menos susceptíveis de serem apreendidas, o que permitirá em princípio articular o laboratório do neurologista com o do antropólogo, os usos da tribo do humano em análise. Difícil será, mas se for possível, que bom não seria para um uso saudável da neurologia. É certo que é muito complicado, mas é um desafio que ainda será o de muitas gerações.
6. Ora bem, o que é que isto tem a ver com a des-substancialização? É que tratar o cérebro como pequenas ilhas locais de actividades, é tratá-lo como uma ‘coisa’ ou uma mão cheia de coisinhas, ao invés de se o conceber como rede diferencial de percursos – de espaços e tempos, ritmos, frequências –, o ‘gravado’ dos grafos reenviando para a tribo e suas repetições e ritmos, paradigma tecido de usos oscilando entre alianças e rivalidades. Atender à linguagem pode ajudar a compreender esta dificuldade, já que ela não se apreende em palavras nem sequer em frases, mas no encadeado destas que reenviam constantemente para o que já ficou dito e para o que ainda falta dizer que cria suspense, num jogo espácio-temporal de diferenças alternando com o outro falante (a différance com a de Derrida). A experiência de J. Gallant mostrou que as palavras se espalham por todo o novo córtice, segundo um mapa (para americanos) do que eu chamaria ‘paradigmas de usos ditos’. O discurso ouvido no eixo ouvidos / voz, ao chegar ao novo córtice, pode ter um destino neste relativamente localizado (se se trata de especialistas discutindo), ou oscilar entre vários, se a conversa for eclética, digamos. Uma resposta prosseguirá do/s mesmo/s local/is (ou talvez de outro/s, se se desconversar ou se ripostar) para as áreas de Broca e Wernicke onde se articulará para os músculos da voz. Obviamente que isto é conversa de fenomenólogo, sem outras pretensões do que ajudar a pensar coisas muito difíceis. De qualquer forma, faz parte da dificuldade que se trata sempre de trajectos ou percursos espácio-temporais em que se faz o jogo da compreensão retendo e diferindo, não é nunca algo de meramente local. Outra parte dificílima é a do pensamento que se faz neste eixo que se espraia pelo dito mapa, quando não parte de ouvir ou de ler e não chega à voz, que fica pois ‘mental’ em sentido de Damásio, ou no de Derrida, a auto-afectação da voz silenciosa. Trata-se da corrente de pensamento em cada um de nós e das suas associações de ideias, atentos ou divagando. Há de haver um mecanismo neuronal que silencia a voz, Changeux faz-lhe algures uma alusão sem detalhe, mas parece certo que essa corrente mental silenciosa[9] se faz neste eixo ouvidos / voz da linguagem, como qualquer um de nós pode experimentar que pensa numa das línguas que conhece bem, nunca fora da língua, ainda que seja músico ou pintor e o seu pensamento despose frequentemente a musicalidade ou a visão de desenhos e cores.
7. Mas tanto neles como nos não artistas, esta corrente pensada, ouvida ou dita, tem relação no seu jogo diferencial ao que é pensado, ouvido ou dito, às ‘coisas’ do mundo ou de si no mundo, e é outro berbicacho de monta. É todavia onde a linguagem, em sua sintaxe-semântica, presta ao cerebral o enorme serviço de ser ‘alavanca’ além do puro biológico, como a tabuada também faz com os números e suas operações elementares, como escrevi a propósito da psicologia. Para entender a dificuldade desta questão entre as palavras pensadas e as coisas exteriores que elas nomeiam, vale a pena procurar perceber uma afirmação estranha de Derrida, a de que “não há fora do texto”, com uma aparência falsa de idealismo (não se trata de ‘ideias’!): só atentamos, vemos, ouvimos, apalpamos, cheiramos, saboreamos, com texto mental, ainda que divagando. Um texto é um encadeado de frases correlacionadas por ‘códigos’ (Barthes, Lévi-Strauss), os quais por sua vez se relacionam com a lógica dos usos sociais, domésticos ou especializados, das ‘receitas’ que ensinam esses usos. Por sua vez, as palavras correntes são aprendidas em relação estrita com a aprendizagem de usos (domésticos, escolares, profissionais...), o que implica que cada uma traz consigo um significado referencial a algo dum uso, significado como o que os dicionários assinalam, que tanto pode ser literal como metafórico (a língua quotidiana cria frequentemente metáforas para não ter que inventar novas palavras, trata-se dum mecanismo de economia linguística), significado que vem nela, sob pena de não ser palavra[10]. Os textos são frases de palavras assim significantes, em jogos de diferenças que são o pensamento desses textos. Ora bem, só há pensamento reduzindo a imensidade das coisas possíveis de serem pensadas e é o que as palavras fazem enquanto nomes: dizer ‘cão’ ou ‘casa’ reduz as ‘sensações’ kantianas ou os ‘acidentes’ aristotélicos de todos os cães e de todas as casas, guardando apenas uma generalidade que a frase pode afinar para tal cão ou tal casa singulares com determinantes, artigos, demonstrativos, possessivos – ‘o meu cão’ ou ‘a casa dele’ –, sem perder a generalidade do significado e ganhando as singularidades contextuais (como acontece em qualquer romance ou conversa). O que significa que os nomes no pensamento são ligados pela lenta aprendizagem às ‘coisas’ nomeadas por uma relação textual (semântica e de determinantes sintácticos), essa ligação joga na nossa relação com as ditas coisas em seus usos variados: Derrida chegou a dizer, contra Husserl, que “não há percepção”, não haverá ‘sensações’ de tal coisa sem o seu nome, “não há fora de texto”. Posso pensar ou dizer a torre de Belém sem a ver, imaginá-la nela mesma, sem ‘representações’ nem ‘informações’: mas se a vejo, pensar e ver ou dizer e ver não se separam como dois actos ou dois níveis.
8. Um texto escrito des-substancializa o seu próprio contexto de escrita, as ‘sensações’ de quem escreve, o que ele vê, ouve ou cheira, os seus ‘sentimentos’ e até as suas intenções (embora tudo isso possa transparecer no texto, é claro, tal como os músicos encontram sentimentos em partituras escritas nas barras do solfejo); uma carta enviada vai ela só, sem outro contexto do que o texto que ela diz (‘o meu cão pegou fogo à casa’) e que o leitor restitui através da sua competência semântica (posso enganar-me ou mesmo mentir, a carta será lida igualmente por cada leitor, embora possam variar as interpretações, conhecendo-se o autor dela). O ponto é o seguinte: aquilo a que se chama ‘percepção’ de qualquer dos sentidos só se dá nos textos ditos ou pensados que dizem o que vem aos tais sentidos. Nada se vê ou se mexe ou faz sem ser pensado textualmente: é a condição derridiana de não admitir a separação que nos vem dos Gregos: tanto alma / corpo, como dentro / fora, inteligível / sensível, palavras / coisas. É por certo um dos pontos mais difíceis do seu pensamento. O que não pode deixar de ser complicado para o neurologista, dada a formação dualista recebida nos liceus, mas poderá também abrir-lhe outras portas mais simplificadas (sou incapaz de dizer algo de útil neste sentido). Mesmo quando sem falar se pensa o que se faz, sempre que se vê ou cheira ou ouve, se deseja ou se tem medo, é sempre em palavras, em texto, que se acede ao que se diz. No cérebro – oh espanto dos espantos – o que foi imaginado como espiritual para o bem como para o mal dá-se ao neurologista como um jogo da ordem da bioquímica e da electricidade iónica, esta corrente eléctrico-química na rede sináptica é para o neurologista a des-substancializa­ção do que para a mente do próprio são palavras, olhos, mãos, pés e o mais que seja, o seu viver mais ou menos tumultuoso, seus segredos e paixões, de que só uma parte diz em volta alta, havendo outra que, se o fizer diante dum psicanalista, o surpreenderá como tendo vindo de si, do seu não saber de si. O problema é que o neurologia também parte das sensações, não consegue ver que linguagem as integra, como Kant também não viu, como mostra as inenarráveis formas a priori da sensibildade[11].
9. ‘Retorno às coisas’ em neurologia que é uma limitação muito grande: o neurologista, enquanto tal, sem se fazer psicólogo, não sabe interpretar (laboratorialmente) o que lhe é dito. Donde a tentação de fazer como os críticos literários que vão em busca de dados biográficos para discernirem intenções escondidas nos textos que lêem, também o neurologista tem a tentação de ‘substancializar’ o que se passa na electricidade das sinapses, ficcionando uma hipótese teórica que liga tal localização com um correlato ‘na realidade’. Fraca ajuda filosófica, que seria como se ele quisesse encontrar apoio em Kant, que lhe recusou a tal ‘realidade’ (númenos incognoscíveis), envolvendo os dados cerebrais, sensações em formas a priori de espaço e tempo. Dir-se-á que aqui também é complicado, mas proponho algo que Kant ignorou completamente: que espaço, tempo e sensações como ver e ouvir e mexer também se aprendem, e não de forma subjectivista individualista mas segundo as regras sociais da tribo: seriam estas por ventura que poderiam sugerir ao neurologista algo de relativamente ‘firme’ para conjecturar as suas hipóteses, saber que o cérebro que estuda tem os arquétipos dos seus grafos cá fora, relativamente acessíveis na tribo. Interdisciplinaridade: correlacionar a cartografia neuronal com o paradigma dos usos quotidianos.


Umas semanas antes tinha escrito os parágrafos que seguem, sem saber o que lhe fazer. É um pré-escrito.

O cérebro desintegrado
10. A revista do Expresso de 9/9 trouxe uma reportagem da jornalista Alexandra Carita junto de neurologistas do Instituto Champallimaud que oferece a quem se interessa pelo tema há mais de 30 anos um retrato da prática actual da neurologia muito problemático: o cérebro é tratado triplamente desintegrado. Antes de mais, como um órgão ao lado de outros órgãos com que tem relações, mas sem se saber qual é a sua função no conjunto anatómico; em seguida, nele mesmo são apresentadas uma série de ‘curiosidades’ localizadas aqui ou ali em zonas estudadas, mas também falta a unidade do conjunto, que é certamente muito complexa, mas não se limita a ser feita de conjuntos de células; enfim, em relação ao mundo ambiente há um esquema computacional em termos de in/out put que coloca as relações entre ambos como de exterioridade. Quem me tenha lido, perceberá que a minha perspectiva fenomenológica funciona de maneira integrada e que o ‘defeito’ desta desintegração é da filosofia espontânea dos neurologistas, como dizia Althusser, faz parte do paradigma das ciências bio/neurológicas, cujo laboratório é de ordem bioquímica e se ocupa de células, tendo uma dificuldade grande em ‘imaginar’ um modelo integrado do que se estuda.
11. A primeira dificuldade releva de se porem questões de investigação aos cérebros humanos no seu desenvolvimento social actual, aos adultos de hoje, em vez de se partir das suas funções na anatomia dos vertebrados, articulando o sistema que assegura a reprodução das células pelos aparelhos digestivo, respiratório e pelo sangue que chega a cada uma delas com as moléculas de que elas necessitam com o sistema da mobilidade que tem que caçar animais ou plantas na cena ecológica, sistema esse que vai dos órgãos periféricos da sensibilidade pelo cérebro aos músculos dos movimentos de caça e de fuga a ser caçado. A principal função do cérebro é essa, a do velho córtice, tendo aves e mamíferos desenvolvido um suplemento cerebral, o novo córtice, que permite estratégias mais complexas.
12. A segunda dificuldade tem a ver com o facto de tudo o que se tem que ‘saber’, enquanto vertebrado, implica conhecer o mundo onde caçar e defender-se, que nos humanos é muito mais desenvolvido pelos usos e costumes sociais, linguagem incluída, que como Changeux sugeriu no Homem neuronal, são grafados cerebralmente: são estes usos sociais exteriores que são aprendidos, isto é, estruturam o cérebro de forma tal que ele só ‘reconhece’ algo do mundo em que actua porque já o tem grafado em si. O cérebro  é simultaneamente um órgão biológico e social, o essencial do seu movimento releva do que se aprendeu.
13. A terceira dificuldade releva das outras duas: a memória é essencialmente a rede dos grafos que se vai constituindo ao longo da vida. O que, enquanto filósofo, me preocupa, mas que me parece de correcção extremamente difícil porque se trata de adultos fortemente estruturados, são os conceitos usados pelos neurologistas para porem as suas hipóteses. Dou só o exemplo do termo ‘informação’, usado também por psicólogos, sociólogos e outros, que é melhor do que a ‘ideia’ que ela substitui, mas é, tal como esta, uma ilha isolada, sem relação entre ‘informações’ e sem contexto: ora, uma ‘informação’ – saber as horas do comboio, o nome de um livro, os anos duma pessoa – tem sempre contexto de legibilidade. Em termos de linguagem, a unidade mais óbvia para ser usada será a frase, que tem algum conteúdo, que se liga a várias outras em geral e que tem contexto; também é mais complicada do que ‘informação’, só que esta é uma caricatura (na informática trata-se primeiramente de números).



[1] Há um livro do filósofo francês Jules Vuillemin, Physique et métaphysique kantiennes, Paris, PUF, 1955, rééd. PUF, coll. Dito, 1987, que elucida esta relação entre Newton e Kant.
[2] Evocado por J.-L. Nancy num livro sobre o filósofo de Königsberg, Le discours de la syncope. Logodædalus, Aubier-Flammarion, 1976.
[3] Se Heidegger retornou a ele, não foi sem um horizonte quase reaccionário de ruralidade, que não coincide com o nazismo e o anti-semitismo.
[4] O linguista Roman Jakobson dirá que colheu em Husserl a inspiração estruturalista.
[5] Matemático e lógico, Husserl é movido pela necessidade de fundamentar as ciências da sua época ‘em crise’, mas a maneira como a sua Origem da geometria (PUF, 19995) duvida de Galileu mostra que considera a ruptura que o seu laboratório introduziu nas disciplinas de forma matemática como negativa no sentido da experiência de pensamento geométrico puro. “Origem da geometria, para abreviar, juntamos neste título todas as disciplinas que tratam de formas cuja existência matemática se desenvolve na espácio-temporalidade pura” (p. 174), esta ‘pureza’ exclui o laboratório como impureza. Mas o que ele faz é romper com a relação da filosofia europeia com o laboratório, como se pode ver pelo título que dá a outro pequeno texto do início dos anos 30: “a terra não se move”. Com efeito, nós, terrestres, nós não podemos ‘ver’ que há movimento da terra, o que percepcionamos é o do sol, só sabemos que a terra é um astro por cálculos posteriores. A ‘percepção’ faz-se no contexto da terra imóvel; sem este retorno, não teria havido Heidegger nem Derrida, os seus dois grandes dissidentes.
[6] Devo dizer que esta distinção entre visão e receber o visível veio-me pela primeira vez à escrita agora. Se é certo que me repito muito neste blogue, também julgo que só escrevo quando há coisas novas a mexer comigo, pequenas nuances muitas vezes que melhorem a minha proposta de 2007. Passados 10 anos, modéstia à parte, as  melhorias são-me claramente manifestas. A reforma é agradável, resiste ao envelhecimento.
[7] Como mostrava a série de Downton Abbey, que senhores e meninas eram vestidos pelo/as criado/as.
[8] ‘Circuito’, parece preferirem os neurologistas, perdendo a noção de que as sinapses foram gravadas pela aprendizagem, como mostrou Eric Kandel (igualmente no texto sobre psicologia).
[9] A que Platão no Sofista chama dianoia ‘pensamento’ na tradução habitual (à letra ‘do nous [intelecto] para o nous’, de mente a mente, de mim a mim), à diferença do logos, com voz, e do dia-logos, entre dois ou mais.
[10] Também o Sofista se refere a essa propriedade de qualquer frase.
[11] É na síntese dos fenómenos da sensibilidade pelas categorias do entendimento que Kant mete subrepticiamente a linguagem, pelos ‘signos’ na escala que sobe das sensações por ali acima. 

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