1. Que sentido pode receber a palavra
‘espiritual’ na fenomenologia aqui praticada? Não é ‘religioso’, como foi
argumentado num texto deste blogue (26/9/2013), nem sequer necessita de nenhuma
divindade. Opõe-se a ‘material’ no sentido corrente do ‘materialismo’? também
não, em rigor, se verificarmos que tudo é material, por certo, mas não há nada
de ‘espiritual’ que não tenha algo a ver com algo de ‘material’. Além dos
fenómenos? Na minha maneira de seguir, tanto quanto sei e sou capaz, a gramatologia
de Derrida, o que estrutura cada humano são os usos que vai aprendendo, entre
os quais os costumes, tal como as regras morais, desde o interdito do incesto
até às ‘finalidades’ que levem a romper com elas e com o próprio paradigma
tribal (familiar e escolar: estrutura de base), romper para a aventura: ora,
são tudo coisas que implicam a linguagem. Esta foi analisada por Derrida a
partir da redução fenomenológica (de Husserl) sobreposta à diferença
linguística entre os sons e os significantes, estes sendo diferenças entre
aqueles. Se já o som pode dificilmente ser dito ‘material’, já que se trata de
oscilações atmosféricas com frequências repetidas, ainda mais a diferença
entre sons, que não é um som
(como a diferença ente duas cores não é uma cor) nem é nada de substancial (que
o som como fenómeno ainda seja), nem é sequer ‘um sentido’ (uma ideia, no
exemplo europeu) mas uma rede indefinida de sentidos: não é nada que possa ser
dito ‘material’ mas também não pode ser ‘oposto’ a ‘material’ (como querem os
espiritualismos e os materialismos que se opõem àqueles). Aliás, a palavra
latina ‘spiritus’, tal como a grega ‘pneuma’ e a hebraica ‘ruah’, que se
costumam traduzir por ‘espírito’, significam sopro, como se, ao falar-se, se soprasse sobre o outro,
se soprassem sons com sentido de coisas que ele entende na mesma língua, coisas
relativas ao mundo de ambos, aos fenómenos, este ‘entender’ tanto podendo ser
aceitar como rejeitar após o tempo da fala, a qual deixou um rasto estruturante
do que se ouviu e aprendeu (ainda que esquecido rapidamente a maior parte das
vezes). Este rasto (diferença
não substancial entre substanciais) efectua a aprendizagem, tanto das palavras
como das coisas e gentes do mundo que elas dizem.
2. Levinas contrapôs a este rasto da
aprendizagem, que se pode dizer ‘sincrónico’, simultâneo ao que fala e ao que
ouve, ao que ensina e ao que aprende, um rasto diacrónico que lhe permite pensar a santidade, sendo no
santo (o que ama o próximo como a si mesmos) o rasto dum Deus “sem existência
nem essência” que o envia ao Pobre como ‘refém’ dele, para que o ‘substitua’
naquilo em que ele seja impotente. Com todo o respeito pela figura de Levinas e
pela sua própria santidade, que quem o conheceu atesta, nem ‘refém’ nem
‘substituição’ – hipérbole levinassiana – me parecem palavras éticas. Guardo
dele, chamando-lhe ‘espiritual’, este motivo de rasto diacrónico, ética não
aprendida, além da moral tribal, à maneira dos talentos tão precoces que
parecem inatos em muitos artistas ou outros grandes apaixonados. O espiritual
terá algo de arranque ao paradigma da tribo, de aventura além das finalidades
de vida que ela promove educando.
3. A injunção “amarás o teu próximo
como a ti mesmo”, no livro bíblico do Levítico (19, 18), recomenda uma relação de amor pelas
famílias vizinhas, é uma injunção ética de ordem social, que pretende criar um
clima de paz social dentro duma aldeia ou dum bairro. Mas que não se trate
apenas duma relação como a que se tem com os membros da sua própria família,
porventura lembrando que a primeira parelha familiar de irmãos foi a de Caím e
Abel, ciente pois que adentro da família amor e rivalidade vão a par com frequência,
mas “como a ti mesmo”, introduz uma espécie de introspecção ética – como é que
te amas a ti mesmo? – e um correlativo ‘sai de ti mesmo’ que deve vir de dentro
de ti mesmo, tal como os teus pensamentos vêm de ti: uma injunção ética muito
intrigante nos seus dois itens, o amor do próximo e o amor de si mesmo, este
dado como termo de comparação ou de avaliação do primeiro. O que é ‘amar’ em
cada caso? Comecemos pelo amor do próximo e vejamos primeiro o que ele não é.
Não é um amor de paixão, como quando se diz que se está apaixonado, pois aí
trata-se duma relação exclusiva, ligada ao sistema sexual como erotismo. Também não é uma relação de ocasião
igualmente erótica, muito menos se envolvendo prostituição e excluindo o amor.
O que parece ficar assim excluído é que este ‘amor do próximo’ tenha
incidências com a química hormonal da ordem do erotismo, que é a acepção mais
corrente da nossa palavra ‘amor’. Uma segunda hipótese será a da ‘amizade’,
enquanto relação de preferência por um ‘tu’ singular, cultivada por um convívio
partilhado, recíproco, que tanto vale para mim como para ti, que joga no
desinteresse mútuo além dessa partilha afectiva. Fruto de circunstâncias que
suscitaram a amizade, parece que lhe é estranha qualquer forma de injunção: não
se decide unilateralmente ser amigo de alguém, é algo que acontece a ambos e
por ambos é reconhecido como gratificante. Não tem sentido dizer a alguém que
deve ser amigo do seu próximo.
4. Sobra então, parece, uma terceira possibilidade
de amor, o que se chama habitualmente compaixão, que implica um desnível entre o que ama e o que
é amado, supõe neste uma carência de qualquer ordem que pesa sobre a sua
autonomia de vida e naquele uma atitude de querer ajudar a colmatar tal
carência. Neste sentido, a injunção afasta-se da relação de boa vizinhança que
o Levítico sugeria, embora
outros textos da Bíblia hebraica multipliquem o apelo a cuidar dos sem casa, do
órfão, da viúva, do emigrante, desde o primeiro grande texto, o do Deuteronómio (15, 4), com a sua injunção a todo o Israel: “não
haja pobre no meio de ti”. A Bíblia cristã retomou a injunção do Levítico claramente entendida agora como compaixão ou
misericórdia pelo que tem fome ou sede, pelo estrangeiro ou pelo nu, pelo
doente ou pelo preso (Mateus
25, 35-45), a injunção da compaixão operante sendo proposta como critério
decisivo de avaliação do que foram os destinos de cada um em relação ao Reino
dos Céus. Há uma modificação decisiva, passou-se de uma moral de toda a
sociedade de Israel para uma ética individualizada e responsabilizadora, para
uma injunção ética além de toda a moral tribal, correlativa da maldição que é
lançada sobre os ricos em Lucas 6, 24-6. Este mesmo autor (10, 29-37) reinterpreta o motivo levítico,
estendendo-o bem além da vizinhança, dos amigos e conhecidos, propondo uma
parábola em resposta à questão “quem é o meu próximo?”, na qual um judeu que
descia de Jerusalém para Jericó foi vítima de bandidos que o despojaram e
feriram, deixando-o meio morto: um sacerdote e depois um levita (duas
categorias sociais votadas ao culto religioso) que passaram e seguiram caminho
e foi um semi-estrangeiro, da Samaria, uma zona religiosamente mal vista pelos
Judeus de então, quem se ocupou dele e o fez tratar. A compaixão não conhece
fronteiras políticas ou religiosas, muito mais além das fronteiras da tribo, dos
bairrismos e dos nacionalismos.
5. Mas também não é um afecto vazio, é um amor
praticante, de obras[1].
O que de si restringe, se dizer se pode, o próximo, como aliás já o faz a noção
de proximidade: não se trata de amar os meus conhecidos quando passo por eles,
nem de dizer ‘que horror!’ diante das desgraças que a televisão mostra.
Trata-se de amar o próximo em suas carências, fome ou sem abrigo, doença ou
aflição, trata-se de atender ao que elas implicam de... quê? É a esta questão
que o “como a ti mesmo” ajuda a responder. Que amor se tem a si mesmo? Não se
tratando de narcisismo ou de egoísmo, que são o contrário de ‘amor’, pode-se
pensar que se trata do ‘cuidado’ que tenho dia a dia com o meu viver. Então a
questão será: o que é que eu tenho de que o outro carece? A possibilidade de o
ajudar nessa carência, a qual possibilidade me é dada pela minha autonomia de
viver, que justamente recebi da minha tribo, que me fez doação dela como
heteronomia que se retrai para deixar ser a autonomia: o ‘onde’ se nasce, que
foge a qualquer escolha, configura aquele que se será, que só escolherá dentro
dessa configuração, trate-se mesmo de rebeldia contra ela. A autonomia recebida
gratuitamente é a doação que é
feita a qualquer um que nasce em tal tribo. É do que carece o que merece
compaixão: que se o ajude a recuperar a autonomia que lhe falta, que se
substitua, não a ele, carente, pois que isso significaria permanecer sem
autonomia, mas aos da sua tribo que lhe faltam. A esta interpretação
heideggeriana corresponde uma outra injunção evangélica de Mateus 10,8: “recebeste gratuitamente, dai
gratuitamente”. Diante do que tem fome ou não tem abrigo, quem come em sua casa
atesta dum privilégio gratuito: antes de todos os esforços feitos para garantir
casa e refeição, nasceu aonde recebeu por aprendizagem de doação tribal as possibilidades
desses esforços. ‘Nascer aonde’ é gratuito, ajudar o carente releva da mais
elementar solidariedade humana, gratuita igualmente como o amor. É por isso que é dito ‘ama’. ‘Como a ti mesmo’,
alarga sem fim os limites desse amor, se se trata de ajudar o outro a aceder à
sua autonomia ‘como’ a minha.
6. ‘Nascer aonde’ é gratuito: ninguém pode
perscrutar-se suficientemente para poder vir a aceder conscientemente a essa
gratuidade. Mas cada filho ou filha que se tenha e de que se acompanhe um pouco
o percurso testemunha dela. Como dizia a minha sogra dos filhos: “podemos
criá-los, não podemos fadá-los”. A diversidade de destinos parte da gratuidade
dos nascimentos antes de todo outro factor de percurso. Faz parte do segredo da
fecundidade, quer dos nascimentos, quer das aprendizagens doadas com retiro dos
doadores: este retiro da heteronomia é justamente a não substituição que torna possível a autonomia. Amar o
próximo efectivamente como a si mesmo é participar no grande segredo da vida, o
da fecundidade das suas doações gratuitas, contribuir para melhorar as
autonomias diminuídas em vista do que chamamos a humanidade: autónoma,
solidária, pacífica.
7. Mas quem sou eu para falar de amor ao próximo?
[1] A tradição eclesiástica
elencou sete “obras de misericórdia corporais”, as seis de Mateus 25 mais “enterrar os mortos”, e
sete “obras de misericórdia
espirituais”: dar
bons conselhos, ensinar os ignorantes,
corrigir os que erram, consolar os
tristes, perdoar as injúrias, sofrer com paciência as fraquezas do nosso
próximo, rogar a Deus por vivos e defuntos.
Sem comentários:
Enviar um comentário