domingo, 11 de dezembro de 2016

Não! não existe nenhuma Bíblia grega!



1. Francisco Balsemão, ao anunciar o prémio Pessoa atribuído com grande justiça a Frederico Lourenço, disse claramente que este traduz “a Bíblia a partir das fontes gregas”. Tenho grande consideração por ele, pela pessoa e pela obra, mas considero grave que tenha cunhado esta expressão que se arrisca a expandir-se em português. Quem procurar no Google ‘la bible grecque’ não encontra senão uma vez ou outra a expressão aplicada à Septuaginta, a versão grega da Bíblia hebraica feita no meio helenístico para os judeus emigrados que não conheciam já o hebreu. Mas nunca, quanto eu saiba, alguma vez se designou o conjunto da Bíblia cristã, Septuaginta e Novo Testamento, como Bíblia grega. O Novo Testamento foi escrito em grego directamente mas por autores judeus: o cap. 17 dos Actos dos Apóstolos prova que o helenista Paulo não é ‘grego’, ao anunciar Jesus em Atenas a intelectuais gregos que o ouvem com curiosidade mas lhe riem na cara quando ele fala na sua ressurreição: ora, motivo que está no coração do N. Testamento.
2. Trata-se dum contra-senso grave em vista da história do Cristianismo, da sua origem judaica que foi rapidamente açambarcada pela filosofia grega, que a desnaturou, como digo no Argumentário (antes deste texto, neste blogue). O filósofo platónico Celso escreveu “contra os cristãos” em 178, citado e refutado pelo filósofo platónico-cristão Orígenes de Alexandria: “A doutrina dos Cristãos vem duma fonte bárbara. Não se trata de os negar, os Bárbaros são com certeza capazes de inventar dogmas; mas a sabedoria bárbara vale pouco por ela mesma, se não a corrige, purifica e aperfeiçoa a razão grega”. Com meio século de antecedência, ele enunciava o programa de Orígenes no Peri Archôn (dos princípios): a antropologia ‘bárbara’ da Bíblia judaica desapareceu. Não por falta de atenção do grande fundador da teologia cristã (sem ele o Cristianismo não teria prevalecido mas foi absolutamente ignorado pelos teólogos que vieram depois que o menosprezaram, numa das maiores injustiças intelectuais da história ocidental: nem santo nem doutor da Igreja! Ora, Orígenes, que lia o hebraico, fez um Hexaples desaparecido em que justapôs em 6 colunas ao texto hebraico da Bíblia, esse mesmo texto no alfabeto grego e as quatro versões gregas que havia, a Septuaginta, a Aquila e mais duas, podendo assim estudar todas as variantes com rigor; grande parte da sua obra consiste em comentários de textos bíblicos, para o que, em bom platónico, criou um sistema de interpretação da Bíblia que vingou: distinguir os sentidos literal, moral e espiritual. Dito a correr, trata-se de não apenas corrigir imprecisões e impossibilidades dos textos mas, mais amplamente, de purificar e ultrapassar o sentido literal (narrativo, histórico e corporal, tudo coisas que para Platão relevam da geração e da corrupção) para chegar aos sentidos espirituais “dignos de Deus”.
3. Os teólogos felicitam-se desta teoria mas ela teve como efeito, quando se estudava a chamada teologia dogmática nos seminários, que da Bíblia só usavam para argumentar citações fora do contexto bíblico e que também não tinham grande coisa a ver com o contexto teológico dos manuais. Isto é: a filosofia grega, pela sua força própria que lhe vem da definição, ocultou o texto bíblico na sua lógica hebraica, deixando como legíveis apenas, se dizer se pode, as narrativas, isoladas também do seu contexto. Toda a exegese dita histórico-crítica tem sido um esforço de resgatar as leituras, aproximando-se do hebraico e da respectiva antropologia. O que escrevi no Argumentário mostra bem como ainda há muito caminho a fazer, nomeadamente ter em consideração a dimensão politica dos textos bíblicos, indissociável da dimensão ética e espiritual, como é óbvio no motivo hebraico de aliança no coração do Pentateuco e dos textos proféticos e históricos. Ora, isso implica perceber a importância da escatologia e do fracasso enorme que foi, a partir dos anos 70 após a destruição do Templo de Jerusalem, o fim do mundo não se ter verificado como esperado, a despolitização consequente do cristianismo em meio cosmopolita romano, a maneira como foi concebida a relação com a Bíblia hebraica designada doravante como Antigo Testamento, e portanto como a Bíblia se tornou apenas num livro religioso. Não tenho competência para avaliar a tradução de F. Lourenço dos evangelhos, mas verifiquei uma escolha que me parece fortemente criticável, a do tradicionalmente dito ‘Filho do Homem’, nos evangelhos aparentemente aplicado apenas a Jesus, mas que se pode perceber na sua dimensão escatológica e na referência ao cap. 7 do profeta Daniel como uma figura colectiva que ascende aos céus; ora, ele tem razão em excluir a tradução habitual, já que anthropôs não é ‘homem’ oposto a ‘mulher’ mas engloba-os ambos antropologicamente. Só que aceita a proposta dum exegeta inglês de ‘Filho da humanidade’, como quem não se dá conta de que ‘humanidade’ é um motivo moderno europeu; talvez fazer do adjectivo ‘humano’ um substantivo, ‘Filho do Humano’ seria  preferível.
4. Dito isto, a tradução pode ser boa, nos limites da exegese actual. Há que gabar a coragem de se entregar, um homem só, a esta tarefa ciclópica, hoje claramente obra de largas equipas. Mas foi essa ousadia que o levou àquilo que contesto, a falar de ‘bíblia grega’. Além do direito romano, os dois pilares da civilização ocidental são a Bíblia judaica e a Filosofia grega. Sei do que falo : sou autor duma leitura textual do evangelho de Marcos e de outra da Poética de Aristóteles, ambas a partir do grego. A expressão ‘Bíblia grega’ reduz um dos pilares, exclui o judaico, quando a única razão que se pode entender para ela é justamente a ignorância do hebreu pela parte do tradutor, que sozinho não chega ao que por todo o lado hoje se faz: traduzir do original. Felizmente que o termo não aparece como título do livro, mas domina a introdução.
5. Com toda a estima que tenho por Frederico Lourenço.


P. S.
Na revista do Expresso de 17 de Dezembro, Tolentino de Mendonça conta, a partir do filósofo italiano Giorgio Agamben (autor dum belo livro sobre a Carta de Paulo aos Romanos, Le temps qui reste, e que na juventude interpretou o papel do apóstolo Filipe no filme de Pasolini O evangelho segundo S. Mateus), um episódio contado pelo filósofo judeu alemão Jacob Taubes, autor nomeadamente de La théologie politique de Paul, [1987], tendo declarado no final das conferências desse livro: ‘sou pauliniano, não cristão’.
“Certo dia, durante a guerra, passeava em Zurique com Emil Staiger, que era óptimo helenista. Caminhávamos ao longo da Ramistrass, quando Staiger confessa: ‘Sabe, Taubes, li ontem as cartas do apóstolo Paulo.’ Depois acrescentou com profundo desgosto: ‘Aquilo não é grego, é hebraico! [ídiche, na versão inglesa]’. Ao que eu retorqui: ‘Certamente, Professor, é exactamente por isso que eu o entendo’”.
Que Paulo, com educação helenista além da formação farisaica em Jerusalém, escreva ‘hebraico’ em grego segundo um grande especialista de grego, é a mais competente das confirmações que eu poderia esperar para a negação da existência de uma qualquer ‘bíblia grega’!

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