sábado, 31 de dezembro de 2016

DAR, o verbo do Acontecimento



1. O verbo ‘dar’ é impressionante pela variedade enorme de usos semânticos, desafio para qualquer dicionário, que encontra mais de 60 sentidos polissémicos. Por exemplo, o Houaiss ou este:
"dar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/dar [consultado em 20-12-2016].
2. A questão que se me pôs é a de saber se há algma maneira fenomenológica de enquadrar esta variedade, sabendo-se que a maneira dos dicionários jogarem neste caso é multiplicar os complementos directos do verbo e por aí procurar sinónimos, tipo “Provocar o efeito de uma acção física (ex.: dar um abraço; dar uma cabeçada; dar um beijo; dar um pontapé) = APLICAR”. Este exemplo dá [cá está] para perceber que não se trata dum verbo ‘ético’, tanto se dá um beijo como um pontapé, este numa pessoa ou numa bola, portanto também não é necessariamente um verbo inter-subjectivo, como ‘o rio que dá no mar’. ‘Necessariamente’, escrevi. Escapa a um quadro semântico, como os de Maurice Gross, ou talvez tenha lugar em vários, como convém a uma polissemia tão vasta. Mas qual é a ‘necessidade’ das regras que esses quadros explicitam? Havendo regras semânticas segundo a sintaxe da frase, os complementos variados do verbo que a estrutura – o sujeito, o complemento directo e o indirecto, os vários complementos preposicionais (tipo ‘dar com um martelo’ ou ‘dar de caras’) –, estas regras delimitam a polissemia mais geral, gerando polissemias mais restritas. Não produzem uma ‘necessidade’ causal, que é incompatível com a estrutura da linguagem: se, quando se conversa, se improvisa uma resposta ao que se acaba de ouvir, é forçoso que as variadas regras linguísticas dessa resposta sejam compatíveis com o aleatório dela. Nesse sentido, qualquer frase, mesmo frases feitas ou expressões como ‘bom dia, como estás?’, é aleatória, sem necessidade: onde há regras, elas correspondem sempre a situações aleatórias.
3. Ora bem, a hipótese que eu queria propor é a de que o verbo ‘dar’ corresponda à aleatoriedade das coisas ou acções que a sua frase enuncia. Onde qualquer frase use o verbo ‘dar’ como seu nó articulatório – é o verbo que articula os vários complementos de que falei, o sujeito antes dele e os complementos que vêm após ele –, ela significaria que o que é assim ‘dado’, não o é por necessidade mas tem alguma aleatoriedade, alguma gratuidade. “Ceder gratuitamente”, “oferecer (um presente)”, são os primeiros sentidos do dicionário em linha citado, como o de Houaiss, este incluindo todavia a noção de “pôr na possessão (de)” como a forma geral do ‘ceder’, ‘oferecer’. Quando se dá um presente de Natal, quem não o esperava diz por vezes ‘não era preciso’: é justamente por isso que é ‘dado’, porque não há precisão, não se é obrigado a ‘dar’. Mesmo uma árvore que dá frutos, como diz a frase evangélica conhecida “pelos frutos a conhecereis”, dá-os aleatoriamente, melhores ou piores, grandes ou pequenos, todos diferentes aliás, ou seja podia não os dar, não dar nada.
4. Não vou prolongar, muito menos procurar ver se cada um dos casos dos dicionários dá certo [cá está outra vez]. Apenas lembrar que a grande doação do pensamento heideggeriano, em “Tempo e Ser” (1962) é justamente o motivo da ‘doação’, que vinha perseguindo desde os  anos 30 como dom do Ser (não ente substancial, mas diferença ontológica para estes), doação dissimulada, retirada, mas em 1962, como se percebesse enfim que o Ser na tradição ocidental está do lado da Necessidade, da Lei ou Causa, foi levado a substituí-lo pelo Ereignis, palavra alemã para ‘acontecimento’: é que este mais claramente não é ente, não se confunde com as coisas ou gentes que acontecem, é O que dá sem aparecer nesse doar, dá acontecimentos, incessantemente. É pois o verbo ‘dar’ que é assim como que filosoficamente reabilitado: ‘dar’ é o verbo do acontecimento, do aleatório. A doação é sem determinação, imotivada. O que há, existe, em alemão diz-se es gibt, literalmente ‘é dado’ (do verbo geben, dar).
5. Se eu tivesse a petulância de dizer que isto é a minha ‘prenda’ de Natal, sublinharia que a gratuidade do ‘dar’ tem uma face escondida, que a antropologia revelou desde Marcel Mauss: o dom prende, liga o que dá e o que recebe, como em português sabemos bem, que a quem nos dá, respondemos ‘obrigado’, isto é, fico-te ligado, obrigado a dar-te por minha vez, também aleatoriamente, sem necessidade. O dom antes da troca, mas ligação social. Sem darmos não vamos longe socialmente, ficamos ilhas. Ao invés, na lição evangélica dar é ‘graça’, acontecimento bom que nos transfigura.
6. Com Husserl, Heidegger e Derrida, deram-se grandes acontecimentos em Filosofia.

1 comentário:

Luís de Barreiros disse...

Muito interessante... deu para ler num fôlego... e dará para reler...
Bom Ano!