1. ... ao contrário do que se possa pensar, já que
vêm de zonas diferentes da realidade terrestre. A violência releva do que se
pode chamar a cena geral da gravitação, da força de gravidade que Newton
descobriu vendo cair uma maçã: “Porque é que [uma] maçã cai sempre perpendicularmente ao chão, porque
não se desloca lateralmente ou para cima, mas constantemente em direcção ao
centro da Terra ? É óbvio que a razão é que a maçã é atraída pela Terra. Deve
existir uma força de atracção na matéria”, pensou ele, descobriu-lhe a equação e os valores, mas não foi capaz de
compreender a razão de ser desta força a distância – ainda hoje não se sabe
(Feynman) – que governa o destino dos astros, os constitui em suas órbitas como
no sistema solar. O efeito da sua violência é o de dar forma aos sólidos, líquidos e gasosos,
o que se pode dizer que ela faz a metamorfose dos inertes, dependente das condições de pressão e temperatura
da sua zona. Os sismos, os vulcões, os furacões e outras tempestades são
exemplos óbvios desta violência, sem mal no que aos astros diz respeito, só nos vivos que sejam apanhados nela.
2. Com efeito, o mal só se encontra na Terra e não tem necessariamente
a ver com a violência, havendo embora violência ligada a ele: um murro é mal
para quem o sofre e é violência. Mas onde se encontre vida, no que se pode
chamar a cena geral da alimentação, há sempre mal, este é inerente à sua
possibilidade nova, a de crescer, alterar-se, deslocar-se, se de animais se
trata: além da inércia das rochas e dos mares e dos ares, os vivos definem-se
por terem movimento por eles
mesmos. Ora, este não pode ser, como em tempos se sonhou, um “motus continuus”,
um motor por si só permanente: exige constantemente ser alimentado do exterior,
em energia e em substância molecular.
3. O mal não reside apenas no facto de todos os vivos serem mortais (o que não é
uma ‘violência’), embora com esperanças de vida muito diferentes, mas também na
necessidade de alimentação
para adiar a morte. Teremos que dar uma volta pela biologia molecular para
entender o escândalo desta, no que aos animais diz respeito. Há mais de 30
anos, deparei-me com esta dificuldade: se todas as moléculas dos vivos têm
carbono com a sua dupla ligação, como é que a evolução foi possível, onde foi
ela buscá-lo estando sempre a aumentar a sua necessidade? Uma biologista amiga
explicou-me: no início da vida, a atmosfera era de CO2, não havia
oxigénio (estamos a voltar aì? hoje é o inimigo!) e foi o mecanismo da
fotossíntese com algas que foi fornecendo as moléculas de carbono necessárias:
ainda hoje as plantas vivem por receberem glicose assim e libertam oxigénio que
os animais respiram (donde a importância das florestas, pulmões sociais). O que
significa que os herbívoros vão buscar as suas moléculas de carbono às plantas
que comem e os carnívoros aos herbívoros: este ciclo biológico do carbono é uma regra estrutural da evolução da vida: no
reino animal, comer outros vivos é uma necessidade primeira, eis o mal na
sua génese: é a vida que precisa
dele e impede que a maioria dos animais morra de ‘morte natural’ mas da
violência de serem caçados para alimento de outros. Invertebrados como
vertebrados, as astúcias para caçar outros são variadas, dentes e garras,
claro, ferrões e venenos e teias de aranha, quantas mais, e nos vertebrados
músculos quer para força quer para velocidade, focinho de guerra (o
‘antepassado’ da boca com que falamos e beijamos) e novo córtex cerebral de
aves e mamíferos dedicado a estratagemas tanto de caça como de defesa,
dissimulações e esconderijos. Que é preciso comer e portanto caçar, é algo a
que se é pulsionado por hormonas, cujo nome foi buscado ao verbo grego hormaô, sendo o seu sentido algo como ‘excitar para a
guerra’, como as há de ordem sexual que empurram para o coito para bem da
espécie. Tudo isto são invenções da evolução para fazer mal aos outros e bem a si (ou à espécie) e nós
humanos herdámos-lhes artes de mãos e manhas, músculos de combate e velocidade
de fuga, além de fêmeas sem cio que complicou mais as ‘maldades’ possíveis e
até, inexplicável, a violência que diz o verbo ‘violar’. Acrescentámos ao novo
córtex a linguagem multiplicadora das manhas, e esse combate permanente que
implica a lei da selva foi transformado em lei da guerra, rivalidade sempre capaz
de se acender em qualquer nível de alianças entre humanos, dentro das famílias,
entre bairros e cidades, países e impérios. Sempre que houve invenções técnicas
importantes, entre as primeiras aplicações vieram as armas.
4. Já Nietzsche dizia que “a Natureza é bela e
cruel”, a sua lei, a lei da selva, é que o mal daquele que é comido é o bem daquele que o come. Seja dito de
passagem que crer-se num Criador que assim criou a vida implica pensá-lo como
destituído de bondade. Mas há um outro aspecto do Mal de origem anatómica, que
releva da dimensão bastante grande das moléculas celulares que não cabem nos
estreitíssimos vasos que trazem o sangue com a alimentação a cada célula, o que
implica que o aparelho digestivo tenha que entregar ao sangue, nas paredes do
intestino delgado, moléculas de carbono de dimensão adequada a esses vasos
finais e que sirvam depois na célula de matéria prima para, sob tradução dos
genes e seus ‘mensageiros’, sintetizar as proteínas, fabricar as moléculas mais
complexas de que a estrutura da célula precisa. Ora bem, quero crer – deduzo
eu, não li em sítio nenhum – que reside neste jeito das sínteses e na
necessidade de enzimas para catalisar a formação das proteínas, que estas são relativamente
frágeis e com tendência a desagregarem-se em moléculas menores, quero crer que
reside aí a razão de ser da morte, por entropia (à Clausius) lenta que desfaz o
que a entropia (à Prigogine) fabricou instavelmente, e razão provavelmente
também de muitas doenças. Ao que chamamos ‘doença’, os franceses chamam
‘maladie’: o que para eles é ‘mal’, para nós é ‘dor’, sinal do mal que é dado
pelos neurónios para que tentemos livrarmo-nos dele. E talvez se possa
acrescentar que o chamado sofrimento moral, lutos e outros desgostos, seja uma
espécie de sublimação tribal no novo córtex (a dor física será no antigo,
necessária a qualquer vertebrado) que tem a ver com os impasses das estratégias
de habitação, com rivalidades onde se esperavam alianças solidárias. Talvez.
Sem comentários:
Enviar um comentário