quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O que é um fenómeno? e a Fenomenologia?



O deslocamento da Fenomenologia enquanto ‘retorno aos fenómenos’
1. A questão foi debatida em meados de dezembro de 2016 num Encontro na Faculdade de Letras de Lisboa, a que uma intervenção cirúrgica ocular me impediu de assistir. Mas o programa proposto, com a excepção do título de Pedro Alves que interroga a física quântica para abrir o questionamento e me deixa cheio de curiosidade, parece andar em roda de Husserl e da problemática lógico-filosófica de há um século, o que me não excita particularmente, embora os meus conhecimentos dela sejam limitados, porque justamente nunca me acicataram a sério, comparado com os seus dissidentes Heidegger e Derrida. Tomarei o fio da minha comunicação ao Congresso de Braga, Abril de 2016,  neste blogue, aonde esbocei as relações entre estes três pensadores donde resultou o que fui levado a chamar ‘fenomenologia’, não como projecto meu inicial mas ao cabo de vários anos de leitura e escrita que me fizeram perceber aonde tinha chegado, por assim dizer inadvertidamente (explica-se assim uma ‘ambição’ desmedida que não foi deliberada, medida).
2. Começava assim esse texto. “O aparecer do próprio objecto, [...] a vivência intencional em que o objecto aparece”, é o fenómeno, imanente à consciência, não o objecto que aparece, que transcende o que é dado à consciência. O fenómeno será a imanência na consciência do aparecer do que lhe é exterior, o motivo ‘imanência’ sublinhando a dupla pertença do fenómeno, ao ‘objecto e à consciência ou ‘sujeito’, a ultrapassagem da dualidade cartesiana entre duas ‘substâncias’, a res cogitans e a res extensa. Passo decisivo da fenomenologia de Husserl que, como se sabe, vivia obcecado pela “crise das ciências europeias”, embora privilegiando a matemática e a lógica entre elas, além da psicologia que abandonara. Os exemplos husserlianos de fenómenos andam sempre em volta da percepção, sobretudo visual: o fenómeno é um objecto visto pela consciência. Ora bem, de uma forma um tanto irreverente, perguntemos: qualquer coisa que eu veja é um ‘fenómeno’? A palavra no seu uso corrente diria justamente o contrário, um ‘fenómeno’ é algo fora do habitual, é algo que chama a atenção por alguma bizarria, por algo de excepcional, digno de ser visto e ponderado, provocando espanto e pedindo explicação. E tendo Husserl como lema “o retorno às próprias coisas” e se estas não são ‘inertes’ (à maneira de Newton), devemos considerar duas iniciativas para haver fenómeno: a da coisa, que chama a atenção do fenomenólogo, a deste, que retorna a sua atenção para ela.
3. Que a coisa chame a atenção, tome a iniciativa, é algo que relembra a tese aristotélica (dita realista) da sensação (a percepção) como faculdade ‘passiva’ do humano que a recebe: é ela, a coisa vista ou ouvida ou mexida, que age para que haja conhecimento (aliás não só sensível, também inteligível). Para que seja assim, foi necessário a Aristóteles pensar as coisas na sua Physica como capazes (dunamis) de movimento por elas mesmas; é sem dúvida algo que faltou a Husserl e que o seu discípulo Heidegger não deixou de lhe objectar: a percepção privilegia no tempo o ‘presente’, ignora-o como sucessão, como movimento entre passado e futuro (fotografia sem cinema, dir-se-ia). E tem dificuldade igualmente com o tempo do próprio fenomenólogo, que Heidegger problematiza como Dasein, ser no mundo doutros como ele, falantes e com os mesmos usos, ser no mundo de incessantes movimentos; acrescentemos, vivo como as coisas vivas que nascem, crescem e morrem, ou seja fenómeno também ele entre as coisas a que quer retornar. Mas então o motivo de ‘fenómeno’ torna-se muito mais complicado. Dizia nesse texto: “Dasein é um ser no mundo da tribo em que nasceu, afectado pelos seus usos e costumes. O motivo de Mitsein é igualmente parte essencial deste mundo social (como não são as ‘almas’ nem as ‘consciências’ que conhecem objectos), são todos seres com mãos que jogam sobre coisas do mundo, mãos que com elas usam e trabalham”. Ora, a noção de ‘trabalho’ com a de ‘linguagem’, enquanto inscrições que reproduzem, alteram, transformam, gravam tanto objectos como outros humanos, pode-se dizer que é a novidade que Derrida acrescenta ao par Husserl / Heidegger em cujas leituras a sua escrita se iniciou fenomenologicamente, introduzindo nomeadamente o motivo de texto (inter-textualidade), à diferença do ‘livro’ (fechado com o seu ‘autor’ e suas supostas ‘intenções’): não somos seres no mundo senão porque o trabalhamos e dizemos, não há (mundo) fora dos textos e discursos que nos trabalham e dizem incessantemente, sempre uns com os outros e as mãos nas coisas, nas máquinas.
4. Heidegger e Derrida não são fenomenólogos, objectaram-me por duas vezes aos meus dois volumes, Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, o segundo com subtítulo La Phénoménologia reformulée, en vérité. Sem dúvida, no sentido em que se pense a fenomenologia como husserliana! Só que é esse sentido que estou deslocando, caminhando com eles e procurando trazer o trabalho deles até onde se possa reencontrar o desígnio do “retorno às próprias coisas”. Uma tal caminhada não se pode fazer só ao nosso nível filosófico, isto é sem atender a uma boa parte da bagagem da filosofia europeia que Kant (apoiado em Newton) a fez deixar pelo caminho: a chamada filosofia natural ou da natureza, mais a filosofia social, económica, politica, a psicologia racional, a filologia ou poética e por aí fora, trata-se de áreas do conhecimento filosófico, nomeadamente aristotélico, que na modernidade europeia foram ganhando metodologias laboratoriais e se autonomizarem relativamente das categorias filosóficas, virando ciências (umas mais, outras menos). Quando chegaram à maturidade e por aí andam em departamentos universitários e laboratórios variados, tecnológicos ou estatísticos, buscando interdisciplinaridades porque os fenómenos de que se ocupam lhes escapam aos limites, quando frequentemente se renovam porque algum seu agente tem formação filosófica suficiente, em resumo, quando a redução kantiana sobre a sua dimensão filosófica original deixou de ser necessário, pode o fenomenólogo armado dum motivo da gramatologia derridiana, o de duplo laço, perceber que algumas das principais ciências tornaram possível desenhar nas vizinhanças dos seus laboratórios os contornos dos fenómenos que analisaram neles de forma fragmentada, sem os conseguirem restituir de maneira suficientemente fenomenológica. Dito de outra maneira, uma fenomenologia que se queira à altura da grande tradição filosófica que nos veio dos Gregos e que tornou possível os laboratórios científicos não se pode ater à restrição da filosofia europeia em consequência das descobertas desses laboratórios. Tem que se alçar à altura da Physica de Aristóteles, da sua Filosofia com Ciências.

Caracterização do fenómeno
5. O que é então um fenómeno? Esta é a pergunta própria da definição e o fenómeno escapa-lhe, não se deixa definir, tais são as suas diferenças segundo os campos científicos que deles se ocupam e que nos permitem abordá-los fenomenologicamente na sua peugada; mas também não se deixa definir por outra razão, já que a definição valia para a ousia aristotélica, a qual foi até à modernidade científico-filosófica, até ao newtoniano Kant – é com ele que a palavra ‘fenómeno’ aparece no coração do vocabulário filosófico –, a predecessora bimilenária do que aqui buscamos caracterizar. Este verbo – caracterizar – é menos ambicioso no seu alcance do que ‘definir’, que retira o definido do seu contexto e lhe define uma essência comum a todos os definidos correlativos; nem sequer estou certo de que as várias ciências – as grandes, não as suas inúmeras especializações: a física-química, a biologia, a linguística estrutural e textual, a antropologia (história e sociologia), a psicanálise – possam ‘definir’ o que dos seus campos aqui se caracteriza como fenómeno, possam fazer mais do que, digamos, reconhecê-lo. A vantagem do termo ‘carácter’ que me veio inopinadamente à escrita – é uma das bênçãos desta! – é que ele implica uma fixação de caracteres que dizem ‘inscrição’, ‘gravação’ em singulares, isto é, uma repetição vinda de fora como força, pressão, trabalho, mas que não se repete igualmente nos outros singulares. Assim é cada fenómeno, resulta de acontecimentos singulares por definição e não se deixa separar deles: permanece-lhes ligado como condição do seu ser fenómeno, do seu agir enquanto fenómeno. O que implica que esses acontecimentos formam algo que fez/faz/fará doação do fenómeno e ao qual ele pertence, algo que fui levado a chamar cena e que não é senão um vastíssimo conjunto de fenómenos do mesmo tipo. Eis a primeira caracterização.
6. Com a cena que faz doação introduz-se assim o motivo de ‘tipo’ de fenómenos, que releva das ciências que deles se ocupam e que só o podem fazer na medida em que esses fenómenos conheçam alguma mobilidade, alguma variação com o tempo (com o espaço obviamente também). As possibilidades de movimento delimitam as diversas ciências e portanto as diversas cenas, elas implicam uma dualidade de ligações de cada fenómeno à cena doadora respectiva onde circula, se reproduz (consoante justamente essas possibilidades, são verbos da mobilidade). As duplas ligações (ou laços) deixam-se caracterizar por uma delas se referir ao motor do movimento do fenómeno, e se encontrar retirada estritamente da cena, que todavia a alimenta, e por a outra ser reguladora do movimento na cena, em função dos outros fenómenos dela[1]. Há obviamente grandes diferenças entre fenómenos da mesma cena, nomeadamente de dimensão e com ela em geral de complexidade da composição. Não é aí pois que reside a tipologia que distingue as cenas, mas o retiro do motor tal que em todos os casos as várias ciências se renovaram fortemente no século XX com a sua descoberta, a que nos primeiros parágrafos do meu Le Jeu des Sciences chamei não-fenómenos, pois que em todos os casos dos cinco tipos de ciências aduzidas acima se verificou que se tratava de zonas não manifestas. Eis a lista: o núcleo de protões e neutrões que as forças nucleares retêm; o programa genético, retido no núcleo das células eucariótidas que rege o metabolismo sem intervir directamente nele e se reproduz sempre o mesmo em todas as células dos organismos; o sistema fonético (das letras nos alfabetos) das línguas que articula palavras e frases nas vozes e é desconhecido por estrangeiros (Saussure, Troubetzkoy); o interdito do incesto articulando o paradigma do sistema dos usos (Kuhn) das unidades locais de habitação de todas as sociedades como condição da exogamia que as constitui (Lévi-Strauss); o recalcamento da sexualidade como dinamismo inconsciente sublimador do psiquismo humano (Freud). Estes duplos laços, motor e regulador, não se manifestam apenas nestes exemplos: por exemplo maior, eles ilustram a primeira grande invenção tecnológica da modernidade, a máquina a vapor, e depois qualquer outro tipo de máquina, mormente com motor eléctrico ou de explosão, mas manifesta-se igualmente em análises parcelares de fenómenos mais complexos de instituições sociais (de que tenho um estudo inédito relativo à fenomenologia histórica e textual das igrejas cristãs, com argumentário também neste blogue). No blogue aqui ao lado Filosofia com Ciências um longo texto expõe estas análises.
7. Estas duas componentes de cada fenómeno, uma retirada estritamente e devendo ser alimentada como motor de movimento[2] e a outra reguladora desse movimento com um retiro de que releva a sua autonomia, são ambas doadas pela cena que, por sua vez, retira essa doação da heteronomia geral da cena, dissimula-se de maneira a deixa ser a autonomia regulada (este ‘deixar ser’ é um ponto fulcral do pensamento de Heidegger). Pode-se assim formular uma espécie de tese fenomenológica dos retiros: o retido doador é condição do retiro estrito do motor e do retiro regulador, a heteronomia doada retira-se para deixar ser a autonomia do fenómeno. Mas este ‘retiro’ doador heideggeriano não é abandono, não é nem presença nem ausência; ele tem a condição do rasto gramatológico de Derrida, não ‘presente’, não ‘fenoménico’ pois que retirado, não está ausente porque mantém no fenómeno os seus efeitos doados. Um exemplo óbvio é o dos Antepassados, quer nos genes da sua descendência biológica, quer nos usos de língua e de residência e trabalho dos descendentes que deles os aprenderam em sua juventude, para os exercerem tais quais, heteronomia privilegiada pelos indígenas (Lévi-Strauss e Clastres) e por todos os receituários tradicionais, mas segundo a respectiva habilidade de cada um, autonomia essa que dará lugar às sempre lentas invenções do futuro. A aprendizagem faz-se da heteronomia ancestral à autonomia de cada um e implica assim um conflito, correcções com castigos e prémios, o qual conflito ilustra uma outra tese fenomenológica, explicitada por Derrida: as duas leis dum duplo laço são indissociáveis e inconciliáveis. O filósofo francês pensou estes motivos na sua gramatologia sem todavia ‘aplicar’ a esta o duplo laço, mantendo este nas questões urgentes de ética e politica dos anos 80 e 90 da sua actividade de escritor pensador empenhado (faltar-lhe-ia também algumas competências científicas). As leis que regem o motor e o regulador de qualquer fenómeno são indissociáveis: não existiam antes separadamente e em seguida ajuntadas, mas a sua ‘invenção’ pela constituição dos astros e pela evolução da vida e da história dos humanos foi das duplas sempre-já, na respectiva indissociabilidade. Mas também sempre-já na sua inconciliabilidade, sem a qual não seria possível que houvesse movimento, com o que este implica de autonomia continuada, perseverante[3]. O retiro estrito do motor implica que ele seja ‘cego e surdo’ em relação à cena e ao regulador (assim os genes e as hormonas nos vertebrados, o cilindro de explosão dos carros), este justamente tem como função adequar-se à singularidade da cena em cada momento do seu movimento: tem que ser ‘empurrado’ para o movimento mas de forma a manter a autonomia de regulação, como faz a embraiagem entre o motor e o restante aparelho do automóvel, que aqui nos serve de metáfora, embora seguindo uma ‘lei’ que lhe era prévia e que foi condição da sua invenção: mas este termo não o foi Aristóteles buscar ao ‘transporte’ para a sua Poética?[4] Estas coisas são engraçadas, mais ainda quando vêm à escrita assim. Vê-se bem, em todo o caso, como a explosão no motor do automóvel tem que ser muito estritamente retirada num cilindro hermeticamente fechado para não danificar o resto do carro, com que é inconciliável.
8. Uma outra caracterização desta dupla ligação fenomenal é a diferença entre as respectivas temporalidades. O motor, retirado estritamente e indiferente às complexidades da circulação para onde envia o fenómeno, rege-se como uma repetição, cuja cadência pouco se altera devido aos acontecimentos da cena, ao invés da ‘atenção’ permanente a todos os incidentes destas por parte da instância reguladora, cujas regras (de autonomia relativa) são recebidas da própria cena, consoante a dimensão e complexidade do fenómeno. Claro que o termo ‘atenção’ é antropomórfico, já que todas as minúsculas regras fisiológicas dos vivos descobertas pelos biólogos ou as imperceptíveis erosões que produziram as areias das praias fazem parte desta regulação, que tanto acontece ao fenómeno como lhe acontece a ele, investigador: com grande frequência esta nossa simpática dualidade activo / passivo não tem pertinência neste jogo ínfimo. E que por isso mesmo é de estarrecer.
9. O fenómeno escapa portanto à definição como à causalidade clássica, de tipo substancial, causa / efeito: foi sempre aliás o obstáculo ao pensamento filosófico e científico (os ‘acidentes’), no que se chama ‘realidade’, o que fica de fora dos limites, quer da essência definida, quer do laboratório científico, obstáculo ao pensamento e conhecimento que generaliza e argumenta sobre essências. Ou seja, o fenómeno é imotivado, releva de acontecimentos que o dão, o alimentam, a tal ‘realidade’, a do contexto, a da respectiva cena que doa os fenómenos. O duplo laço enlaça os diversos elementos de que ele é composto, estruturando a sua mobilidade e ligando essa dupla estrutura à cena e suas grandes leis e regras reguladoras. É o que faz a grande dificuldade da fenomenologia que queira estudar, analisar, diagnosticar um fenómeno na sua singularidade, no seu contexto. Às ciências é impossível em razão do laboratório que serve para generalizar mas impede de conhecer o singular em seus acidentes, já o velho Aristóteles dizia que a este não alcança a ciência. Mas não às técnicas, que estudam os seus mecanismos em função do trabalho que se espera deles na respectiva cena, deitando mão a várias regiões científicas, como politécnicas que são. Por exemplo, biologia e farmacologia são ciências, medicina é técnica de biologia humana que trata tal doente: a grande dificuldade hoje em dia é a sua especialização, com especialistas que sabem pouco das outras especialidades vizinhas, donde a necessidade de generalistas, médicos de clínica geral, como se diz, ou nos hospitais, médicos de medicina interna.

10. Outra dificuldade desta abordagem fenomenológica consiste na sua dependência das diferenças entre as grandes cenas, diferenças essas que relevam das grandes ciências. Ora os fenómenos jogam-se fenomenologicamente em todas as cenas, como qualquer acontecimento, os romances e os filmes, e cada ciência só se efectua reduzindo todas as outras, excluindo-as do seu laboratório. Este é um limite intrínseco da fenomenologia aqui reformulada, provavelmente insuportável para filósofos, a rançao da sua assumpção das cenas científicas. É da cena da gravitação que relevam, em última instância, como se diz, todas as outras, incluindo as máquinas e diversas tecnologias e suas poluições, que são o retorno moderno das cenas da habitação e da inscrição, dos usos sociais e dos textos de conhecimento, à cena da gravitação, que fora deste caso – hoje preponderante – fica quase em silêncio no que diz respeito às ciências da alimentação, dos vivos, e às outras duas. É pelo contrário entre estas que as dificuldades são múltiplas: da biologia às antropologias (fome e sexo, por exemplo) ou às psicologias, nomeadamente à psicanálise, ou ainda à economia e suas crises. Ou ainda, questão que me ocupou desde a leitura “materialista” do evangelho de Marcos e que justifica o inusitado do adjectivo nesse tipo de leituras, a relação do texto com a sociedade que o produziu ou aquela em que foi / é lido. A gramatologia de Derrida, tão difícil e irrepetível, mormente quando se trata dos numerosos textos literários a que se dedicou, joga fortemente nesta inextricável articulação entre o que chamo ‘cenas’. A célebre afirmação de que “não há fora de texto” é disso que trata também, como a distinção entre livro e texto, aquele fechado entre duas capas, um princípio e um fim, este aberto aos muitos textos donde provém e a outros a que esses se ligarão posteriormente, colocação duma espécie de princípio de inter-textualidade, de escrita, que se esclarece lendo textos e não querendo saber de algo ‘fora deles’, referentes de que eles falariam. Só lendo textos – ouvindo e falando desde bebés aprendemos a ver, a mexer, a fazer – temos acesso a fenómenos, que os textos não se fecham em livros mas abrem-se sempre a outros discursos / textos como condição da nossa leitura dos fenómenos, também estes são derivados de outros e abrindo outros ainda, sem uma Causa inicial, fosse a dum big Bang, nem final: a dupla ligação como imotivação dos fenómenos é o que provoca espanto em cada caso e coisa que se trate.
11. Com efeito, ser esta dupla lei o segredo de todas as coisas, de todos os fenómenos, eis o que é por sua vez um Fenómeno ao nível do pensamento, coisa de enorme espanto, quer se se pensa que tudo se constituiu assim, pedras, mares e ares, vivos e sociedades e textos de humanos, de forma inverosímil dois indissociados inconciliados, dois inimigos que são amigos de peito – em substancialidades (ousiai) muito diversas, quer se se pensa que esse inverosímil sucede permanentemente no nosso mais anódino quotidiano, que tudo, absolutamente tudo, merece ser qualificado como um fenómeno extraordinário de que nunca até hoje ninguém se deu conta, tantos e tão extraordinários pensadores que houve desde Platão e Aristóteles pelo menos. Foram Husserl, Heidegger e Derrida, os pensadores intrépidos que abriram um caminho novo, impensável – holzwege, senda de floresta aberta pelos pés de caminheiros – que os duplos laços derridianos fizeram desembocar no “retorno às próprias coisas” que Husserl tinha reclamado, retorno aos fenómenos. Caminho pois talvez sem saída, já que a necessidade de conhecer um pouco as principais ciências nesta época de especialistas, impiedosa para as carreiras dos curiosos que se atreverem a ir espreitar outras paragens, ajudará ao silêncio em torno de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida publicado numa editora de fraca fama. E então não haverá Fenomenologia deslocada, o que também não deixaria de ser um fenómeno, embora sem haver alguém para se espantar dele, excepto o seu autor, que teve a lata de identificar, com critérios fenomenológicos, as cinco principais descobertas científicas do século XX! (as do § 6). E a lata de falar de Fenomenologia reformulada em verdade! E ainda, contra o relativismo, de propor um sistema global onde em cada fenómeno acaso e necessidade têm a unidade dum jogo, como queria Derrida.
12. Eis a simplicidade do primeiro parágrafo desse texto em dois volumes. “A Ciência não existe, só há ciências. Estas são actualmente, tanto quanto o não especialista pode julgar, irredutíveis entre elas, fechadas nas suas fronteiras, que as diversas tentativas de interdisciplinaridade de alguns anos a esta parte não parece terem desbloqueado. A incomensurabilidade que Kuhn atribuiu aos seus paradigmas teve como efeito acentuar a sua insularidade, ou melhor, se se tem em conta as inumeráveis especialidades que dividem cada domínio científico, encontramo-nos diante de imensos arquipélagos, do impossível enciclopedismo caótico de centenas de disciplinas que escapam a qualquer tentativa de as reunir (ver cap. 13, § 26). Em face do caos, a tarefa do pensamento é, foi sempre, de lhe encontrar razão. Eis aqui um ensaio”.



[1] Com duas excepções (parece-me), as relativas aos fenómenos elementares das duas grandes Cenas do universo, os átomos da cena da gravitação astral e as células da cena da alimentação terrestre, provavelmente devido a essa condição elementar, ligada aos dois problemas maiores de origem, a da matéria / energia e a da vida.
[2] No caso dos átomos de inertes, sem alimentação, necessita ou de uma força externa que a mova na cena da gravitação ou de proximidade suficiente para transformações químicas.
[3] Estou a pensar nas dificuldades que esta questão põe à pré-história do big Bang até às estrelas: partículas ou núcleos atómicos não me parecem susceptíveis de ‘movimento’, apenas de ‘explosão’, e depois que lhes sucede? Mas não sei que chegue nesta questão, que me parece fenomenologicamente impossível.
[4] Na Atenas de hoje podem-se ver autocarros com a designação Metáfora.

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