quarta-feira, 11 de março de 2015

Tempo ou temporalidade ?




1. Em sequência ao texto Física Química e gramatologia, a questão do tempo que interessou o Público nos seus 25 felizes anos, para nós leitores, pode ser tomada de outra forma. Percebe-se que a definição de tempo de Aristóteles, do tempo como “o número do movimento, segundo o antes e o depois”, implica que é a partir do movimento que ele procede e é possível que Francisco Limpo Queiroz tenha razão contra o Heidegger  interpretando Aristóteles (http://filosofar.blogs.sapo.pt/105816.html): pelo menos, acho que se pode dizer que é o movimento que no grego precede o tempo, ao invés de Heidegger de Ser e Tempo, que creio ser refém da maneira como a física de Galileu se apoderou do movimento e mediu o tempo, introduzindo essa medida como categoria geométrica, como diria Newton, que entendia a Filosofia natural como geometria mais mecânica. Igualmente o espaço em geometria, o nome o diz, é uma medida, uma diferença, uma distância entre dois lugares; o tempo será uma diferença entre dois momentos, uma diferância, se se pudesse dizer recorrendo a Derrida. Para este pensador pós-heideggeriano, se houvesse algo de prévio epistemologicamente, seria o jogo do rasto ou différance que implica o espácio-temporalização, a relação estrutural ao outro e a linguagem como inscrição. Se não é prévio, é porque justamente desse jogo só sabemos no movimento das ‘coisas’ que ele é, que ele dá. Pode-se dizer então que o tempo é uma abstracção, tal como o espaço (categoria desconhecida dos gregos, que só conheciam o lugar), o peso, a força, mas também a liberdade e tantos outros motivos filosóficos: o que existe são coisas temporais entre o seu surgir e o seu desaparecer, sendo que surgem sempre de outro(s) e para outro(s) desaparecem, coisas essas que também são espaciais, pesadas, indeterminadas, etc. Ora, as temporalidades são muito variadas. Sejam três exemplos.
2. Um relógio com ponteiros dá a aparência dum tempo linear, é para dar essa aparência que ele é feito, comprado, usado. Mas olhando para o funcionamento dele vê-se que ele tem três temporalidades cíclicas: a do ponteiro dos segundos que percorre o mostrador todos os minutos, o dos minutos todas as horas e o das horas de 12 em 12 horas. Quem não souber da maneira ocidental de medir o tempo, olha para um relógio perplexo, achando certamente graça aos movimentos dos ponteiros, embora só dê pelo dos segundos.
3. Segundo exemplo. Um livro escrito para ser lido (também dá para uma conversa, alguém que fala e outro ouve) também exibe linhas de frases que os olhos vão seguir. Mas basta pensar que quem não souber a língua pode percorrer as linhas com os olhos e não ler, para se perceber que há mais do que essa linearidade. As letras, com acentos e ditongos, fazem uma quarentena de elementos que se repetem vertiginosamente nas palavras, assim como as palavras se encaixam sintacticamente em frases e estas se ligam entre elas sucessivamente. Mas esta temporalidade complica-se: à medida que se avança na leitura das páginas, é necessário ir retendo na memória, não de cor é certo, o que se leu como condição do que se está a ler; e também há que manter a antecipação, o suspense, do que falta ler. Então a temporalidade da leitura das linhas complica-se com o movimento de reter o já lido e de diferir o por ler. E como é que se retém o que se leu, se não é de cor? Quando se volta atrás, ou no dia seguinte, percebe-se: ‘isto já li’; e leste o quê? Resume-se o que se leu, o que é outra forma ainda de temporalidade, o da possibilidade de resumir (que não tem a temporalidade da escrita matemática, nem a da música, nem a das imagens).
4. Terceiro exemplo, a temporalidade da nossa digestão. Ela tem dois termos, o primeiro é o despertar do apetite, a vontade de comer, o último é o metabolismo das células jogando sobre as proteínas, hidratos de carbono, gorduras, vitaminas e sais minerais que lhes chegaram pelo sangue, algumas horas depois de se ter comido. Ainda aqui, há um processo que é apreendido de forma linear pelos nutricionistas, mas também a temporalidade se complica: é que a vontade de comer, que nos vem por via hormonal, antecipa as duas ou três horas que os nutrientes levam a chegar às células, começa a soar mais cedo. Assim como outra hormona vem fechar o apetite, dá-lo como saciado ao fim duma certa quantidade de comida, bem antes outra vez do tempo digestivo se ter completado. Não é linear, não. E pensar que os bebés mamam de três em três horas, já com esta temporalidade bizarra que antecipa e depois adia: ao fim de algumas semanas, as mães começam a esticar os tempos da noite, de forma a que ele se habitue a uma pausa nesse ciclo das mamadas.
5. Voltemos ao princípio.  Galileu, na experiência que conta no Discurso sobre duas novas ciências, mostra claramente que para ele o movimento precede o tempo. Ora, não havendo então cronómetros, para medir o tempo Galileu inventou uma técnica astuciosa: pesou-o. Ele conta assim: “para medirmos o tempo, tomávamos um grande balde cheio de água que atávamos bem alto; por um orifício estreito praticado no fundo, escapava-se um fio de água que recolhíamos num recipiente durante o tempo em que a bolinha rolava na calha. As quantidades de água assim recolhidas eram pesadas de cada vez com uma balança muito sensível, e as diferenças e proporções entre os pesos davam-nos as diferenças e proporções entre os tempos” (ed. fr. 1970, p.144). Espectacular! Medir-se o tempo em segundos ou em gramas de água (nossas unidades) é a mesma coisa do ponto de vista do próprio conhecimento científico! O que significa que é logo o primeiro grande físico europeu na primeira narrativa recebida duma experiência que confessa que em física não se trata do ‘tempo’ nem aliás do ‘espaço’, mas apenas de medidas, de diferenças não substanciais. Elas bastam à física que, a esse nível, não tem nada a fazer nem com um nem com o outro. Acrescente-se e escandalize-se os físicos: ela não sabe nem tem que saber o que ‘é’ o tempo ou o espaço, só sabe de diferenças medidas e das respectivas proporções, para o que precisa de instrumentos adaptados e de convenções adoptadas pelos físicos sobre as respectivas unidades, como o metro ou o pé, o segundo ou a grama de água, em resumo, além de matemática, precisa essencialmente de técnica. O discurso teórico com que o físico interpreta as suas experiências é da ordem da definição, recebido da filosofia, sujeito como esta a confrontos, como a história demonstra, a normalidades e a revoluções.

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