sexta-feira, 20 de março de 2015

Recapitulação gramatológica



 
1. As inscrições linguísticas são o quê ? Parecem ser da ordem da sensibilidade, já que se vêem ou ouvem. Mas se fôr numa língua que não conhecemos, em sueco por exemplo falado ou escrito alfabeticamente, percebemos que, sendo necessários, nesse caso não bastam o ver e o ouvir para ler ou entender. Derrida pegou no célebre aforismo de Saussure, « na língua não há senão diferenças, sem termos positivos », na distinção que ele propõs entre os sons ouvidos e os significantes, e aplicou-lhe a redução fenomenológica entre o empírico, o que aparece no mundo e o seu aparecer fenomenal, propondo que são os sons empíricos que aparecem, que se ouvem, e que o significante, o parecer, consiste nas diferenças entre eles : as palavras que se entendem. O mesmo se pode dizer dos riscos empíricos que se vêem num papel ou num ecrã, de que as diferenças são os significantes, as palavras que se lêem. Então, os sons nas vibrações do ar e os riscos no papel são a matéria de empréstimo sem a qual não há inscrições e estas, relevando da língua, são as diferenças entre sons e entre riscos que se repetem igualmente, qualquer que seja a voz que diz os sons, qualquer que seja a letra da mão e caneta ou da impressora tipográfica. No que à linguagem duplamente articulada, oral ou em textos alfabéticos, diz respeito, são estas diferenças estruturadas em línguas, em sistemas linguísticos variados, que são inscritos em vozes ou riscos e por eles reproduzidos. Estas diferenças entre coisas sensíveis não são elas mesmas sensíveis, mas também não são puramente inteligíveis, já que ‘entre’ sensíveis. É por isso que a linguagem é o que resiste à oposição entre o sensível e o inteligível que herdámos dos Gregos, a oposição alma / corpo e obrigou a Europa a uma ‘ideia’, uma representação do ‘objecto’ que o corpo vê na alma ou consciência do sujeito. O que se desconstroi aqui é a oposição entre o inteligível e o sensível, entre a alma e o corpo, entre o sujeito (e as suas mentalidades) e o objecto (e as suas representações no sujeito). Porque só há sujeitos porque aprenderam, por que de fora foram inscritos das mesmas inscrições do seu mundo tribal. Era bom que quem trabalha em ciências sociais e humanas assim com em filosofia tradicional soubesse que sempre que escreve a palavra ‘representação’ está a aceitar a alma e o corpo, ainda que ache que não.
2. A linguagem, como aliás a música e a matemática e as imagens do cinema, é feita de diferenças que criam o seu próprio espaço (o destas linhas que se estão lendo) no espaço prévio do papel ou do ecrã, como criam o seu tempo : cada frase que se lê só tem sentido por reter as anteriores já lidas e criar suspense sobre as que falta ler. Foi a esta maneira de introduzir o tempo, o sentido temporal do verbo diferir, na palavra diferença, que o não contém, que Derrida chamou ‘différance’, colocando um ‘a’ no lugar do ‘e’, jogando também com o facto de em francês ‘en’ e ‘an’ se lerem da mesma maneira e portanto só se poder dar pelo seu neologismo na leitura e não na audição oral. Uma diferença que se lê e não se ouve dá a entender que o privilégio tradicional do pensamento sobre a linguagem e da fala sobre a escrita é questionável : a esse privilégio chamou logocentrismo, ninguém lhe escapa, ele vem-nos do que aprendemos no liceu e nas nossas leituras sem darmos por ela. Há um outro jogo com a palavra francesa ‘différent’, ela também se diz da mesma maneira que ‘différend’, o que permitiu a Derrida sublinhar que a linguagem é sempre diferendo com outrem, ainda que diálogo, já que de outrem a aprendemos e para nos entendermos (ou entrarmos em conflito) com outrm a usamos no dia a dia : ela é relação estrutural ao outro. E para a aprendermos, é preciso, como se disse atrás, que ela se ‘inscreva’ em nós, nos neurónios cerebrais, isto é, que ela seja escrita antes de ser linguagem oral e como sua condição. Pode-se dizer que o logocentrismo que Derrida nos revelou é também a incapacidade da tradição filosófica para pensar a aprendizagem.
3. Esta linguagem de diferenças (diferanças), não sendo sons nem ideias, nem sensível nem inteligível, não é substancialmente nada, é ‘nada’ que só pode aparecer numa matéria de empréstimo, sonora ou gráfica (ou táctil, no Braille), em sons ou desenhos (de letras). O logocentrismo crê que já havia sons (a, e, i, o, u, etc) e ideias e que quem ‘inventou’ a linguagem só teve que unis uns aos outros ; Saussure, o linguista suiço que descobriu as ‘diferenças’, sublinhou que, pelo contrário, foram as línguas que inventaram os sons e os sentidos, disse que, em vez de convencionais, resultarem de ‘convenções’ (de gente ainda não falante ?), elas são ‘arbitrárias’, ou melhor, imotivadas : diferentes entre si de maneira tal que os respectivos falantes são estrangeiros uns para os outros, nenhuma língua tem razões fora dela para ser como é, embora sejam todas condicionadas pelas fisiologias da fonação, audição e cerebral. O que define em comum os quatro tipos de inscrições que analisámos, e será verdade ainda dos caracteres chineses (ver http://chinespensasemalfabeto.blogspot.pt/2011/10/normal-0-21-false-false-false-pt-x-none_8863.html)[1], que interrogaremos adiante, é serem descartáveis das respectivas matérias de empréstimo mas exigindo sempre que o sejam para uma outra ; mesmo as pinturas em tintas quimicamente complexas para coloridos tão variáveis, ne medida em que podem ser deslocadas por fotografia e reconhecível noutro lado : ‘isto é a Mona Lisa de Leonardo da Vinci’. Sáo pois todas susceptíveis de redução da respectiva matéria de empréstimo para se ter o seu ‘nada’ de diferenças feito entre sons, riscos, côres. Não o papel ou a ela, o piano ou a flauta, todos sem dúvida necessários, mas as vozes, os sons soprados ou tangidos, os riscos e suas côres, que são empiricamente reduzidos para se ter a estrutura diferencial temporal que em sons e traços se reproduz[2]. O que chamaremos cena de inscrição é feito deste ‘nada’ espácio-temporal e dos seus efeitos na cena da habitação : instituições e usos de inscrição, escolas, igrejas, laboratórios científicos, médias. Grande paradoxo da história das sociedades ocidentais : esses ‘nada’ tiveram efeitos ‘substanciais’ nas transformações dessas sociedades, como tentaremos evocar no 3º texto deste livrinho, assim como os terão tido na conservação da sociedade chinesa de que trataremos em seguida.
4. O que disse do tempo da linguagem duplamente articulada é válido também da matemática, da música, do cinema, cada inscrição cria o seu espaço tempo, ambos sucessivos, sequenciais, mas sem coincidência, como a metáfora tradicional da ‘linha’ para dizer o tempo sugere. Enquanto que a sucessão espacial salta à vista das ‘linhas’, o tempo é bem mais retorcido, já que implica as retenções na memória do que já se ouviu ou leu e a abertura ao suspense do que falta vir a completar o que se está ouvindo ou lendo, problema a resolver, acordes a inovar que se acordem com os já ouvidos, e por aí fora : se deixa de haver um mínimo de ‘suspense’, deixa-se de seguir, como nas conversas enfadonhas, nos discursos políticos de ‘cassete’. Não ‘linear’, a temporalidade das inscrições (e não só, também o que se chama ‘acção’ ou ‘construção’) é feita desta espécie de ginástica mental de reter e anticipar o que falta, o que impede de perceber uma qualquer assistência como ‘passiva’ : escutar e ler é tanto agir como compreender uma demonstração matemática ou emocionar-se num filme. Ainda aqui há que recorrer ao motivo da aprendizagem : não temos palavras nossas nem notas musicais ou números ou figuras, que tudo nos veio da tribo ou da escola ou dos médias : é onde reside o grande enigma das coisas humanas, que sejamos inscritos, e portanto receptivos, passivos, antes de sermos ‘eu’, e dessa passividade resultar fazemos activamente o que nos é mais caro, mais próprio de nós, íntimo, criativo, genial até. Aquilo que nos é mais ‘próprio’, como se diz, resulta de uma apropriação do que é comum à nossa tribo, ao nosso mundo : por isso se fala de ‘propriedade privada’, e é o que cada um de nós é, o nosso enigma espiritual.


[2] Bem mais difícil seria dizer em que é que consiste a redução no que diz respeito ao teatro, ópera ou dança, que diferenças se inscrevem duma mesma ‘peça’ feita ou dançada por actores, cantores, dançarinos e companhias diferentes, os seus gestos sendo parte da cena em que tais diferenças se inscrevem nos ensaios, mais difícil ainda em época de grande inovação nas encenações.

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