segunda-feira, 16 de março de 2015

Sousa Dias e Marx




1. O livro do filósofo João Sousa Dias chama-se Marx, Zizek & Beckett e a democracia por vir (Documenta, da editora Sistema Solar, antiga Assírio & Alvim, 2014) e lê-se com o gosto raro que oferece uma escrita de paixão filosófica, tratando de questões que nos estão próximas; ainda que não se adira a todas as argumentações, acede-se muito facilmente a um estilo não académico de pensar em filosofia (mas o autor, de cumplicidade antiga com Deleuze, não gosta de ‘argumentos’, acha que escreve sem argumentar). O livro compõe-se de dois textos do autor: um faz-se em torno dos autores citados no título, da “Ideia de comunismo” que Zizek (e Badiou)[1] defendem, relê Marx a pensar no capitalismo actual bem diferente do da época dele; o outro giza em torno de J.-L. Nancy[2], sobre a sua questão da democracia por vir; depois mais de metade do livro é um diálogo muito agradável de ler com dois amigos, editores da revista Nada, João Urbano e Jorge Leandro Rosa, que discutem um livro anterior de Sousa Dias (que não li) provocatoriamente intitulado Grandeza de Marx – por uma politica do impossível (Assírio & Alvim, 2011).
2. Quiçá se possa dizer que nestes textos há praticamente só filosofia, quando as questões pedem a considerações da lógica histórica integrada das sociedades contemporâneas que a filosofia pode incorporar mas lhe é alheia; por exemplo, nas pp. 100 e seguintes, é manifesto que a dimensão industrial do capitalismo é negligenciada, quando se defende a importância da “revolução industrial” contraposta à “Revolução Francesa” e “a máquina a vapor” às “ideias”, sugere-se que se está pensar empiricamente por justaposição de ‘coisas’ sem saber ligá-las, como se o capitalismo moderno pudesse ser pensado sem a industrialização que a máquina a vapor inaugurou. As “forças produtivas” de Marx referem-se às máquinas que os proletários ‘possuem’ fisicamente, as “relações de produção” são as dos proprietários financeiros e jurídicos delas com os mesmos proletários a quem pagam salários, é a unidade contraditória de “forças produtivas” e “relações de produção” que constitui o “modo de produção” (eu bem sei que é uma tese althusseriana). Sem pretender nenhuma recensão, nem do que é exposto e discutido nem do que seriam as minhas discordâncias, tenho três principais: à Ideia de comunismo, ao leninismo hoje, à rejeição esquerdista do mercado.
3. Não chego a perceber se a Ideia de comunismo é uma Ideia hegeliana, se platónica, se uma mistura de ambas; em qualquer caso a própria noção europeia de ‘ideia’, que vem de Descartes, me é filosoficamente estranha, já que ela implica a exterioridade do pensamento à linguagem e às antropologias das várias sociedades, nações ou até regiões: a ‘ideia’ europeia é correlativa da oposição sujeito / objecto (o Cogito no Discurso do método é ficcionado como sem corpo nem lugar nem mundo). A Ideia de comunismo parece ser algo que paira anhistoricamente, o que creio que o ‘espectro’ de Derrida[3], igualmente citado, não é. Se bem entendo, mas não estou certo de disso, porque conheço menos bem essa época derridiana, o espectro é algo de ancestral que joga em paralelo, se dizer se pode, com as palavras e textos, mas na sua textura imagética, pessoalizada, acontecimental. Da mesma maneira que as palavras fortes, os textos de ameaça, jogam na sua posteridade como antepassados não enterrados, assim tais ‘acontecimentos’: o espectro da revolução francesa na Europa do século XIX, ou na nossa actualidade, o do 25 de Abril, o de Sócrates, o José, tal como o Sócrates grego foi espectro de Nietzsche. Quanto ao ‘comunismo’, o seu espectro é estalinista, vejo dificilmente que de Marx se possa depurar uma Ideia de comunismo capaz de actuar historicamente. Julgo que o motivo de ‘comunismo’ de Nancy não é de origem marxista, sabendo embora do contexto histórico da palavra, desejando porventura purificá-la, ele (que nunca foi marxista) reclama-se dela mas a partir do ‘comum’ social entre os humanos, que o individualismo exacerbado actual impede de compreender como primacial, quase como o nosso comum biológico também: o da língua, dos usos que partilhamos, comum que nos faz semelhantes uns aos outros que nos rodeiam.
4. Sendo assim, o ‘comunismo’ de Nancy virá mais das gentes e leva-me a não crer que o leninismo seja ainda operante, de qualquer forma que se o pense. Antes de mais, o leninismo é a forma do marxismo que só foi viável historicamente, aquém das formas totalitárias, como aceleração industrial de sociedades ainda demasiado rurais para a revolução. E depois implodiu, duma maneira ou doutra, mesmo na China, onde quero crer que o que sobrevive como estrutura politica é mais a tradição mandarim dum império com mais de dois milénios do que o comunismo (espectacular: Sousa Dias cita Plekhanov, primeiro discípulo russo de Marx como tendo previsto o futuro comunismo soviético como “um czarismo pintado de vermelho”, p. 83). Nunca, em nenhum pais suficientemente industrializado, o marxismo leninista vingou, mas sim o marxismo revisionista, isto é, a social democracia (só uma grande ignorância histórica pode entender esta denominação num partido de centro-direita como o nosso coelhismo passadista) e esse ‘nunca’ implica, creio, que não haja actualmente hipótese nenhuma de revolução em termos de tomada de poder, como a francesa ou mesmo o 5 de Outubro ou o 25 de Abril, porque não há hoje nenhuma instância de poder político que possa ser ‘tomada’ face ao capital internacional electrónico. Teremos que esperar que os povos forcem os governos democráticos a legislação internacional que se imponha às formas electrónicas de capitalismo, uma Nova Internacional, dizia Derrida, que a Teia electrónica ajuda hoje a tornar um pouco mais verosímil.
5. Também a rejeição do mercado (p. 105-6) me parece sofrer da mesma dificuldade em pensar a democracia por vir. Dele mesmo, enquanto mecanismo de troca entre quem vende e quem compra numa sociedade de altíssima especialização do trabalho, o mercado é uma liberdade de escolha do que se quer consumir, dentro dos limites dos orçamentos familiares, é claro. Basta saber da distribuição mensal de alimentos em Cuba pelas famílias (ovos, açúcar, frangos, pão, etc), um racionamento como houve durante a guerra de 39-45 mesmo em Lisboa (lembro-me de garoto de 11 ou 12 anos ir de eléctrico da Rotunda para as bichas da manteiga no Campo Grande), para se perceber que não é viável em termos liberais. E é de liberdade contra o neo-liberalismo que se trata também. O mais difícil é a estrutura do capital quando se torna especulação sob o nome de ‘mercado’, quando isso domina electronicamente a economia dos verdadeiros e necessários mercados, os que têm a ver com produção de coisas e com salários de gentes.
6. Mas não quero discutir com um bom amigo e ficar apenas nas nossas divergências, quero arriscar-me também a dizer coisas discutíveis e que me obriguem a engolir críticas de outros. Julgo que hoje a contradição do capitalismo é maior em relação às técnicas que se estão desenvolvendo e que dão possibilidades maiores às gentes, que já foram razões dessas, telefones, rádios, televisões, que ajudaram à implosão das sociedades fechadas e repressivas dos comunismos e dos militares latino-americanos. Hoje computadores e a Teia universal deles jogam também a nosso favor. Ora, creio que uma tendência que parece que o capitalismo ocidental está a conhecer é dupla: por um lado, o desemprego crescente, que parece resultar dos robots e computadores substituírem os trabalhos de rotina, por outro os quadros de alta posição em bancos e empresas multinacionais são os novos ‘ganhadores de dinheiro’, que querem salários e comissões, lucros pois, cada vez maiores e encontram nos ‘comandantes’ financeiros cumplicidades por necessitarem desses quadros para levar avante os interesses das empresas, cada vez mais complicados e pedindo ‘espertos’, como se diz em francês. Foi esta ganância que gerou a crise bancária desde os subprime e da falência do Leman’s Brothers e não deixa de ser sintomática a maneira antidemocrática como os ‘comandantes’ políticos se deram como primazia salvar os bancos, os seus quadros (nenhum foi preso pelos seus crimes), à custa das economias, obrigando à austeridade (eu gosto de ser austero!) que é cortar os serviços de saúde e de segurança social, pensões e salários. Mas ter melhores máquinas e menos trabalhadores e menos salários também significa falta de compradores e menores lucros, o que obrigará a diminuir progressivamente os horários de trabalho e aproximar-se do pleno emprego, em vez da ilusão de crescimento indefinido. Imagino, na minha boa ingenuidade, que haverá aqui uma possibilidade (cheia de sofrimentos, como todas as revoluções) de um certo esvaziar da máquina técnico-financeira face a uma crise que se acentua sem solução ‘capitalista’, como está a suceder na Grécia, contra toda a lógica politica da ‘União’ Europeia. E então as novas possibilidades das gentes com muito tempo livre de emprego são de afazeres novos e livres, desde desportivos a culturais e retomas de maneiras antigas, artesanais ou agrícolas, sei lá! Criar-se-ia uma rede paralela ao Ge-stell técnico-financeiro donde os salários baixavam, mas a rede tornar-se-ia muito mais interessante como imaginação para viver do que as rotinas dos call-senters ou das cadeias de montagem. E onde suceder que não haja sequer produção por não haver capital que se invista, então far-se-iam coisas para se trocarem, criando novas moedas sociais[4] como se faz já em vários lados. Foi isto que anunciou ecologicamente há 35 anos André Gorz no seu Adieux au prolétariat. Au-delà du socialisme (Galilée, 1980). Assim se partilharia o comum.
7. Mas é claro que se trata duma perspectiva limitada a uma sociedade, pensá-la em termos de Ocidente já é difícil, ter em conta a Ásia, a África e a América latina mostra bem os nossos limites de perspectivar. Valha-nos a filosofia, ler este agradável livro e discuti-lo.



[1] Alain Badiou et Slavoj Zizek (eds.) L’Idée du communisme (Lignes, 2010).
[2] Jean-Luc Nancy, Vérité de la démocratie (Galilée, 2008) ; Politique et au-delà, (Galilée, 2011) ; « Communisme, le mot », in Badiou et Zizek, op. cit., pp197-214.
[3] Jacques Derrida, Spectres de Marx. L’État de la dette, le travail du deuil et la nouvelle In­ternationale  (Galilée, 1993).
[4] Ver no Google “moedas sociais”

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