quarta-feira, 25 de março de 2015

A irreversibilidade do tempo em Física



1. Porque é que na escrita da Filosofia com Ciências tive que começar pela Biologia e não o pude fazer com a Física que, com a Química, veio apenas quando o quadro já estava composto ? a resposta não pode consistir apenas em ser mais fácil na Biologia, porque justamente não é verdade, a bioquímica da célula é bem mais complicada do que a Física, só os físicos não acharão. Também não será por os duplos laços serem mais visíveis na Biologia, já que eu sabia de todos desde o início, só em relação à sociedade tive que reelaborar um pouco o dado inicial. Creio que é o lugar de Illia Prigogine na composição dessa escrita que explica a coisa, ele era indispensável, mas não tinha aberto uma brecha na Física ou na Química mineral que desse para entrar, apenas na Bioquímica. Foi depois, quando se veio a pôr a questão da produção de entropia de forma geral em Física Química, e ver o que resultava, que se percebeu o escândalo.
2. É notável excepção creio, que o jovem universitário belga de origem russa já pusesse uma questão filosófica de fundo aos estudos de física que fazia: a desta não ser capaz de ter em conta a irreversibilidade do tempo, do tempo histórico, tal qual ele faz parte das outras ciências como que espontaneamente desde o século XIX. E terá percebido precocemente que o busillis estava nas equações da física, digamos que eram matemáticas demais, não chegavam à ‘realidade’ dos movimentos que os laboratórios mediam (esses sim, irreversíveis!). Com essas equações em que ambos os membros são equivalentes, tanto um móvel pode andar para a frente com a velocidade v como para trás no tempo, à maneira dum vídeo a voltar ao princípio, com tempos negativos, o que não é a mesma coisa que temperaturas negativas, por exemplo, questão da convenção das unidades, há um zero absoluto de temperatura (em ‘temperatura’ haverá ‘tempo’?). A Biologia e a História das sociedades humanas têm um vector temporal essencial, o qual faltava em Física, meditava o jovem estudante que se pôs a ler filósofos sobre o tempo, já que nem as acrobacias de Einstein, Bohr, Heisenberg ou Schrœder, escapavam a esta reversibilidade ‘matemática’, não atingiam a ‘física’ da Terra, por exemplo da Geologia.
3. Com efeito, a sua “produção de entropia” é justamente a do tempo irreversível duma estabilidade instável, que ele aliás nem sequer aceitava que pudesse ser reversível, já que me recusou a morte adiada pela vida (esteve em Lisboa em Novembro de 1988), embora talvez não tivesse compreendido bem o que eu lhe propus citando Derrida: isto é, julgo que se pode dizer que Prigogine manteve a oposição entre a sua entropia e a de Clausius, como se se tratassem de capítulos diferentes da física (embora seja claro que há nisto coisas que eu ignoro). Ora, nas células é fundamental que elas se reproduzem quando na sua fase de instabilidade instável, isto é enquanto vivas; o triunfo da vida sobre a morte não é a abolição desta mas haver nascimentos prévios, digamos assim: a irreversibilidade do tempo da vida não é a imortalidade, mas a reprodução das células (mas Prigogine nunca se interessou, nos livros de divulgação, pela dimensão biológica da sua descoberta). É certo que eu nunca entendi claramente os exemplos físicos ou matemáticos de entropia positiva, mas julgo que eram sempre excepções; embora ele tivesse a ambição de reformular a física inteira, não me parece que alguma vez lhe passasse pela cabeça a minha proposta de ‘entropia produzida’ dos átomos e moléculas, que, essa sim, reformularia a física toda. Creio que ele ficou a meio caminho da sua descoberta genial, como aliás parece significativo o seu último texto de divulgação, O fim das certezas, dum relativismo confrangedor.
http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2014/10/questao-prigoginiana-sobre-energia.html
4. Prigogine aderiu ao big Bang mas propondo uma reformulação, uma vez que o modelo aceite pressupõe “uma singularidade, um ponto sem extensão onde se encontra ‘concentrada’ a totalidade da energia e da matéria do universo [...] a que as leis físicas não podem aplicar-se” (Temps et éternité, p. 149); o sábio belga contrapõe “um Universo vazio, de curvatura nula” (Minkowski), sem matéria, energia nem espaço-tempo, “flutuações quânticas do vazio” instáveis, aparecendo e desaparecendo, uma espécie, diz ele, “de mini buracos negros dissipativos” de que um, com uma massa superior 50 vezes à massa de Planck, “conseguiu transformar a energia negativa do campo gravítico em energia positiva de matéria [...] cuja curvatura do espaço-tempo atrai materialização de outras partículas, etc”. Mas, em seguida adopta o modelo corrente das partículas que irão tornar-se núcleos, átomos, até chegarem a estrelas. Ora, neste ponto, não vejo como é que as suas categorias de produção de entropia são viáveis, possam ter algum papel. Mas é claro que estou a extrapolar, há ignorância demais nestas minhas considerações sobre o pensamento dele.
5. Seja uma comparação herética, a dessa nuvem big banguista de partículas com os começos da vida segundo Marcello Barbieri (Teoria semântica da evolução, Fragmentos, 1985). Se bem entendi, o acento que ele põe nos açúcares ribos (ribonucleicos) como capazes de sintetizarem outras proteínas e a sua noção dum bilião de anos até haver células, num jogo interminável de moléculas umas com as outras, permite ‘imaginar’ a origem da vida. Assim como os pássaros, para fazerem ninhos, buscam materiais com dadas propriedades físico-químicas que se adaptam à estrutura do ninho, isto é, não ‘fazem’ essas propriedades, elas já lá estão nos constituintes do ninho, também os ribos têm já essas propriedades de sintetizarem (a ‘vida’ não teve que inventar isso, nem as enzimas, as moléculas capazes de fazerem membrana, etc.) e fazem-no sobre outras proteínas que lhes passam ao lado dos oceanos. Faz-se e depois se desfará e refaz-se parecido noutro lado, interminavelmente, até que um bilião de anos depois acabe por haver células como ‘ninhos auto-construídos’, capazes de se reproduzirem, com duplo laço, isto é, ADN a regular o ribo ARN, delimitar-lhe o que ele tem de fazer como interessando à célula e impedindo de outras sínteses. É claro que é difícil ver qualquer analogia entre os dois processos, evolução e big Bang. O da vida é praticamente ‘impossível’, como atesta o bilião de anos, mas é entropicamente positivo, é fisicamente possível, tem a hipótese de uma irreversibilidade, já que a houve, sabe-se lá como, onde, quantas vezes, etc. Sabemos porque deu resultados, a evolução da vida nas suas numerosas espécies.
6. Ora, a base do conhecimento de Biologia não são os indivíduos vivos, ‘substanciais’, mas as suas espécies que os reproduzem incessantemente, as quais não são ‘nada’ de substancial e só existem nos indivíduos que se reproduzem por regras científicas que obviamente lhes pré-existem, noutros indivíduos, os progenitores. Por outro lado, os sistemas ecológicos que dão estes indivíduos em suas espécies e que são condição de possibilidade delas, claro, não as determinam no sentido em que os cientistas (por razões filosóficas que lhes pré-existem igualmente a eles) entendem a noção de determinação: é a própria variedade das espécies que, ao dar crédito a uma noção de doação, implica que esta seja imotivada, já que se se tratasse de ‘determinação’ as espécies seriam todas iguais! Pode-se raciocinar semelhantemente para as ciências das Sociedades: são dadas pelo seu eco-sistema mas de forma imotivada, já que os seus usos diferem suficientemente para não se entenderem os indivíduos estrangeiros entre si; também uma sociedade é substancialmente nada, só existe nas unidades locais dos seus indivíduos ‘substanciais’, com regras prévias ao nascimento dos indivíduos. Igualmente para as Linguísticas, basta aqui lembrar que foi Ferdinand de Saussure quem nos ensinou que “na língua não há senão diferenças, sem termos positivos”, isto é substanciais (sons e ideias): ‘diferenças’ entre sons não são sonoras, são ‘nada’; as línguas são imotivadas, ensinou ele, arbitrárias, não existem senão nas falas ‘substanciais’ em seus sons e sentidos. Nestes três tipos de ciências, as regras (espécie, sociedade, língua) são prévias às coisas substanciais.
7. Voltemos à Física. As suas ‘espécies’ são o quê? Os campos de moléculas e de astros, campos de forças que retêm coisas ‘substanciais’, a saber núcleos atómicos e electrões os primeiros e graves os segundos. Os campos são diferenças de forças atractivas: o sistema planetário é composto do sol e dos planetas, substanciais em suas massas e forças de gravidade, mas ele próprio, enquanto sistema com componentes, é um campo de forças de gravidade que não é ‘substancial’, as forças equilibram-se entre elas, a sua soma anula-se, se dizer se pode. (Por isso, sem tempo irreversível? Creio que sim, não se sabia como é que ele se compusera, li algures que Newton atribuía a colocação dos planetas em suas órbitas ao Criador, os Antigos gregos criam-no eterno).
8. Voltando à evolução no final do § 5. A explosão do big Bang é o contrário dela, tendo embora irreversibilidade (importante, já que nem Newton nem relatividade nem quântica a têm), esta é inteiramente negativa, a sua entropia é a de Clausius que aprendemos no liceu, a morte progressiva das coisas pela degradação da energia. Creio que justamente Prigogine veio ter com a entropia como resposta à sua pergunta pela irreversibilidade do tempo, porque foi só o que encontrou na Física, a Termodinâmica de Bolzmann. Mas só encontrou entropia positiva na vida, no metabolismo químico das células, foi onde descobriu as “estruturas dissipativas” que lhe valeram o prémio Nobel de Química em 1977. E por isso a fenomenologia de que me reclamo se escreveu a partir da Biologia. Ora bem, aonde é que o leigo, a olho nu, pode achar que há irreversibilidade positiva, construtiva, na Física? Na formação das estrelas e dos outros astros, que supõem campos que os retêm uns aos outros em galáxias, assim como as forças nucleares e electromagnéticas permitem reter os átomos e moléculas dos graves de que esses astros são constituídos.
9. E como se passa duma irreversibilidade de pura degradação de energia, a do modelo aceite com a sua nuvem de partículas que se expande, para a dos campos dos astros e galáxias? É o mistério, para o leigo que sou. Na nuvem pós big Band, onde haja protões e neutrões, eles estarão a distâncias ‘enormes’ uns dos outros comparadas com as distancias ínfimas (em fermis) que têm num núcleo atómico. Ora, a noção que Prigogine propõe dum mini buraco negro dissipativo parece contraditória (a dissipação é o contrário do buraco negro, gravitação que encerra em si tudo): haveria que pensar ao contrário a ‘dissipação’ do buraco negro como ‘explosão’, bang! Mas como evitar a nuvem de partículas? O problema epistemológico do big Bang é que ele e as partículas que saem dele supõem uma concepção ‘substancialista’ da matéria, o que significa o zero absoluto de campos de forças, sejam quais forem. Ora, qual é a noção de ‘força’ em Física? as três forças estruturantes do universo, gravitação, electromagnética e nuclear forte, são forças atractivas de astros e graves, de electrões e de protões e neutrões respectivamente. Como ‘aparecem’ elas às ‘partículas em bando’ para se formarem átomos, moléculas, graves, astros? Uma hipótese de leigo seria juntar vários buracos negros ou flutuações energéticas vazias a dissiparem-se simultaneamente por contágio mútuo e a gerarem assim os campos das galáxias futuras em expansão: vários bangs, não apenas um big. Mas sem que me pareça que se possa saber laboratorialmente, cientificamente!, em que é que tais galáxias consistiam antes das estrelas. No princípio foram as galáxias resultantes desses bangs, tantos bangs quantas galáxias, eis a proposta do fenomenólogo.
10. Bem sei que sou leigo, mas isto é um blogue, eu gosto de brincar à curiosidade. Estou à vontade, não sou capaz de fazer nenhuma conta que tenha a ver com esta boca das galáxias. Mas quando se vê um físico como Stephen Hawking a pôr a hipótese de ‘gravitões’, partículas que transportam forças de gravidade, como se isto tivesse algo a ver com a descoberta de Newton, algo a ver com o que os físicos sabem das forças de gravidade, do que Feynman diz que eles não sabem delas, como Newton não soube, quando se vê estas enormidades em grandes cabeças de físicos, porque carga de água é que os leigos não podem entrar na brincadeira, sem outras pretensões que não seja brincar ao ‘jogo das ciências’? Faço filosofia com ciências, estas na sua dimensão filosófica, que os cientistas ignoram, ignoram até que essa ignorância é um erro capital da disciplina: os campos de forças antes dos seus componentes substanciais, esses ‘campos’ que são nada de substancial, diferenças de forças dessas componentes. Sem que haja diferenças cronológicas entre uns e outras, nem ultra-milésimos de segundo.
11. Só mais um ponto. Como digo no texto do blogue citado acima, foram Galileu e Newton que des-substancializaram a Física, um privilegiando “diferenças e proporções” ou seja as medidas experimentais, o outro afastando as “qualidades” dos Antigos, para reter também apenas quantidades (que se medem). Kant apanhou a boleia des-substancializadora de Newton, Saussure, Heidegger e Derrida herdaram deles também, embora sem o saberem. A Filosofia levou assim três séculos para compreender a lição filosófica de Galileu e Newton e o erro que ela própria depositou nas interpretações das ciências. É esse erro que se tenta aqui reparar. E no que me diz respeito, já que não sei de mais ninguém que navegue nestas águas, nada teria sido possível sem a inteligência filosófica de Prigogine interrogando a ausência de irreversibilidade no tempo dos físicos.

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