sábado, 12 de novembro de 2011

Islândia: economia rima com democracia ?

1. Foram os Gregos que inventaram, além da Filosofia (Sócrates, Platão, Aristóteles), tanto a democracia (Sólon, Clístenes, Péricles) para impedir que as casas poderosas eliminem as mais pobres, como a moeda do mercado quotidiano. Inventaram assim a Razão pública, de que Kant saudou o retorno no final do século XVIII, à Filosofia tendo-se juntado os laboratórios das Ciências. Sobrepondo-se às relações de força, a Razão procurará a liberdade: no caso do mercado, o dinheiro dá a liberdade de escolher o que comprar, em vez dum racionamento igualitário (como em Cuba). Note-se que a economia actual, que exige cada vez mais escolaridade a todos os níveis, só é viável com democracia, como à sua maneira asiática a China vai aprender.
2. É certo que o mercado não funciona sem lucros, mas também deveria ser claro que não há critério intrínseco (científico, aritmético) para na produção distinguir a parte dos lucros e a dos salários, o que ocorre sempre por razões politicas (concertação, greves). Há portanto um factor político, que deve ser de razão democrática, no coração da economia enquanto ciên-cia. A especulação financeira (‘especular’ é funcionar em espe-lho, sem ver para fora) passa-se apenas entre capitais e lucros, ignora as economias que a suportam, como quem serra ramos de árvores neles sentado: a bolsa dela mesma não é democrática. Mas pode ser chamada à democracia, como os referendos islandeses mostram exemplarmente, propondo um bom teste à democraticidade dos dirigentes políticos (holandeses e ingleses) e dos comentadores.
3. Assim como há ciências das línguas, das doenças, da agricultura, e por aí fora, a economia é só a ciência dos mercados, nem da produção (engenharias) nem dos usos caseiros das coisas compradas: ela é apenas a ciência dum sector da sociedade. Mas as sociologias sendo especializadas em sectores diversos, na ausência da sociologia do conjunto da sociedade e menos ainda da globalização, a economia arroga-se esse papel, sem concorrentes à sua altura.
4. Tomando a moeda como unidade de medida que permite reduzir (metodologicamente) a imensa variedade de coisas que se trocam nos mercados, ela não pode senão ignorar a dimensão politica que está no seu coração e revelar-se portanto inadequada para resolver questões democráticas como a que vive a Islândia (os bancos da fraude são privados), situa-ção a que o filósofo Derrida chamou aporia (beco sem saída) devida à conjugação indissociável na economia de duas leis contrárias, a das finanças internacionais e a da democracia (nacional), uma espécie de duplo laço esquizofrénico (Bateson) da economia. Marx teorizou no seu tempo esta aporia como contradição capital / trabalho e propôs como solução eliminar um dos factores, e com ele o mercado e a liberdade, veio a ver-se. O neo-liberalismo da escola de Chicago reinante que reduziu metodologicamente os salários de quem produz com o capital à rubrica dos ‘custos’, com a consequência tornada evidente que em tempos de crise é a primeira ‘despesa’ a ser alvo de redução como desemprego em massa, sinal oposto ao marxismo que condena a liberdade dos que não têm salário. A chance única do que se intitula socialismo ou social-democracia é procurar obedecer às duas leis e vale a pena ver como vai evoluir o caso da Islândia.
5. Sem ter competência para dizer como, é necessária uma ‘economia política’ adequada aos tempos de hoje, uma ciência que tenha as duas componentes do seu nome, as regras (nomia) e a habitação (oikos, casa) das populações, que deva diagnosticar o lugar – fora dela – do político, que possa evitar o que em 2008 nos ameaçou e já parece esquecido, que a ganância da especulação financeira dê cabo das sociedades. É a falta desta ciência uma das razões mais fortes para as dificuldades estratégicas da esfera socialista, a economia de hoje dá de bandeja o poder à direita e precipita as gentes para a rua, se não houver referendos.
Público, 15/04/2011

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