quarta-feira, 12 de outubro de 2011

OS HOMENS: A GUERRA E A LEI, A ESCRITA E A MÁQUINA

1. Partirei duma modificação da questão de José Gil citada na convocatória deste encontro: “quem sou eu como homem?”, supondo assim que há na tradição ocidental uma certa variabilidade, um leque de possíveis da vertente masculina do género, que normalizam os que nascem rapazes, isto é, lhes fornecem as ‘normas’ do que se chama educação.

As corridinhas da minha vida

2. O honroso convite para estar aqui - que agradeço à generosidade da Teresa Joaquim, que não quereria decepcionar -, sobrevindo quando acabo de ser reformado da actividade profissional, permitiu-me olhar para o meu ‘curriculum vitæ’ (à letra, curriculum é ‘corridinha’) com o olhar aguisado por essa questão: que género de homem fui eu? dentre os possíveis, nos últimos 70 anos, para um lisboeta de média burguesia sem heranças e portanto dependendo, para começar, dos estudos que fizesse.
3. O contraste é nítido entre a regularidade da segunda parte desse currículo (quase 30 anos de ensino universitário) e a instabilidade da primeira: estudos de engenharia civil, acabados os quais entrei para um seminário católico estudar filosofia e teologia para ser padre e deixar de o ser sete anos mais tarde após ter acabado uma licenciatura de teologia em Paris. Ora, esta instabilidade - com excepção da entrada para o seminário, pelo menos a nível consciente - parece-me ter sido sempre ditada mais por exclusão de partes, por uma recusa de possíveis, pelo que não queria, do que por uma escolha positiva: quero isto. Lembro-me bem, embora não o saiba explicar, que só direito, medicina e engenharia apareciam como cursos superiores possíveis ao rapazito que eu era, aluno médio, bom sobretudo em matemática. As duas primeiras foram excluídas, uma por ser letras, outra por pouca matemática, ambas pelo trabalho de memorização que implicavam, como também depois engenharia civil foi a opção que ficou por não querer nenhuma das outras cinco engenharias então possíveis. Além destas, haveria duas outras possibilidades tradicionais, a da tropa e a do clérigo: a primeira nunca se me pôs, o asmático magríssimo que eu era, que jogava à bola mas não à pancada, foi isento do seviço militar (embora tenha acabado por ir lá parar, por ínvios caminhos e não voluntariamente). A segunda só se pôs mais tarde, na sequência duma conversão espiritual muito intensa, veio a impôr-se inesperadamente à ‘opção’ de engenheiro que me sobrara, a modos da tal escrita direita por linhas tortas. Mas veio a esvaziar-se progressivamente ao longo dos fabulosos anos 60 (desde 65 que saí, primeiro para Louvaina, em 67 para Paris), esses anos em que a revolução sexual exibiu o abalo formidável do patriarcado ocidental, em que o clérigo que eu era cedeu à política, à liberdade intelectual e ao desejo da experiência sexual. Donde resultaram dois filhos e um livro francês que me abriria as portas universitárias de Lisboa. A instabilidade só parou quando, na primavera de 75, fui convidado, por sugestão do Fernando Gil e do Manuel Vilaverde Cabral, por três estudantes de Filosofia da Faculdade de Letras a ir para lá dar aulas. Tudo se passa como se até aí tivesse andado às arrecuas, a que este inesperado convite acabou por vir dar sentido. Em resumo, enquanto que a guerra e a lei sempre me fizeram fugir, foi entre a máquina e a escrita que oscilei, com um recuo intermediário no tempo que me ajuda a perceber que há sempre sobrevivências possíveis na história, a duvidar dos triunfos modernos, que podem não ser duradouros.
4. Recapitulando por onde andaram as minhas escolhas e recusas - leis, medicina, construção técnica, guerra, clero e filosofia - quero crer que, à excepção das artes e do duro trabalho manual, se trata dos principais modelos normativos da actividade tradicional dos homens europeus, donde as mulheres estavam liminarmente excluídas. Todos pertenciam ao paradigma mais geral do género medieval e europeu: o patriarcado. Sendo a vertente feminina deste bastante conhecida, eu pretenderia fazer um desenho sobretudo da vertente masculina, duma certa lógica do seu jogo, daquilo que diria serem as suas ‘figuras filosófico-antropológicas’.


As casas e a lei da guerra

5. Para dar a entender o género literário do meu discurso, diria que na última dúzia de anos me tenho dedicado a compreender, de uma forma quase pragmática, quatro momentos-chave do discurso filosófico greco-europeu: a) em torno da escola socrática e da sua invenção da definição e da argumentação sobre conceitos (Sócrates, Platão e Aristóteles), b) a elaboração medieval da teologia cristã a partir de conceitos filosóficos (Aquino, Occam), c) a invenção do laboratório científico (Descartes, Gallileu, Newton, Kant), d) a revolução industrial e o concomitante desenvolvimento das ciências, mormente no século XX (Husserl, Heidegger, Derrida). De uma forma quase pragmática significa que os gestos filosóficos são lidos na sua eficácia antropológica e histórica. Também incidiram sobre as configurações do género masculino europeu, será o que tentarei evocar.
6. Apesar da sua variedade ao longo da história e da geografia, creio que se pode dizer que o patriarcado é a forma geral da organização do parentesco das sociedades neolíticas, das sociedades em que a agricultura e o gado são as formas predominantes da riqueza e do poder, cujas energias são essencialmente de tipo biológico, vegetal, animal, humano, mormente muscular. No patriarcado dos nossos antepassados cristãos e europeus, duas figuras são claramente dominantes: a do pai-patrão e a do padre. É a correlação entre elas que me parece poder definir a excepcionalidade do patriarcado ocidental (embora eu não seja conhecedor dos outros), de que procurarei evocar brevemente a respectiva lógica e topografia.
7. O pai é a figura dominante da casa - ‘dominus’ da ‘domus’ em latim -, a casa é a unidade social de todas as sociedades neolíticas (que bem podem ser ditas sociedades de casas), unidade com duas vertentes indissociáveis: a do parentesco e a da actividade económica. O pai é pai e é patrão. Com excepção das casas dos artesãos e comerciantes dos burgos, as casas são tendencialmente autárcicas, nelas se reproduz o essencial do que lhes é preciso: donde a clausura delas, para nós, modernos, asfixiante. A agricultura e os rebanhos sendo a primeira e básica forma de riqueza, cujo excesso permite todas as outras, é na grandeza da dimensão das propriedades e do número de trabalhadores que esta reside, nos palácios e formas luxuosas de vida que ela se exibe. A qual exibição é essencial à própria dinâmica social, como aliás em qualquer outro tipo de sociedade: sabendo-se que há sempre alguém mais pobre do que eu, de quem possa ser invejado, o que cada um quer acima de tudo é que ‘se veja’ e se ‘inveja’ a sua riqueza, a sua posição social.
8. O antropólogo francês Pierre Clastres, no seu texto póstumo "Archéologie de la violence: la guerre dans les sociétés primitives", Libre 77-1, defende a universalidade da guerra entre estas . Com mais forte razão se a pode defender para estas sociedades de casas, já que em todo o lado as classes dominantes, as nobrezas, são classes exclusivamente votadas à guerra. Ora bem, sem poder desenvolver o argumento, creio poder afirmar que é este jogo do querer ser-se algo que se veja e se inveja que estará na raiz de todos os conflitos sociais e, a níveis mais globais, na raiz da guerra. A classe guerreira, cuja nobreza se afirma em não trabalhar com as suas próprias mãos, justifica-se por ser ela que defende os que trabalham e a alimentam - camponeses e pastores -, que os vizinhos estrangeiros querem submeter, mas simultaneamente, em jogos de rivalidade ancestrais, é ela que, sempre que o pode fazer com probabilidade de êxito, ataca esses mesmos vizinhos para os tributar como vassalos.
9. Por outro lado, o jogo de alianças que os senhores tecem com alguns para melhor vencerem outros faz-se mormente pela troca de mulheres, de maneira equivalente, mutatis mutandis, à que se dá nas sociedades primitivas, segundo Lévi-Strauss relido por Clastres, as quais são igualmente autárcicas: a fronteira endogâmica, isto é, da troca de mulheres, é a fronteira da guerra. As mulheres estrangeiras - que, como nas espécies primatas que nos são próximas, são fisicamente mais fracas do que os machos - são cobiçadas para rapto ou violação, fazem parte dos bens a defender encarniçadamente, já que elas são o factor essencial da reprodução social no coração de cada casa, um factor precioso porque afectado de raridade, se se pode dizer. Com efeito, o texto "Fertilité naturelle, reproduction forcée" da antropóloga italiana Paola Tabet explica a infertilidade relativa da espécie humana: fecundável 48 horas por mês sem sinal externo, um bébé de cada vez por regra, nove meses mais alguns anos de criação, e ainda, nesses tempos, muito baixa esperança de vida, morte frequente das mães no parto, alta mortalidade infantil.
10. Se se atender a que nas cidades, mormente a partir do século XVIII, crescem as tarefas policiais de garantir a não violência nas ruas, e se se entender ‘guerra’ num sentido lato de violência física masculina, pode-se pretender que a lei geral que comanda a estrutura das sociedades de casas é a lei da guerra. Como a energia dominante é da ordem do ‘natural’, do muscular e das mãos (mesmo após a invenção das armas de fogo), e tendo-se em conta que os homens das casas trabalhadoras, além de peões de guerra na juventude, têm a cargo os trabalhos fisicamente mais duros, pode-se resumir a preponderância da força masculina, do patriarcado como estrutura social dominante, como efeito da lei da guerra. Mas é preciso generalizar, tomando o exemplo de Clastres. A lei da guerra, desde as tribos à concorrência económica e aos bandos de rapaziada à maneira do West Side Story, passando pelas querelas de Antigos e Modernos em todos os domínios culturais e políticos, parece ser a lei dominante das sociedades humanas, em peleja pelos (sempre) raros lugares em que se seja visto e invejado. O dado de base é a diferença entre indígenas e estrangeiros e os seus graus (de língua e usos e costumes): se é absolutamente necessário defender-se deles sempre que nos atacarem, é muito provável que, esta eventualidade apresentando-se com frequência, as desforras e vinganças impliquem rivalidades permanentes entre vizinhos. Aos Outros, àqueles com quem não se trocam mulheres nem presentes nem palavras, faz-se-lhes a guerra qualquer que seja, da indiferença ao combate, pela mais forte das razões masculinas: tem que se mostrar aos outros e aos nossos que somos nós os mais fortes. Nos negócios como no desporto ainda hoje é essa a lei. Enquanto que com os da sua própria tribo, as trocas tanto são de aliança como de rivalidade, segundo o jogo do querer ser-se visto e invejado. O Estado de direito, no que diz respeito a armas, exércitos e polícias, representa a contenção da lei da guerra pelas leis civis: é uma das condições da libertação das mulheres.

A escrita acima da natureza

11. A casa tradicional que assim evoquei tem muito de prisão: para as mulheres, sem dúvida nenhuma, mas também para todos os homens que (ainda) não são pais, para os que, pais de casas pobres, trabalham com suas mãos e vivem em sujeição aos ditames dos senhores das guerras. A leitura dos textos antigos que hoje nos são tão difíceis de entender, desde os Gregos e os Romanos, sugere que a grande fuga possível aos constrangimentos destas casas fechadas em suas fronteiras e honras residia na leitura, tendo a filosofia platónica produzido uma instância ideal, de que o cristianismo em seguida se apoderou, a instância da alma, para precisar onticamente o lugar da liberdade possível, a do pensamento e da arte literária. Se esses textos nos são difíceis, a nós que buscamos pensar valorizando o corpo e os seus prazeres, é porque foi contestando estes que os nossos antepassados tiveram a experiência - hoje tanto trivial como rara, da trivialidade das imagens televisisas, da raridade do pensamento - a experiência da libertação dos laços mesquinhos das invejas dos vizinhos como glória maior. Eis como Platão evoca esta alma pensante, que conheceu as Ideias eternas antes de nascer e que sobreviverá, imortal, além do corpo, como capaz de se arrancar ao seu contexto, que ele evoca como sendo de “brigas, cargos, reuniões, festins” : “[...] é que realmente só o seu corpo é que está presente e mora na cidade, enquanto que o seu pensamento, considerando tudo aquilo com desdém como coisas mesquinhas e sem valor, passeia por todo o lado o seu voo, como diz Píndaro, sondando os abismos da terra e medindo a extensão da sua superfície [geo-metria], perseguindo os astros no além céu [astronomia], escrutando de todas as maneiras toda a natureza e cada um dos entes inteiramente, sem nunca se abaixar ao que está perto dele” .
12. Contra Platão disse o filósofo contemporâneo J. Derrida que esta experiência só foi possível enquanto ligada essencialmente à escrita. Ora, é dela que se reclama a outra vertente do patriarcado ocidental, a da Igreja católica, enquanto instituição religiosa cuja voz penetra o âmago das casas, lhes toca as almas. Transgredido ou não, o celibato dos seus padres permite entender duas facetas da sua estrutura. 1) Que a sexualidade, e portanto a procriação de crianças, sejam excluídas dela, implica que não é o parentesco a sua ordem de reprodução, mas justamente a ‘traditio’ do livro, por muito ‘traído’ que este tenha sido e, com a escrita e as almas recuperadas a Platão, a tradição também de conceitos da filosofia grega, nomeadamente como ossatura da teologia (que servem inclusive de grelha de leitura do próprio livro da herança hebraica). 2) Esta estrutura de exclusão da ‘reprodução natural’ (e a consequente estigmatização da sexualidade como excessiva e diabólica) - exclusão do que, juntamente com a alimentação, é a própria essência da natureza - outorga à instituição eclesiástica um estatuto de sobre-natural, relativo à reprodução da virtude nas almas, digamos rapidamente (e ainda aqui se copia Sócrates), o qual estatuto justifica o epíteto de padre dado aos seus agentes institucionais: tratar-se-ia dum ‘pai’ duma ordem superior à dos pais, patrões e guerreiros. E isso observa-se na maneira como os reis se sujeitaram (e se rebelaram, mas a sujeição era também aos senhores da escrita) a esta ordem que os ‘consagrava’, a eles guerreiros, nas suas missões de governar, de produzir leis e de modificar os códigos do poder. Dessas leis se gerará lentamente o direito que se imporá, senão à guerra, pelo menos a muitos dos seus excessos. Às leis dos costumes antigos, a lei escrita impor-se-á, a tradição romana tendo vindo por via do direito canónico.
13. Ora, sem ser possível detalhar, não haveria a modernidade que houve se não fossem estes ‘pais sobrenaturais’ que inventaram as universidades medievais, onde se estudava, entre outras coisas, leis, medicina, teologia e filosofia, às quais universidades, em boa parte, se deve a invenção da Europa e depois a da modernidade, já que, ainda que contestários de Aristóteles e das teologias e filosofias escolásticas, por elas passaram a esmagadora maioria dos sábios, pensadores, escritores e outros inventores cujos nomes respeitamos como antepassados da modernidade que nos fez. A universalidade não é, como se crê muitas vezes, invenção grega mas cristã (os Gregos não traduziam, como o cristianismo fez desde o seu alvor), mas adequou-se de forma muito oportuna à invenção gnosiológica da definição e da abstração filosófica, de maneira que a cristandade medieval pôde sobrepôr-se à diversidade das línguas e dos usos das inúmeras comunidades e fazer equivaler, se dizer se pode, o ‘sobre-natural’ religioso ao ‘meta-físico’ filosófico. Pode-se dizer, aproximadamente, que se trata do mesmo termo, um em latim o outro em grego (onde a natureza é dita physis): sem que os respectivos discursos se confundam, eles convergem na sua definição estrutural como excesso em relação às dinâmicas e energias da natureza, como primazia da escrita sobre o parentesco. Durante vários séculos, foi em livros e discursos latinos que o saber se foi transmitindo e desenvolvendo nas universidades, ganhando um maior surto a partir da invenção da imprensa, do cisma protestante e das discussões e cepticismo que ele avivou, aonde a leitura começa a emancipar-se do clero e depois do latim, se vão afirmando as figuras, sempre masculinas, do sábio, do erudito, do professor leigo, mais tarde do escritor e do intelectual. Aluda-se também às descobertas marítimas de outros países e povos que incrementaram as figuras do aventureiro e do comerciante, mais tarde a do capitalista. Foi desta revolução dita Renascimento que a Europa nasceu, no alvor do século XVI.

Os engenheiros sem corpo (nem sexo)

14. Assim como o dos escritores e leitores da Antiguidade clássica, o saber dos filósofos medievais era essencialmente ‘contemplativo’, procurava compreender as coisas mas sem lhes mexer com as mãos. É ainda o jeito de Descartes, que se assegura de si como duvidando e portanto pensando, como existindo enquanto alma que pensa, “coisa pensante”. É no capítulo IV do Discurso do Método, e ele acrescenta: "depois, examinando com atenção o que eu era, e vendo que podia fingir que não tinha nenhum corpo, e que não havia mundo nenhum, nem nenhum lugar aonde eu fosse”, versão moderna do que há pouco citámos do Teeteto de Platão. Este fingimento, esta ficção de alguém que pensa sem que importe o seu corpo, mundo ou lugar, que realidade pode ela ter? Nada mais, nada menos do que a dos cientistas modernos, cujas teorias são, em princípio, válidas em qualquer lugar, pouco importando quem as enuncia. Com efeito, foi numa lógica assim que contemporâneos de Descartes como Galileu inventaram o laboratório como um lugar fora do mundo habitual e da corporeidade subjectiva do cientista, dando figura à ficção cartesiana, dando-lhe um outro corpo, feito de matemática e técnicas de medição, capaz de avaliar teoricamente as experimentações que aí se façam. Digamos que se deu assim origem a uma nova figura (masculina) fundamental da modernidade, a do cientista de laboratório, a que, a partir da segunda metade do século XIX, se acrescentará a figura do engenheiro.
15. Às figuras relevando da casa, da guerra e da musculatura - o pai, o patrão, o trabalhador manual pesado, além do comerciante que está à espera nas margens mercantes das casas - e da escrita, da lei e da escola (esta também ainda marginal) - o padre, o filósofo, o escritor, o professor -, acrescenta-se esta outra do engenheiro que lhes é irredutível. Em relação à casa: substitui o trabalho muscular pelo trabalho feito com máquinas, à base de energias mecânicas, eléctricas, térmicas, químicas, por um lado; por outro, ele tem origem na escrita filosófica (Galileu e Newton diziam-se filósofos), instaura essas máquinas no tal nível ‘acima da natureza’ e das suas energias meramente biológicas, e é por aí que revolucionará as sociedades europeias. Em relação à escrita: substitui a contemplação reflexiva, que observa sem mãos, pelo labor experimental dos laboratórios, prolongando as mãos pelas máquinas e instrumentos, por técnicas muito variadas. Mas não tendo sexo, já que o seu novo ‘corpo’ laboratorial resulta do meta-físico e do sobre-natural, essa figura - como a da escrita desde sempre - está, de jure, aberta às mulheres, ao invés da figura do guerreiro, tendo surgido masculina por razões antropológicas da história.

Fim ou sobrevivência do patriarcado?

16. Se houvesse que escolher um entre os numerosos factores da transformação revolucionária das sociedades de casas nas sociedades modernas dos dois últimos séculos, e é claro que não se pode, seria certamente a invenção e comercialização, a partir de 1776, da máquina a vapor por James Watt, acrescentada da da electricidade ao longo do século XIX, que eu escolheria. As fábricas a que estas invenções deram origem, a começar pela do engenheiro Watt com o capitalista Boulton, não eram comportáveis pelas casas de antanho e forçaram à separação progressiva das duas vertentes das casas, as unidades sociais económicas tendendo a ganharem dimensão e a separarem-se das unidades de parentesco, as famílias, que doravante se alojam em apartamentos de prédios das cidades, cujas populações começaram também a crescer por aí fora. Em resumo, as máquinas obrigaram as unidades sociais que eram as casas a cindirem-se em instituições (onde se tem emprego umas tantas horas por dia) e famílias (casal e filhos, lugar de reprodução ‘natural’). Ao contrário das antigas casas, onde o saber-fazer era transmitido como herança de pais para filhos, agora a escola, dantes marginal, estende-se a toda a gente como instituição de transmissão do saber social acumulado, lugar obrigatório de passagem de cada um entre a família e o futuro emprego. Por outro lado, o mercado é a necessária ligação entre instituições e famílias (aquelas pagando os salários que permitem os orçamentos familiares, já que tudo se compra doravante, acabada de vez a autarcia de antanho), e o Estado o igualmente necessário regulador do conjunto.
17. Foi esta revolução que, na sua primeira etapa (do vapor, carvão e ferro, dos patrões), buscou consolidar a família burguesa, naquilo a que Freud chamou o “super-ego”, mas que, na segunda (da electricidade, do petróleo, do aço e do cimento, dos gestores), a foi esvaziando de filhos e libertando as mães para os empregos. “O feminismo, diz Françoise Collin , foi sempre para mim da ordem do movimento mais do que da ordem [...] das teorias, a diferença dos sexos [...] não é tanto da ordem do constatável ou do analisável, mas da ordem do transformável”. Julgo que podemos assim chamar feminismo antes de mais a esse movimento imenso de entrada maciça das raparigas nas escolas, de entrada maciça das mulheres nos empregos das instituições, libertas enfim da “troca das mulheres”, como estrutura do parentesco das casas autárcicas. Houve feminismo sempre que as raparigas compreendiam que um novo mundo se abria para elas, além da clausura familiar que se tornava asfixiante; feminismo será este impulso multiplicado por milhões das raparigas libertando-se das casas de antanho, que forçam, sendo preciso, as portas, se fazem surdas às reprimendas paternas ou fraternas. Este movimento revolucionou a ordem do parentesco moderno, assinalou o fim da ordem patriarcal. A autonomia que vem a cada mulher do saber ganho com a escolaridade e com os médias, a livre decisão de escolher um ofício e um namorado sem precisar do consentimento dos pais, a independência económica relativa que dá o salário, a pertença a duas unidades locais, família e emprego, cada uma relativizando a outra, dá-lhe uma liberdade equivalente à dos rapazes com quem priva.
18. A escrita é uma técnica e vice-versa, a técnica inscreve-se no social, transforma-o. Ter usado, de forma provocatória, os termos ‘sobrenatural’ ou ‘metafísico’, foi uma tentativa de sublinhar um dos segredos da modernidade: a prevalência nela do princípio da escrita e da técnica sobre o do parentesco, este que prevalecera desde sempre, desde as sociedades primitivas, segundo as análises consagradas de Lévi-Strauss. Se o patriarcado, em sociedades agrícolas, prevaleceu como ‘cultura’, era por ele ser, digamos, uma forma de natureza transformada em cultura, por se tratar, do nosso ponto de vista de hoje, duma forma cultural em que a natureza era predominante, se se pode dizer. Ora, o que hoje em dia releva mais estritamente dessa natureza, está delimitado em duas grandes zonas da actividade social, dizendo respeito à alimentação e à saúde, que, sendo essenciais e irredutíveis, estão cada vez mais longe de serem as fontes da riqueza, do poder e do prestígio social. Mas não do prazer, quer gastronómico, quer erótico, nem da arte, domínios que, no entanto, ganharam autonomia e pouco terão a ver com o antigo patriarcado. Este sobreviveu, durante o século XIX, no imenso esforço de afirmação da família burguesa citadina, a par das primeiras empresas industriais dos ‘patrões’ enfrentando a crise: sob a forma, primeiro, da “morte de Deus” que Niezstche anunciou no século XIX - que é também a morte do padre como determinante social, como clero a par da nobreza -, isto é, a vitória da escrita moderna sobre a patriarcal, para vir a rebentar um século depois, na explosão dos anos 60 que, revolta dos jovens e emancipação das mulheres, lhe acrescentaram a “morte do pai” - e até do patrão (que já vinha cedendo ao gestor) -, figurada simbólicamente, na Paris de Maio 68, pela vaia política do velho guerreiro, o general De Gaulle: “10 ans, ça suffit”, se pudermos ouvir como eco da história mil vezes mais longa das sociedades neolíticas, soará a “10 mil anos, já chega de patriarcado”.
19. Os termos ‘sobrenatural’ e ‘metafísico’ sublinham o papel estrutural dos discursos teológico e filosófico na construção da civilização europeia (e portanto na sua desconstrução actual, mormente como crise). Essa provocação poderá justificar-se, na forma sumária dum texto como este, pela evocação do que há na modernidade de prodigioso, de ‘além da natureza e das suas energias biológicas’ - de milagroso, diriam os Antigos se pudessem vir ver as invenções dos seus descendentes. Ultrapassagem das capacidades limitadas dos nossos músculos e da sua energia ‘natural’ por máquinas (com energias produzidas a partir do conhecimento científico) de muitas dimensões, adequadas aos trabalhos mais diversos. Ultrapassagem das capacidades limitadas dos nossos olhos para ‘verem’ átomos, moléculas, células, genes, electricidade, em escalas ínfimas. Ultrapassagem da terrível oposição luz / trevas de outrora pela iluminação das nossas cidades. Os enormes edifícios que arranham os céus, conseguindo o que falhou em Babel. Ultrapassagem das capacidades limitadas das nossas pernas pelos 200 kilómetros à hora de velocidade e a hecatombe respectiva dos nossos jovens nas estradas. Ultrapassagem da incapacidade do nosso peso para deixar o solo pelos aviões que voam acima das nuvens. Americanos na lua que Deus tinha criado no céu. Bombas que caiem do céu dos Deuses de outrora matando dezenas de milhar de Japoneses. Núvem que escapa duma central nuclear em panne e mata ao longo do tempo pessoas a centenas de kilómetros de distância. Que se possa estar à cabeceira de dois amantes a olhar-lhes a intimidade mais íntima, um homem e uma mulher, mas também duas mulheres ou dois homens. Que um espectáculo musical ou desportivo possa ser visto em sua casa por milhões de pessoas em toda a terra. Que a estupidez mais estúpida possa entrar em casas humanas e encontrar nelas gente para se rir beatamente. Que alguém possa viver com o fígado ou o coração de outrem, que morreu. Que a engenharia genética possa... o que está ainda para vir. Flagelos como a fome e a sida em centenas de milhões de pessoas, as poluições e os terrorismos e a impotência dos opulentos e obesos. Sobrenatural, sem dúvida, em comparação com os mitos de antanho.
20. Os termos ‘sobrenatural’ e ‘metafísico’ (parcialmente inadequados) interessam-me para dizerem o hiato entre duas civilizações (poderia dizer-se ‘revolução’ para sublinhar outros aspectos) de maneira a acentuar a crise do patriarcado: uma delas em torno das energias biológicas e do saber herdado nas casas com a religião, em que o masculino / feminino prevalece como paternidade (guerreira) / maternidade, a outra, em que as energias são fabricadas e com elas tudo o mais, segundo um saber vindo da tradição escolar (originada da filosofia e da ciência, isto é, da razão que tende à universalidade do planeta), em que a ordem económica da máquina e do capital se tornou preponderante, e em que as funções de procriação - na rêde das famílias - foram drasticamente reduzidas, com a consequente libertação possível (parcial) das mulhers da função materna e dos homens da paterna. Em princípio, que a força muscular tenha sido vencida pela razão moderna - as máquinas em vez dos braços, as leis em vez dos guerreiros, a escola democrática em vez da instituição perseguindo dogmática e inquisitorialmente os saberes, o debate e a busca livre em vez dos poderes do ‘monos’ (patriarcal, monarca, monoteismo) do único, separado, solitário - parece pôr fim ao patriarcado, abre pelo menos quase todos os lugares às mulheres: excepto alguns em que a força bruta continue a ser pertinente, os do desporto em que as desafios são paralelos e descriminados. Mas de facto? Sem dúvida que o patriarcado sobrevive de forma ainda maciça em muitas zonas do planeta, que mesmo nas sociedades ocidentais as sombras da liberdade são muitas; julgo no entanto que ninguém aqui pensa que as coisas eram melhores há 40 anos, antes do 25 de Abril e dos anos 60 da rebelião dos quotidianos. A questão que continua, para a qual não haverá resposta senão a da continuação do movimento, é a das sobrevivências. O que chamei ‘sobre-natural’ ou ‘meta-físico’ é eminentemente equívoco, não é possível senão como complexificação, como sublimação que retém energias para as deslocar para outras incidências, como denegação do natural ou do físico. Como é que as diferenças entre machos e fêmeas humanas (diferenças sexuais primárias e secundárias, como se diz) jogam pela calada nessas superações modernas? E as diferenças antropológicas ganhas por séculos de tradições das casas? Vão-se redistribuir igualmente, ou vão induzir outras formas de machismos e do seu repúdio? Duvido que haja já hoje em dia biologias moleculares ou neuronais, psicologias e antropologias, capazes de abordarem essas questões de forma não arbitrária.


Conferência na semana da Arrábida de setembro de 2003, Masculinidades / Feminilidades

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