sábado, 12 de novembro de 2011

A guerra dos capitais

1. A crónica de Rui Tavares (13/07) lembrou-me o livro notável do socialista não marxista Karl Polanyi, La Grande transformation. Aux origines politiques et économiques de notre temps, escrito em 1944, estava a 2ª grande guerra a terminar. “No século XIX produziu-se um fenómeno sem precedentes nos anais da civilização ocidental: os cem anos de paz de 1815 a 1914. À parte a guerra da Crimeia, acontecimento mais ou menos colonial, a Inglaterra, a França, a Prússia, a Itália e a Rússia não fizeram guerra umas às outras senão dezoito meses no total” (p. 23), apesar da enorme quantidade de conflitos ‘locais’ que balizaram o século. Diagnóstico: “o comércio estava agora ligado à paz. No passado, a organização do mercado tinha sido militar e guerreira. Era um auxiliar do pirata, do corsário, da caravana armada, [...] dos traficantes de escravos e dos exércitos coloniais das companhias. Tudo isso agora estava doravante esquecido. O comércio dependia agora dum sistema monetário internacional que não podia funcionar durante uma guerra geral. Exigia a paz, e as grandes Potências esforçavam-se por a manter” (p. 36).
2. Isto era escrito a quente: a primeira globalização, após uma centena de anos de paz, acabava de sofrer durante 30 anos uma implosão inenarrável, é o que o seu livro procura explicar. A tese é a seguinte: o mercado auto-regulador (promovido pelo liberalismo inglês) foi a causa das duas grandes guerras, tendo gerado proteccionismos de defesa contra o domínio comercial inglês e em consequência os nacionalismos que desencadearam as duas guerras. Eis o ponto nevrálgico da sua argumentação: ‘mercadoria’ sendo empiricamente definida como objecto produzido para ser vendido no mercado e ‘mercado’ como os contactos efectivos entre vendedores e compradores, resulta na prática que deve haver mercados para todos os produtos da indústria; este postulado, diz Polanyi, é falso no que diz respeito à força de trabalho, à terra e à moeda, já que nenhum foi produzido para ser vendido, nenhum é pois ‘mercadoria’. Os três devem ser preservados do estatuto mercantil que o liberalismo lhes atribuiu.
3. O que impressiona é que os seus argumentos ganham na crise actual um relevo intempestivo. O desemprego aumenta assustadoramente, os ‘contratos de trabalho’, que são a forma democrática de organizar a economia, são demolidos por considerações em que a ‘força de trabalho’, que não foi feita pela evolução biológica e civilizacional para ser mercadoria, se tornou em algo que se compra e se vende, se pega e se deita fora. Quanto à terra, já não é só a terra agrícola a que Polanyi se referia, é o território organizado industrialmente, isto é, as empresas de produção que são eminentemente locais, organizadas para produzirem mercadorias que respondem a problemas locais dos países, de trabalho, de habitação, de alimentação e não para serem mercadorias, são elas que se transferem de país rico a país pobre, se vendem abstracta ou especulativamente, em bolsas longínquas. E o terceiro é a moeda, o ataque actual ao euro cada vez mais descarado, onde se percebe que os chamados ‘mercados’ não o são: mercado é aonde se vendem e compram mercadorias, as moedas para isso servem e não para serem elas vendidas e darem lucros fora das vendas, como a especulação das subprimes é exemplo do absurdo a que os financeiros podem chegar em suas guerras de capitais.
4. Intempestivo, quer dizer que estes argumentos vêm de outro tempo, de outra crise, mas em que se pretendia também a auto-regulação dos mercados (os tais que o não são). Não pode o filósofo ter a pretensão de dizer o que há que fazer. Constatar apenas com Boltanski que “o capitalismo prospera; a sociedade degrada-se” (Le nouvel esprit du capitalisme, 1999). Esta crise repete a da primeira metade do século XX, o comércio internacional impede guerras de bombas, mas, para que os números astronómicos dos grandes capitais aumentem algumas percentagemzinhas de alguns milhõezitos de dólares, está a produzir guerras financeiras em que os países vão caindo um a um, consoante a sua dimensão económica, primeiro os mais pequenos em economia e maiores em dívida, mas ameaça chegar aos outros, aos Estados Unidos de Obama também. Como será possível ter em atenção os argumentos de Polanyi, senhores economistas, transpô-los para esta crise e para a reformulação da vossa ciência, que Friedmann despolitizou e tão graves consequências está a ter, largando a brida à guerra dos capitais que ela deveria controlar?

Público, 18/07/2011

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