segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Tecnologia e desemprego


1. É confrangedor ver como o paradigma vigente pode enganar tanta gente. Então não é que uma classe politica dirigente que diz estar empenhada em combater o desemprego encontra como medida politica aumentar o tempo de trabalho da função pública de 35 para 40 horas e acabar com alguns feriados, isto é, tapar alguns empregos possíveis? É óbvio que este tipo de medidas revela uma pura politica de contabilistas, que não tem nada a ver com emprego ou desemprego, já que as contas a acertar são de capitais, não há outras, gentes não contam senão como ‘custos de produção’, isto é, como factores de produção por assim dizer mecanizados, instrumentos, máquinas.
2. Ora, pensando bem nesta linha percebe-se uma lógica diferente de possibilidades politicas, percebe-se por exemplo que grandes empresas que mudam para mãos administradoras que se propõem reformá-las procedam ao despedimento de milhares de trabalhadores sem que isso pareça afectar o funcionamento interno da produção e da burocracia correspondentes, antes pelo contrário. É que isso só é possível porque as novas tecnologias electrónicas substituem as energias musculares e/ou cerebrais desses que são despedidos. Não foram elas que provocaram a grande onda de desemprego que se foi gerando nas últimas três décadas enquanto os números de produção subiam e aumentavam vertiginosamente os lucros das grandes empresas, novas e algumas velhas que se adaptaram?
3. Mas não basta considerar a história recente para encarar duma maneira certa esta questão, é preciso pensá-la à luz da história do Ocidente: porque é que as outras grandes civilizações, da China, da Índia, do Islão, não vieram até onde os nossos antepassados chegaram e só se abriram recentemente à herança para receberem justamente a tecnologia? A questão tem interessado historiadores de competências variadas mas dos que eu conheço nunca têm em conta o factor que originou a diferença, há 25 séculos, a invenção da definição por Sócrates que sobretudo Aristóteles aplicou aos vários saberes da sua época, gerando a lógica que tornou possível a geometria de Euclides 20 anos depois; ele instituiu o texto gnosiológico de argumentos sobre essências intemporais e sem contexto que as escolas de filosofia foram transmitindo e as universidades medievais receberam para transmitirem por sua vez – escolas e livros impressos – a Galileu, Newton e seus contemporâneos, que se consideravam filósofos que usavam geometria. Houve a lendária história de cientistas europeus, tendo um fabricante de instrumentos para os laboratórios deles, James Watt, conseguido enfim inventar um dispositivo que distinguia uma fonte de energia de vapor de água e a possibilidade de a ligar a máquinas de diferentes trabalhos: a máquina que a electricidade e o petróleo depois melhoraram fortemente teve como resultado óbvio substituir o trabalho muscular de produções cada vez mais variadas, multiplicar as possibilidades de emprego e vir a aligeirar a dureza dos trabalhos. Começando com horários enormes e condições pavorosas de ecologia interna em fábricas e minas, a história da redução dos horários de trabalho e da melhoria das suas condições é uma das partes nobres do século XX, juntamente com o desenvolvimento científico e tecnológico.
4. Foi o que a tecnologia electrónica veio ultimar, forçando ainda mais à redução dos horários de trabalho, o que o pensamento único económico-político traduziu em desemprego crescente, tornando flagelo o que é historicamente promessa de vida melhor para todos (já que os maiores lucros são hoje de empresas com pouca gente, haveria quiçá que pensar numa taxa sobre a maquinaria electrónica das empresas com coeficientes segundo os postos de trabalho dispensados). Chegado aqui o filósofo deixa de ter competência para continuar, atento embora à corrente minoritária que propõe o decrescimento para nos salvar mas sabendo da grande dificuldade que lhe põe a globalização. Mas o que há que afirmar claramente é que a história de pensamento que foi evocada faz dos seus grandes heróis os antepassados de todos os humanos (iluminismo) e não apenas dos ‘pobres de espírito’ que só pensam em contas de números a crescer, que são a completa negação das grandes paixões intelectuais e muitas vezes espirituais que fazem, juntamente com os santos e os artistas, o admirável leque dos humanos que valem por nós, nos guiam para cima e para a frente. Dá vontade de chorar pensar que o grande saber que tornou possível a modernidade desaguou no meio social que provocou esta borrasca económica de que Madoff é o símbolo, de ganância.
5. Urgente, urgente, é estabelecer leis europeias que obriguem os capitais a obedecer às eleições democráticas das várias nações da U. E., como as que vêm aí na Grécia, Espanha e Portugal.

Público, 5 de Janeiro 2015

P. S. O argumento de como foi a aventura do pensamento greco-europeu (com o cristianismo, aliás, a relação de criação entre Dus e cada vivo ou coisa tendo reforçado o efeito da definição  como ontoteologia) que gerou a modernidade nas sociedades europeias prova-se também pelo facto de que nenhuma sociedade fora das que lideraram o progresso ocidental e veio depois a beneficiar dele, o pôde fazer sem pôr em primeiro plano a escola para ensinar o que o Ocidente descobriu e inventou.


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