1. Descobri que lia o I Heidegger com
os óculos que emprestava ao II Heidegger, lia o ser no mundo à luz do retiro do ser, que foi o que me galvanizou em 1989, ao escrever
o Heidegger, pensador da Terra (para o centenário dele, por encomenda duma editora que faliu, por isso só
foi editado em 91).
2. Não se trata aqui duma auto-crítica, mas duma
reavaliação. No texto anterior sobre Os ‘deuses’ de Heidegger, disse como ler especialistas me permitia
perceber melhor a distância entre os textos dele e as minhas leituras interessadas,
marcadas por outras leituras e questões, como este blogue atesta
suficientemente. Ora, o que sucedeu nessa escrita aonde se ‘depositou’ o meu
Heidegger, como se diz dos vinhos velhos, foi que Ser e Tempo foi abordado por um pouco cima, lendo certos
capítulos e fiando-me em leituras doutros, em geral pouco preocupados com os
textos do Heidegger do pós guerra, ficando por isso um tanto vago, já que não
era então o meu interesse maior. Ora, nos 8 ou 9 anos que vieram com a escrita
de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, foi
emergindo o motivo do ser no mundo como uma forte ruptura com a oposição sujeito / objecto da filosofia
europeia, que relacionei com a aliança dela com o laboratório da física, mormente
na maneira como Kant introduziu Newton na sua Critica da razão pura[1]. A questão é: qual a força dessa ruptura em Ser
e Tempo? Qual é a relação que o Dasein guarda com o ‘sujeito’, sendo certo que
desaparece o motivo de ‘objecto’? Nos seminários dos anos 60 (Questions IV) parece haver um cordão umbilical do Dasein ao ‘sujeito’ que resiste à minha leitura (a
comparação irónica com o ‘sem janelas’ de Leibniz é significativa!). À luz da
diferença ontológica, entre o Ser ontológico e qualquer ôntico ente humano,
como situar o Dasein? Se é um
motivo ontológico, que diferença tem com qualquer ente humano? E com as
ciências que se ocupam de humanos, biologia, antropologia, linguística? Por
exemplo, as duas definições de humano na Política de Aristóteles, ‘animal politico’ e ‘animal com
discurso’ (logos), referem-se
aos domínios essas três ciências, enquanto que o ‘sujeito’ europeu não se
refere a nenhuma: o ‘sujeito’ não é biológico nem social nem tem língua duma
tribo. Ora, sabe-se que Heidegger é muito cauteloso em relação nomeadamente à
introdução de antropologia nas suas análises (e com razão: seria
inevitavelmente uma antropologia moderna, pelo menos de sociedades cosmopolitas,
dado que ainda hoje as ciências das sociedades não têm confessadamente um conceito
de sociedade que valha tanto para as tribos da etnologia como para as
sociedades das várias civilizações históricas até às actuais). Então qual é o
alcance do ser no mundo?
Tratei-o alegremente, sem estas preocupações. Até que um destes dias li um
texto tratando das diferenças entre Hannah Arendt e Heidegger que me fez saltar
a questão: qual é o ‘mundo’ do ser no mundo?.
3. Trata-se duma conferência em Espanha de Seyla
Benhabib (Harvard), El reluctante modernismo de Hannah Arendt. El dialogo
con Martin Heidegger[2] que compara o texto de Arendt, Vida Activa, com Ser e Tempo, partindo duma carta a Jaspers em que ela conta
como Heidegger levou o livro muito a mal, já que ela lhe apareceu pela primeira
vez como pensadora e em desacordo com ele. Benhabib busca compreender em que é
que consiste a desavença. Ora, do pouco que conhecia dela, sobretudo uma
biografia, eu suspeitava que ela ficara aquém do ser no mundo mas verifico agora que ela escreveu que “é quase
impossível oferecer uma explicação do pensamento de Heidegger que possa ter
relevância politica sem um estudo elaborado do seu conceito e análise do
mundo”. Mostra Benhabib como justamente o que ela propõe é outra interpretação
do ser no mundo, achando
insuficiente a proposta de Ser e Tempo, e é isso mesmo que provoca o desconforto do Mestre, a rebeldia da
discípula sobre os seus próprios motivos. Os conhecidos motivos de Arendt
relativos à actividade dos humanos são esclarecedores. O labor diz respeito aos cuidados do corpo, seu sustento
e alimentação assim como higiene, ou seja diz respeito à condição biológica dos
humanos que Heidegger ignora: nem o nascimento nem a alimentação são tidos em
conta, nem em rigor a morte biológica, já que é a antecipação da morte que
permite ao Dasein chegar à
autenticidade (há assim um critério ético a jogar aqui), enquanto que perecer é
próprio de todos os animais. O trabalho é a actividade que cria o ‘mundo’ em sentido heideggeriano, constrói-lhe
uma habitação, edifícios e culturas, sendo a única dimensão dos humanos que
Heidegger (quase) retém para substituir os ‘objectos’ de Husserl, os que lhe
estão à mão e não apenas à percepção. Finalmente a acção é a actividade entre humanos em sua pluralidade,
onde se situa a politica nomeadamente; bizarramente o Ser-o-aí-com (Mitsein) de Ser e Tempo é assinalado mas como um actor sem papel
atribuído, o Ser-o-aí é descrito de forma solipsista, tal como a ‘alma’ de
outrora ou o ‘sujeito’ europeu, acrescente-se. Lembrando-nos que Heidegger dizia
que qualquer animal tem pouco mundo em comparação com o humano, é caso para
dizer que o mundo do Dasein em
Ser e Tempo também é
poucochinho: do social que poderia corresponder ao mundo em que ele é lançado
só tem a língua (supostamente no discurso, para antecipar a morte) e a
utilização instrumental de coisas, Derrida ironizando algures que ele nunca é
definido como vivo. Pode-se pensar que o cuidado é a categoria ontológica, existenciária, que
cobre todas as suas actividades, que estas são ônticas, objecto de ciências,
enquanto que Heidegger não sai da filosofia. A minha questão é saber se estas
“actividades” de Arendt não pressupõem aspectos ontológicos interessantes para
abordar os humanos como seres no mundo, sem ter necessariamente que fazer intervir
condicionantes antropológicas das diferentes sociedades históricas.
4. Numa biografia publicada no centenário do
nascimento de Heidegger, Thomas Rentsch diz que ele desenvolveu uma “teologia
sem Deus”: “a prostração dos humanos num mundo inautêntico, cita Benhabib, a
finitude da existência humana enquanto criatura destinada a uma vida de
preocupação e finalmente o pensamento da própria finitude fundamental”.
Enquanto que, deslocando o ser-para-a-morte para a natalidade, Arendt “ressuscita
o quotidiano-ser-no-mundo com os outros como condição básica do ser humano [...] natalidade, pluralidade e acção
revelam-se categorias que se opõem profundamente a Ser e Tempo”. Mundo negativo nele, positivo nela? Talvez, mas
o que significa aqui ‘positivo’ e ‘negativo’? A dificuldade destas coisas é
saber dos contextos da época, é a dificuldade de saber ler um texto de Galileu,
por exemplo, sem deixar intervir a física posterior a ele que o leitor conhece
e ele não. Romancistas católicos da primeira metade do século XX como François
Mauriac, Georges Bernanos e Graham Greene testemunham dum mundo fortemente
negativo que faz ressaltar a ‘graça divina’, pode-se pensar que Heidegger foi
também educado nesse mundo. Mas quando ele pretende romper com o ‘sujeito’
(título a evitar, diz-se no § 10 de Ser e Tempo, como também ‘alma’, ‘consciência’, ‘espírito’,
‘pessoa’, ‘vida’, ‘homem’: tentativa de ter em conta a corporalidade humana sem o motivo do 'corpo', tradicional oposto da 'alma' e do 'sujeito'), situando o Dasein como existindo temporalmente no mundo, Sartre e
Levinas testemunham da novidade que aí encontraram, a figura da ‘náusea’
nomeadamente no primeiro bem diversa da ‘positividade’ de Arendt. Pode-se aliás
pensar que o ‘mundo do pecado original’ não seria totalmente descabido, com as
leis da selva e da guerra a que se virá mais adiante que elas ilustram a
negatividade do mundo heideggeriano), do ‘-se’ do diz-se, do ‘man’ (em alemão),
do ‘on’ (em francês), assim como o Dasein autêntico deixa espaço para os ‘espirituais’ (que se convertem).
5. A questão é a de saber como testar essa ‘ruptura’
de 1927 quase 90 anos depois, tendo em conta o II Heidegger, o retiro do ser. Este motivo veio a afectar o Dasein? E as três formas de ‘actividade’ de Arendt,
avançando em relação a Ser e Tempo, não ficarão aquém de Tempo e Ser, se o Dasein for doado
pelo Ereignis (que ocupa em 62 o lugar que até aí fora o do
Ser)? Com efeito, se este motivo ontológico contém no seu sentido os motivos de
‘ser’ e de ‘tempo’, que são doados aos entes ônticos, como pode o ente humano
ser excluído? Creio que o Heidegger dos anos 60 não o ‘excluía’ propriamente,
mas que também não o ‘incluía’, deixando ver como o ‘sujeito’ ainda espreitava
em sua ‘oposição’ ao mundo (como a ‘alma’ de outrora). Ora bem, o que é que
significa onticamente a inclusão do ente humano na doação pelo Acontecimento (ontológico)? Significa duas coisas: que ele é
gerado, parido, aleitado, por uma mulher que um homem fecundou, e alimentado em
seguida constantemente, que ele é instituído como humano pela aprendizagem dos
usos da tribo desse casal que o deu à luz. Estas duas coisas dizem que ele é
instituído como ser no mundo
dessa tribo (família, depois escola também, nas nossas sociedades). Mas então a
tal ‘positividade’ de Arendt é também afectada: labor, trabalho e acção são
motivos que resultam de se tomar o “ser no mundo com os outros como condição básica do humano”, ultrapassando o
solipsismo do Dasein; por
exemplo, o motivo da natalidade, da “iniciativa” do que nasce, resulta da doação de possibilildades pelo mundo (só terá iniciativa por aprender os
usos dos outros: um bebé que nasce, nu e banhado de sangue, é uma ‘ruína’ a
construir “com os outros”). Mas não conheço suficientemente a sua obra para
avaliar o que a filósofa de Harvard chama o “relutante modernismo” de Hannah
Arendt, para saber que lugar tem no seu pensamento o sintoma crucial do ser
no mundo que é a aprendizagem –
corolário ôntico, por assim dizer, do retiro da doação que ‘deixa ser’ a autonomia temporal de cada
humano em suas possibilidades, abertas pelo seu mundo – ou se deixa aos
filósofos esse tipo de questões para se dedicar às que têm a ver com a política
e as suas catástrofes.
6. Mostrei nomeadamente no Manifesto (blogue Filosofia.com.ciências) como a lógica da biologia implica que, só
havendo as moléculas de carbono de que são feitas todas as complexas moléculas
das células (excepto a água) noutros vivos, plantas ou animais, todos os
animais não apenas precisam de comer vivos para viverem como também as suas
anatomias são estruturadas para isso, segundo a lei da selva, a mais geral de todas as leis biológicas que
rege a alimentação.
Igualmente, a aprendizagem,
dependente da necessária aliança entre gerações que se sucedem, implica
rivalidades que se sobrepõem com grande frequência às relações de aliança,
tornando as sociedades, internamente e ainda mais face às estrangeiras, submetidas
à lei da guerra. Estas duas
leis, a segunda sendo sequência reelaborada da primeira, dão ao motivo de mundo um aspecto como que negativo, aquele que é muitas
vezes colocado como ‘problema do mal’ ou ‘da violência’. A ética não lhe é
prévia mas consequência: leis e razão são maneiras de se conjurarem esta negatividade
do ‘mundo’, que é prévia à tal ‘teologia católica’ sem Deus que seria a de Ser
e Tempo. Mas tanto a alimentação
como a aprendizagem como imperativos sociais pré-políticos, digamos,
são na ordem fenomenológica prévios à diferença entre concepções do mundo que
seriam ‘positivas’ ou ‘negativas’, ardentianas ou heideggerianas. E que ilustram eles do Dasein de Ser e Tempo ? São ambos imperativos que, em vez de 'anteciprem' a morte, a diferem: a alimentação é o cuidado que adia quotidianamente a morte individual, a aprendizagem das novas gerações adia morte da sociedade; tais diferanças são mais 'antecipadoras' da morte, pois que têm efeito sobre ela, do que a que leva alguns à autenticidade, privilegiada por Heidegger em vista da diferença que se mostra ser ética.
7. Quanto à questão da “teologia sem Deus” de Ser
e Tempo”, não sei se e como ela
perdurou como tal no II Heidegger, já que o motivo ontoteológico põe-na
radicalmente em questão. Poderia pôr-se a hipótese de o nazismo ter aparecido a
Heidegger, conservador pouco politizado, como resposta ôntica pagã inesperada
duma superação da negatividade do ‘mundo inautêntico’ cristão, mas de que
rapidamente se terá desencantado, tendo-se tornado o seu espantalho filosófico
dos anos 30, para o que recorreu a Nietzsche, Hölderlin, outras artes, mas
também a Heraclito, Parménides, Junger, Aristóteles, o que justificaria a minha
pretensão em Heidegger, pensador da Terra (§§ 44-48) de que terá sido a adesão e posterior repúdio do nazismo o que
o provocou à enorme viragem, dum Dasein solipsista, temporal mas não historicizado, para a História do Ser. Mas
como as viragens nunca são integrais, acontecem a estruturações antigas que
lhes resistem, a força do desafio da técnica nos anos 50 e 60 veio a revelar
como tinha ficado um ‘buraco divino’ dessa primeira teologia que teve: se ele
não tivesse providenciado para que a sua entrevista ao Spiegel não fosse publicada antes da morte de Hannah
Arendt, esta teria ficado boquiaberta diante do “só um deus nos pode ainda salvar”.
[1] J.
Vuillemin, Physique et méthaphysique kantiennes, P.U.F., 1955, demonstrou de
maneira muito convincente a existência dum paralelo rigoroso entre a Analítica
transcendental da Crítica da razão pura (1781) e os Princípios metafísicos da ciência
da natureza (1786):
a sua tese é a de que “pensamento físico e teoria do conhecimento não são senão
um em Kant”: é um livro de argumentação muito cerrada, difícil de ler por
supor um conhecimento aprofundado da história da física desde Galileu a Kant e
das suas relações estruturais às filosofias de Descartes e Leibniz, pelo menos.
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