segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Hannah Arendt, crítica de Heidegger sobre o ‘mundo’ do ser no mundo




1. Descobri que lia o I Heidegger com os óculos que emprestava ao II Heidegger, lia o ser no mundo à luz do retiro do ser, que foi o que me galvanizou em 1989, ao escrever o Heidegger, pensador da Terra (para o centenário dele, por encomenda duma editora que faliu, por isso só foi editado em 91).
2. Não se trata aqui duma auto-crítica, mas duma reavaliação. No texto anterior sobre Os ‘deuses’ de Heidegger, disse como ler especialistas me permitia perceber melhor a distância entre os textos dele e as minhas leituras interessadas, marcadas por outras leituras e questões, como este blogue atesta suficientemente. Ora, o que sucedeu nessa escrita aonde se ‘depositou’ o meu Heidegger, como se diz dos vinhos velhos, foi que Ser e Tempo foi abordado por um pouco cima, lendo certos capítulos e fiando-me em leituras doutros, em geral pouco preocupados com os textos do Heidegger do pós guerra, ficando por isso um tanto vago, já que não era então o meu interesse maior. Ora, nos 8 ou 9 anos que vieram com a escrita de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, foi emergindo o motivo do ser no mundo como uma forte ruptura com a oposição sujeito / objecto da filosofia europeia, que relacionei com a aliança dela com o laboratório da física, mormente na maneira como Kant introduziu Newton na sua Critica da razão pura[1]. A questão é: qual a força dessa ruptura em Ser e Tempo? Qual é a relação que o Dasein guarda com o ‘sujeito’, sendo certo que desaparece o motivo de ‘objecto’? Nos seminários dos anos 60 (Questions IV) parece haver um cordão umbilical do Dasein ao ‘sujeito’ que resiste à minha leitura (a comparação irónica com o ‘sem janelas’ de Leibniz é significativa!). À luz da diferença ontológica, entre o Ser ontológico e qualquer ôntico ente humano, como situar o Dasein? Se é um motivo ontológico, que diferença tem com qualquer ente humano? E com as ciências que se ocupam de humanos, biologia, antropologia, linguística? Por exemplo, as duas definições de humano na Política de Aristóteles, ‘animal politico’ e ‘animal com discurso’ (logos), referem-se aos domínios essas três ciências, enquanto que o ‘sujeito’ europeu não se refere a nenhuma: o ‘sujeito’ não é biológico nem social nem tem língua duma tribo. Ora, sabe-se que Heidegger é muito cauteloso em relação nomeadamente à introdução de antropologia nas suas análises (e com razão: seria inevitavelmente uma antropologia moderna, pelo menos de sociedades cosmopolitas, dado que ainda hoje as ciências das sociedades não têm confessadamente um conceito de sociedade que valha tanto para as tribos da etnologia como para as sociedades das várias civilizações históricas até às actuais). Então qual é o alcance do ser no mundo? Tratei-o alegremente, sem estas preocupações. Até que um destes dias li um texto tratando das diferenças entre Hannah Arendt e Heidegger que me fez saltar a questão: qual é o ‘mundo’ do ser no mundo?.
3. Trata-se duma conferência em Espanha de Seyla Benhabib (Harvard), El reluctante modernismo de Hannah Arendt. El dialogo con Martin Heidegger[2] que compara o texto de Arendt, Vida Activa, com Ser e Tempo, partindo duma carta a Jaspers em que ela conta como Heidegger levou o livro muito a mal, já que ela lhe apareceu pela primeira vez como pensadora e em desacordo com ele. Benhabib busca compreender em que é que consiste a desavença. Ora, do pouco que conhecia dela, sobretudo uma biografia, eu suspeitava que ela ficara aquém do ser no mundo mas verifico agora que ela escreveu que “é quase impossível oferecer uma explicação do pensamento de Heidegger que possa ter relevância politica sem um estudo elaborado do seu conceito e análise do mundo”. Mostra Benhabib como justamente o que ela propõe é outra interpretação do ser no mundo, achando insuficiente a proposta de Ser e Tempo, e é isso mesmo que provoca o desconforto do Mestre, a rebeldia da discípula sobre os seus próprios motivos. Os conhecidos motivos de Arendt relativos à actividade dos humanos são esclarecedores. O labor diz respeito aos cuidados do corpo, seu sustento e alimentação assim como higiene, ou seja diz respeito à condição biológica dos humanos que Heidegger ignora: nem o nascimento nem a alimentação são tidos em conta, nem em rigor a morte biológica, já que é a antecipação da morte que permite ao Dasein chegar à autenticidade (há assim um critério ético a jogar aqui), enquanto que perecer é próprio de todos os animais. O trabalho é a actividade que cria o ‘mundo’ em sentido heideggeriano, constrói-lhe uma habitação, edifícios e culturas, sendo a única dimensão dos humanos que Heidegger (quase) retém para substituir os ‘objectos’ de Husserl, os que lhe estão à mão e não apenas à percepção. Finalmente a acção é a actividade entre humanos em sua pluralidade, onde se situa a politica nomeadamente; bizarramente o Ser-o-aí-com (Mitsein) de Ser e Tempo é assinalado mas como um actor sem papel atribuído, o Ser-o-aí é descrito de forma solipsista, tal como a ‘alma’ de outrora ou o ‘sujeito’ europeu, acrescente-se. Lembrando-nos que Heidegger dizia que qualquer animal tem pouco mundo em comparação com o humano, é caso para dizer que o mundo do Dasein em Ser e Tempo também é poucochinho: do social que poderia corresponder ao mundo em que ele é lançado só tem a língua (supostamente no discurso, para antecipar a morte) e a utilização instrumental de coisas, Derrida ironizando algures que ele nunca é definido como vivo. Pode-se pensar que o cuidado é a categoria ontológica, existenciária, que cobre todas as suas actividades, que estas são ônticas, objecto de ciências, enquanto que Heidegger não sai da filosofia. A minha questão é saber se estas “actividades” de Arendt não pressupõem aspectos ontológicos interessantes para abordar os humanos como seres no mundo, sem ter necessariamente que fazer intervir condicionantes antropológicas das diferentes sociedades históricas.
4. Numa biografia publicada no centenário do nascimento de Heidegger, Thomas Rentsch diz que ele desenvolveu uma “teologia sem Deus”: “a prostração dos humanos num mundo inautêntico, cita Benhabib, a finitude da existência humana enquanto criatura destinada a uma vida de preocupação e finalmente o pensamento da própria finitude fundamental”. Enquanto que, deslocando o ser-para-a-morte para a natalidade, Arendt “ressuscita o quotidiano-ser-no-mundo com os outros como condição básica do ser humano [...] natalidade, pluralidade e acção revelam-se categorias que se opõem profundamente a Ser e Tempo”. Mundo negativo nele, positivo nela? Talvez, mas o que significa aqui ‘positivo’ e ‘negativo’? A dificuldade destas coisas é saber dos contextos da época, é a dificuldade de saber ler um texto de Galileu, por exemplo, sem deixar intervir a física posterior a ele que o leitor conhece e ele não. Romancistas católicos da primeira metade do século XX como François Mauriac, Georges Bernanos e Graham Greene testemunham dum mundo fortemente negativo que faz ressaltar a ‘graça divina’, pode-se pensar que Heidegger foi também educado nesse mundo. Mas quando ele pretende romper com o ‘sujeito’ (título a evitar, diz-se no § 10 de Ser e Tempo, como também ‘alma’, ‘consciência’, ‘espírito’, ‘pessoa’, ‘vida’, ‘homem’: tentativa de ter em conta a corporalidade humana sem o motivo do 'corpo', tradicional oposto da 'alma' e do 'sujeito'), situando o Dasein como existindo temporalmente no mundo, Sartre e Levinas testemunham da novidade que aí encontraram, a figura da ‘náusea’ nomeadamente no primeiro bem diversa da ‘positividade’ de Arendt. Pode-se aliás pensar que o ‘mundo do pecado original’ não seria totalmente descabido, com as leis da selva e da guerra a que se virá mais adiante que elas ilustram a negatividade do mundo heideggeriano), do ‘-se’ do diz-se, do ‘man’ (em alemão), do ‘on’ (em francês), assim como o Dasein autêntico deixa espaço para os ‘espirituais’ (que se convertem).
5. A questão é a de saber como testar essa ‘ruptura’ de 1927 quase 90 anos depois, tendo em conta o II Heidegger, o retiro do ser. Este motivo veio a afectar o Dasein? E as três formas de ‘actividade’ de Arendt, avançando em relação a Ser e Tempo, não ficarão aquém de Tempo e Ser, se o Dasein for doado pelo  Ereignis (que ocupa em 62 o lugar que até aí fora o do Ser)? Com efeito, se este motivo ontológico contém no seu sentido os motivos de ‘ser’ e de ‘tempo’, que são doados aos entes ônticos, como pode o ente humano ser excluído? Creio que o Heidegger dos anos 60 não o ‘excluía’ propriamente, mas que também não o ‘incluía’, deixando ver como o ‘sujeito’ ainda espreitava em sua ‘oposição’ ao mundo (como a ‘alma’ de outrora). Ora bem, o que é que significa onticamente a inclusão do ente humano na doação pelo Acontecimento (ontológico)? Significa duas coisas: que ele é gerado, parido, aleitado, por uma mulher que um homem fecundou, e alimentado em seguida constantemente, que ele é instituído como humano pela aprendizagem dos usos da tribo desse casal que o deu à luz. Estas duas coisas dizem que ele é instituído como ser no mundo dessa tribo (família, depois escola também, nas nossas sociedades). Mas então a tal ‘positividade’ de Arendt é também afectada: labor, trabalho e acção são motivos que resultam de se tomar o “ser no mundo com os outros como condição básica do humano”, ultrapassando o solipsismo do Dasein; por exemplo, o motivo da natalidade, da “iniciativa” do que nasce, resulta da doação de possibilildades pelo mundo (só terá iniciativa por aprender os usos dos outros: um bebé que nasce, nu e banhado de sangue, é uma ‘ruína’ a construir “com os outros”). Mas não conheço suficientemente a sua obra para avaliar o que a filósofa de Harvard chama o “relutante modernismo” de Hannah Arendt, para saber que lugar tem no seu pensamento o sintoma crucial do ser no mundo que é a aprendizagem – corolário ôntico, por assim dizer, do retiro da doação que ‘deixa ser’ a autonomia temporal de cada humano em suas possibilidades, abertas pelo seu mundo – ou se deixa aos filósofos esse tipo de questões para se dedicar às que têm a ver com a política e as suas catástrofes.
6. Mostrei nomeadamente no Manifesto (blogue Filosofia.com.ciências) como a lógica da biologia implica que, só havendo as moléculas de carbono de que são feitas todas as complexas moléculas das células (excepto a água) noutros vivos, plantas ou animais, todos os animais não apenas precisam de comer vivos para viverem como também as suas anatomias são estruturadas para isso, segundo a lei da selva, a mais geral de todas as leis biológicas que rege a alimentação. Igualmente, a aprendizagem, dependente da necessária aliança entre gerações que se sucedem, implica rivalidades que se sobrepõem com grande frequência às relações de aliança, tornando as sociedades, internamente e ainda mais face às estrangeiras, submetidas à lei da guerra. Estas duas leis, a segunda sendo sequência reelaborada da primeira, dão ao motivo de mundo um aspecto como que negativo, aquele que é muitas vezes colocado como ‘problema do mal’ ou ‘da violência’. A ética não lhe é prévia mas consequência: leis e razão são maneiras de se conjurarem esta negatividade do ‘mundo’, que é prévia à tal ‘teologia católica’ sem Deus que seria a de Ser e Tempo. Mas tanto a alimentação como a aprendizagem como imperativos sociais pré-políticos, digamos, são na ordem fenomenológica prévios à diferença entre concepções do mundo que seriam ‘positivas’ ou ‘negativas’, ardentianas ou heideggerianas. E que ilustram eles do Dasein de Ser e Tempo ? São ambos imperativos que, em vez de 'anteciprem' a morte, a diferem: a alimentação é o cuidado que adia quotidianamente a morte individual, a aprendizagem das novas gerações adia morte da sociedade; tais diferanças são mais 'antecipadoras' da morte, pois que têm efeito sobre ela, do que a que leva alguns à autenticidade, privilegiada por Heidegger em vista da diferença que se mostra ser ética. 
7. Quanto à questão da “teologia sem Deus” de Ser e Tempo”, não sei se e como ela perdurou como tal no II Heidegger, já que o motivo ontoteológico põe-na radicalmente em questão. Poderia pôr-se a hipótese de o nazismo ter aparecido a Heidegger, conservador pouco politizado, como resposta ôntica pagã inesperada duma superação da negatividade do ‘mundo inautêntico’ cristão, mas de que rapidamente se terá desencantado, tendo-se tornado o seu espantalho filosófico dos anos 30, para o que recorreu a Nietzsche, Hölderlin, outras artes, mas também a Heraclito, Parménides, Junger, Aristóteles, o que justificaria a minha pretensão em Heidegger, pensador da Terra (§§ 44-48) de que terá sido a adesão e posterior repúdio do nazismo o que o provocou à enorme viragem, dum Dasein solipsista, temporal mas não historicizado, para a História do Ser. Mas como as viragens nunca são integrais, acontecem a estruturações antigas que lhes resistem, a força do desafio da técnica nos anos 50 e 60 veio a revelar como tinha ficado um ‘buraco divino’ dessa primeira teologia que teve: se ele não tivesse providenciado para que a sua entrevista ao Spiegel não fosse publicada antes da morte de Hannah Arendt, esta teria ficado boquiaberta diante do “só um deus nos pode ainda salvar”.



[1] J. Vuillemin, Physique et méthaphysique kantiennes, P.U.F., 1955, demonstrou de maneira muito convin­cente a existência dum paralelo rigoroso entre a Analítica transcen­dental da Crítica da razão pura (1781) e os Princípios metafísicos da ciência da natureza (1786): a sua tese é a de que “pensamento físico e teoria do conhecimento não são senão um em Kant”: é um livro de argu­mentação muito cerrada, difícil de ler por supor um conhecimento aprofundado da história da física desde Galileu a Kant e das suas relações estruturais às filosofias de Descartes e Leibniz, pelo menos.
[2] ed. Episteme, S. L., 1996: trata-se de um dos capítulos dum livro com o mesmo nome.

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