1. É uma dívida, daquelas que não se pagam, não
se apagam. Um projecto de tese sobre a epistemologia da semântica saussuriana
à luz da gramatologia de Derrida. O P. Manuel Antunes, que pouco depois a
doença levou, dava-me apoio do lado da Filosofia, o departamento onde ensinava
Filosofia da Linguagem, mas precisava de alguém do lado da Linguística. O
Professor Lindley Cintra prestou-se, e emprestou mesmo o departamento para as
provas, é a dívida maior. Mas precisava de alguém do lado da teoria saussuriana,
e foi a Maria Alzira quem me leu o que escrevi, atenta, crítica, alegre. Há
cerca de15 anos que se cumpriu, bem haja!
2. Uns anos antes conhecera o António
Guerreiro, que acabava de se licenciar em Literatura e fôra aluno da Maria
Alzira. Estreara-se no J. L. com um artigo sobre um
romance do José Gil, em que defendia uma concepção do feminino que nos mereceu
uma resposta, à Teresa Joaquim e a mim e depois, por mediação do J. Gil, um
encontro no Jardim da Estrela. Tímido, ainda hoje o parece embora tenha
mostrado sobejas vezes que faz jus ao apelido. No final da conversa, tomou-me
de lado para uma questão que obviamente era para ele então motivo de grande
inquietação: acreditava eu na imanência estruturalista do texto que a Maria
Alzira defendia? Respondi-lhe que sim, na altura ainda não me dera conta de que
tinha uma concepção estruturalista duma afirmação célebre de Derrida “não há
fora de texto”. A inquietação ficou-lhe nos olhos. Claro que, passados uns 20
anos sobre esta cena, o crítico de poesia, e também leitor de filosofia, que é
hoje reconhecido na nossa praça com a assinatura de António Guerreiro não
precisa já do meu esclarecimento tão atrasado. Maria Alzira nunca terá
precisado. Sou eu que nunca esqueci o episódio, que porventura preciso de
tentar saldar esta dívida, já que a outra não posso.
Uma guerra
contra a ‘bêtise’
3. Trata-se mesmo duma guerra contra esta
‘bêtise’ medonha que enche os jornais, mesmo e sobretudo os meios universitários,
quando lhes calha falar da linguagem: como ‘meio de comunicação’ ou, a melhor
que já li, como ‘meio de acesso à informação’. Toda esta minha gente parece
acreditar que existem coisas chamadas informações e actividades chamadas comunicação
antes de haver linguagem, como acreditam - tudo
isto é beatice ignorante - que têm ideias e pensamentos que depois ‘exprimem’ em linguagem, que esta não é senão um instrumento (como um
martelo, sem dúvida, tanto nos martelam assim), um ‘meio de’[1]. Ou então a linguagem gestual, como se funcionasse sozinha, oposta à
verbal, isto é como se pudesse haver aquela sem esta. Há uma outra mais
requintada, que não se pode colocar na rubrica destas ‘bêtises’, mas que não
deixa de ser parente epistemológica delas: certas realidades para as quais não
haveria palavras que as pudessem dizer. Se não se trata de dizer uma música ou um quadro - e mesmo assim, sei lá! eles sabem falar
dessas coisas, sem que eu entenda -, na maioria dos casos trata-se de desculpas
de mau pagador, significa apenas que ‘eu não sou
capaz de dizer’. Nós temos as palavras todas para dizer o que quer que seja,
foi com as palavras que há que os poetas, os pensadores, os místicos[2] disseram coisas impossíveis de dizer à sua época (e por vezes ainda
impossíveis de repetir por outros, depois de eles o terem dito). Dizer que
‘não há palavras que possam pensar, descrever, contar, evocar...isto ou
aquilo’ é ignorar que ‘só as palavras podem pensar, descrever, contar,
evocar...o que quer que seja’, é subordinar a linguagem, ignorar o que ela nos
dá: ‘tudo’ o que sabemos e podemos. É isso a literatura, e é por isso que a
prezamos: diz o que nós não sabemos dizer.
4. Mas não posso ir à questão sem antes retirar
os insultos do parágrafo anterior: que haja ‘bêtise’ não quer dizer que as pessoas
sejam necessariamente estúpidas quando a cometem, já que a herdaram da
grande filosofia europeia, a partir pelo menos de Descartes, da invenção das
‘ideias’ e outras representações mentais de objectos em sujeitos, invenção
essa tanto seguida por racionalistas como por empiristas e por idealistas,
como se diz na história clássica da filosofia. Uma boa parte do pensamento moderno,
a partir de Marx, Nietzsche e Freud, tendo-se explicitado em Saussure e nos
estruturalismos dele se reclamando, por um lado, em Heidegger e em Derrida por
outro, fez fincapé na contestação destas representações, por uma espécie de retorno
à linguagem que Heidegger tematizou como retorno ao
dito de Parménides: “Pois que o pensar e o ser é o mesmo [...] têm que ser o
dizer, o pensar e o ente”. Quando Derrida escreveu que “não há fora de texto”
não fez senão estender este dito às escritas, a tudo o que se escreve e
escreveu[3], incluindo oralmente. Esta ‘bêtise’ é pois uma (má) herança filosófica
que se ignora.
A imanência das
inscrições
5. Chamarei aqui inscrições ao que muitas vezes se generaliza indevidamente como ‘linguagens’:
quer a linguagem oral e a escrita alfabética (ou outras formas de escrita, como
os hieroglifos e os caracteres chineses e japoneses), quer a escrita dos
números ou matemática, quer a música, quer as imagens (desenhadas, pintadas,
fotografadas, do cinema), têm todas em comum: a) serem ‘feitas’ numa matéria outra (sonora ou superfície visual, consoante), repetindo-se (os
mesmos textos, imagens, peças de música) em matérias empíricas não-idênticas
(vozes, instrumentos musicais, superfícies várias), tendo chegado, a partir da
invenção do telefone, ao ponto de hoje em dia serem susceptíveis de serem
transformadas em corrente eléctrica (e depois esta em ondas electromagnéticas)
e de regressarem em seguida às matérias que lhes são tradicionais (proeza
tecnológica que pode servir para descriminar essas inscrições de todas as
outras produções materiais, as que não se podem mandar por via ‘tele-’), e b)
o de se bastarem a si mesmas enquanto inscrições, ou seja, não serem ‘meios’
de outra coisa, não serem instrumentos em função de qualquer outra coisa
relativa à habitação dos humanos.
6. Ora, é a estas duas características - que
creio definitórias das inscrições - que corresponde a imanência do respectivo
jogo de diferenças, aquilo que se inscreve em tal ou tal inscrição: em tal ou
tal fala, texto, música, problema ou plano de imagem. Se elas são todas
susceptíveis de serem transportadas para outro lado, se, em todo o rigor, é
para que haja essa deslocação que qualquer inscrição se faz, que para isso
foram elas inventadas (para começar de tal boca ou piano para outros ouvidos,
de tal pena ou pincel para outros olhos), isso significa que a ruptura com
o contexto da sua fabricação faz parte da sua
estrutura essencial, significa que esse contexto não é necessário para que quem
ouve ou vê ‘entenda’ o que ouve ou vê. É óbvio quando se lê um soneto de Camões
ou se escuta uma composição de Mozart, quando se analisa uma demonstração de
Newton ou se vê um filme de Godard: o fabrico deles pelos seus autores,
escrita ou filmagem, não vem com eles, se viesse seria um estorvo monumental à
leitura, escuta, análise ou contemplação. É na não necessidade estrutural
desse contexto, na autosuficiência da inscrição, que consiste a imanência
do seu jogo. A dificuldade é saber como é que ela é
susceptível de ‘reenviar’ a ‘outra coisa’ do que ela, de referir ao que os
linguistas chamam referente: conhecimento duma receita, duma lei física ou de
uma cena numa paisagem. E como estes exemplos são suficientes para sabermos
que esse ‘reenvio’ é inerente às inscrições, a dificuldade consistirá em saber
se se trata de um reenvio para ‘fora’ do texto ou filme, para um referente
‘extra-linguístico’, de que ‘outra coisa’ se trata, se é ‘coisa’, se é ‘outra’
e em que sentido.
7. Num texto a que se pode ter acesso na Web[4], procuro mostrar como estas inscrições são compostas de unidades susceptíveis de três níveis: a) um nível de unidades elementares
(não divisíveis) imotivadas em relação a qualquer
outra coisa do que o jogo imanente (os fonemas orais e as letras dos alfabetos,
as notas musicais), b) um nível de unidades de significação ou referência (as palavras, os algarismos e os outros caractreres matemáticos, as
imagens de ‘coisas’) e c) um nível de composição
das unidades anteriores (frases e discursos ou textos, equações, frases
musicais e peças de música). Tendo-se em conta a propriedade estrutural destas
inscrições serem analisáveis enquanto composições lineares segmentáveis em
unidades discretas que comutam entre si,
verificaremos: que as imagens não têm essa propriedade (planos superficiais, isto
é não lineares nem compostas de unidades comutáveis), são unidades do nível
da referência (só b), o dum retrato de alguém, por exemplo (as imagens
são, por isso, eminentemente singulares, concretas: não é um defeito, é o que
motiva os artistas e a publicidade); que a música, frases musicais de notas
imotivadas, não contém unidades referenciais (só a e c), é a
mais imanente (ou abstracta) de todas estas inscrições, a única em que o
problema duma referência nem sequer se põe (não é um defeito, é por isso que
se gosta de música); que a matemática não contém unidades de nível imotivado
(só b e c): embora elementares, as suas unidades são convencionadas
por definição que lhes é prévia (também não é defeito, é por isso que ela é
exacta, ignora a polissemia); que as unidades de significação da linguagem
oral e da escrita alfabética, as palavras, são as únicas que são duplamente
articuladas (a, b e c): compostas de fonemas ou letras
sem motivação (por isso as línguas separam os que as falam entre indígenas e
estrangeiros, como as outras inscrições não fazem delas mesmas), compondo-se
em frases que se sucedem em discursos ou textos mais ou menos longos. É nesta
dupla articulação, esclarecida pelo linguista francês A. Martinet, que está
uma boa parte dos segredos, da pujança da linguagem. Como tentarei sugerir.
|
ling. oral [escr.
alfab.]
|
escrita
matemática
|
música
|
imagens
|
composição
|
discurso
|
ø
|
melodia
|
ø
|
unidades de
sentido
|
frases
|
equações
|
frases musicais
|
ø
|
unidades de referência
|
palavras
|
números e outros caract.
[medidas]
|
ø
|
imagens
|
unidades
imotivadas
|
fonemas
[letras]
|
ø
|
‘notas’
|
ø
|
Comutação
linguística e conotação semiótica
8. Tentei mostrar na tese a que aludi[5], jogando entre Saussure e Derrida, este permitindo esclarecer algumas
das aporias daquele, como o aforismo saussuriano célebre “na língua não há
senão diferenças, sem termos positivos” - o qual diz a imanência de que aqui é
questão - resulta da operação essencial da linguística estrutural saussuriana,
a comutação (Hjelmslev). Para se saber se tal troço
de linguagem (desde o fonema ou letra até à frase) é uma unidade linguística,
há que o segmentar duma frase (com sentido na língua) onde se manifeste e
substitui-lo por outra (com sentido também, mas alterado): a comutação
(segmentação + substituição) faz-se sem ter em conta quais são os sentidos em
questão, apenas exige que haja sentido. Ela implica assim uma redução
fenomenológica, uma ‘epoché’ husserliana, dos sentidos: e portanto dos
eventuais referentes como das eventuais intenções do falante ou escrevente, o
que é consentâneo com a propriedade estrutural das inscrições de romperem com o
contexto da sua fabricação (§ 6): quem ouve (ao telefone, por exemplo) ou lê
(um autor antigo) não tem acesso nem a esses referentes nem a essas intenções,
só ao discurso que ouve, ao texto que lê. Saussure tinha de facto retirado a
coisa referida da definição clássica do signo (de origem nos Estoicos) assim
como o sujeito falante da língua. Condição da autonomia da linguística como
ciência, quer em relação à Acústica e à Fisiologia da fonação e da audição,
quer em relação às psicologias e filosofias da percepção ou outras. Autonomia
nomeadamente da Fonologia, da Sintaxe-Morfologia (Hjelmslev) e, a caminho, da
Sintaxe-Semântica (M. Gross).
9. Mais complicada parece ser a questão das
semióticas textuais, quer de corpus, quer de tal texto (à maneira do admirável
S/Z de R. Barthes)[6], já que aí a comutação não é mais possível. Trata-se de ler um texto
na maneira como as suas frases sucessivas se articulam em códigos (alguns
paramétricos, outros sequenciais), estes sendo detectados pelo relevar
paciente das conotações, dos reenvios que tal troço de texto faz a outro,
dessas correlações como diferenças imanentes ao texto. Mas para detectar essas
conotações, há que fazer intervir a sua competência semântica de leitor (a
distinguir firmemente das “associações de ideias” do leitor analista), e
portanto o seu conhecimento dos usos sociais da sociedade ‘contada’ no texto
(no caso dum romance, por exemplo, ou dum documento histórico), já que é para
esses usos que os códigos remetem. É aonde parece que a imanência textual
deixa de ser possível.
10. Parece. Mas o que a formação dessa
competência semântica exige (fiquemos no caso duma narrativa histórica) é o conhecimento
de outros documentos dessa época, não do referente desaparecido para sempre:
ainda que se trate de imagens de referentes, de testemunhos orais de idosos,
tratar-se-á sempre de ‘textos’ (descrevendo a imagem, registando as vozes) que
se acrescentam ao corpus do texto que está a ser lido, que serão incorporados
eventualmente na análise como citações. Não se sai
nunca para ‘fora’ dos textos. Acrescentarei aliás que a minha experiência de
leitura me ensinou a, garantida a competência de leitura daquele tipo de
textos, é sempre muito mais fecundo não recorrer a esses acrescentos de tipo
testemunhal, mas tentar ler o texto até ao detalhe das suas inúmeras
conotações, até se encontrarem as contradições dos seus códigos (porventura
singulares) e por via delas se encontrar o que levou à sua escrita.
Permita-se-me um exemplo (não é imodéstia, mas elucidação do que Barthes fez).
Em 1981, dirigi um curso de mestrado sobre semiótica e ideologia no
Departamento de Sociologia da Universidade de Laval, no Québec, onde fui
ajudando a ler vários textos, tendo o último sido o mais complexo, um
relatório de Jesuitas do século XVII sobre um ritual indígena duma etnia local.
Depois de ter apresentado a leitura ‘imanente’ (sem saber nada, aliás, do contexto
etnológico preciso) que preparara na véspera em casa, o historiador que tinha
fornecido o texto comentou que me ouvira dizer em duas horas coisas que levara
vários anos de investigação para descobrir. Querem melhor ilustração do
aforismo “não há fora de texto”?
Uma redução
muito fecunda
11. Mas isto não é redutor? Claro que é, a
redução (em sentido fenomenológico) é inerente a qualquer ciência ou
filosofia, a qualquer experimentação (comutativa ou conotativa) ou à necessidade
de definição gnosiológica. Mas a maneira como a gramatologia de Derrida
recorreu à redução fenomenológica de Husserl para dar conta da autonomia da
linguística saussuriana, destacando o ‘ser-ouvido do som’ do ‘som ouvido’,
isto é, da voz concreta, empírica, de quem fala, mostrando como aquele é
fenomenal, estrutural, consistindo em diferenças entre sons empíricos que se repetem como as mesmas em
todas as vozes dos falantes dessa língua (o ‘significante’ de Saussure
define-se assim), essa maneira gramatológica mostra que é a própria linguagem
quem opera no seu próprio jogar essas reduções, dos referentes como das intenções
dos falantes. Com vantagens óbvias. A de poder haver narrativas: podem-se
contar coisas a quem não as viu, pode-se conversar de coisas passadas noutro
lado ou noutro tempo (com referente inatingível ‘directamente’ por quem
conversa). A de poder fazer-se ficção, contar-se o que não se passou como tendo
passado. Portanto, poder-se também mentir, guardar segredo, dissimular as
suas intenções, ser-se livre de o interlocutor não ter acesso ao que se pensa.
Poder aprender-se a falar, aprender coisas que os outros sabem e nós não, só
com sons ou com rabiscos em papel. A redução que a linguagem opera é duma
fecundidade imensa. Como os discos em relação à música, reduzindo a orquesta
que a tocou em tal momento e lugar, como a fotografia e o cinema. Só
imanências, sem ‘fora’ das inscrições.
12. O que é então essa coisa a que os
linguistas chamam referente extra-linguístico? O nome não é bom, porque ‘essa
coisa’ só existe ‘dentro’ do discurso ou texto, se é que este tem ‘dentro’.
Vamos por partes. O que é um retrato da Maria Alzira? É a Maria Alzira. Senão, é um papel com riscos. Não é ela em carne e
osso, claro, mas em referência a ela em tal lugar e momento da sua vida. O
referente dum retrato é o retratado, não nele mesmo mas no retrato. O que é um mapa? É o território no mapa. Da mesma maneira, o referente duma história é o que é contado
nessa história, autêntica, ficção ou mentira. O que se passou de facto é extremamente
complexo, com milhões de detalhes (todas as expressões faciais e movimentos de
membros de cada personagem nas diversas acções, as nuances dos cenários em
móveis, correlações, luzes e perspectivas, sei lá eu) impossíveis de serem
contados. Se houver um referente, só pode ser na própria história tal como é
contada, trazendo alguns elementos mais ou menos essenciais do que se passou nas suas frases e sequências. A esmagadora maioria das coisas que
acontecem não é contada, não é referida. Ora, o que se conta tem como
finalidade referir o que aconteceu, isto é, chamar a atenção para ele, torná-lo
referente. Contar histórias é assim aumentar a nossa experiência vivida por
referentes que não vivemos, aumentar em consequência o que sabemos. A maior
parte das coisas que sabemos, mormente quem foi à escola, foi aprendida por
linguagem, não por experiência. Sem a redução da linguagem, estaríamos
‘reduzidos’ à nossa experiência, no nosso habitat.
13. A dupla articulação da linguagem é uma
dupla economia: com algumas dezenas de sons de que as nossas gargantas são
capazes fazem-se muitos milhares de palavras, com os 4 ou 5 milhares de
palavras que usamos habitualmente, que a nossa memória cerebral consegue reter,
dizemos frases e textos indefinidamente, multiplicando os seus sentidos. Mas
para isso, as palavras mais correntes variam de sentido consoante os contextos
em que ocorrem, de maneira linguisticamente muito regrada: é o que se chama
polissemia. Sendo resultante da dupla articulação, a escrita matemática não a
conhece (por isso é exacta e exaustiva), nem creio que tenha sentido dizer - a
não ser metaforicamente - das notas musicais e das imagens que são polissémicas,
julgando eu também que há algo nelas que se aproxima da exaustividade: se
subentendem o que lá não esteja, será por reenvio (intertextual, digamos) a
outras músicas ou imagens. Na linguagem, pelo contrário, a não exaustividade,
o carácter elíptico do seu referente, é estrutural. Nunca se conta tudo,
escolhe-se sempre o que parece mais pertinente, o resto é deixado ao bom
entendedor, aquele a quem meia palavra basta. Ora, o bom entendedor também é
obra da redução fecunda da linguagem - sem que saibamos como, feliz enigma -,
já que se aprendemos sobretudo do que ouvimos e lemos, a nossa experiência e
talento joga na maneira como isso que aprendemos se liga em nós ao que sabemos
já. A fecundidade revela-se na maneira como, ao aprender-se a falar, as
palavras que nos vêem dos outros vão gerando no que aprende, na sua voz que repete essas palavras e sendo eventualmente corrigido, os sentidos
do Mundo que os outros dizem, pensam, repetem, de certa maneira, os referentes
dos outros, e assim ensinam, com o falar e o pensar, a olhar e a manejar, a
usar os usos sociais[7].
Retorno a
Parménides: fora há ‘nada’ e há ‘tudo’
14. “Não há fora de texto” significa assim que
são os textos ou discursos, articulados à aprendizagem dos usos, que dão voz
aos falantes, trazendo-lhes o Mundo como referente a falar, a compreender.
Assim no seu meio social se vão fazendo sujeitos. Um lindo livro de Marlene
Zarader, Heidegger e as palavras da origem (ed.
Inst. Piaget), conta como este analisa o termo grego para ‘dizer’ (legein), próximo aliás do latim legere, ‘ler’,
que tem ligações etimológicas a vários verbos em ‘-lher’ (colher, acolher,
recolher, escolher). O primeiro sentido de legein (e
de legere) é justamente ‘colher’, como flores num
jardim que se acolhem e recolhem para fazer um ramo, e depois o de estender
diante[8], em posição: também falar é acolher e recolher, nas palavras escolhidas,
as coisas a dizer, colocadas depois, reunidas, em proposições para outrem. Ora,
Heidegger sublinha que também o que fala faz parte
do que assim se acolhe e recolhe: isto é, o dizer acolhe, recolhe e propõe
quer o (ente) que é dito quer o (pensar) que diz. Assim leio o que dizia Parménides:
“Pois que o pensar e o ser é o mesmo [...] têm que ser o dizer, o pensar e o
ente”. Também o escrever, acrescentou Derrida. E portanto, por minha conta e
risco, o musicar, o pintar ou fotografar, o matematizar.
15. Portanto, não há ‘nada’ fora do texto, que
ele recolhe tal fora. Mas o que é este jogo de diferenças fónicas ou gráficas,
este mesmo que se repete em vozes ou grafias
não-idênticas? O que é uma diferença? Nada de substancial, não é ente nem
gente. As inscrições inscrevem-se em matérias que elas não são, em substâncias
que se podem estragar, por exemplo, de que elas são indissociáveis (dos sons,
das superfícies) mas de que a redução fenomenológica as distingue, para as
poder analisar fenoménica ou estruturalmente, as enviar algures. As diferenças
que se inscrevem em substâncias existentes, não têm ‘existência’, nem
‘essência’, não são da ordem dos ‘entes’, como o são essas substâncias ou
matérias: neste sentido estas são ‘exteriores’ ao texto, de diferenças feito, o
tal que é ‘nada’. Então, qual é a condição de tudo o que escrevi, de que “não
haja fora de texto”? Tudo o que existe substancialmente neste mundo, tudo
existe fora dos textos[9], é desse tudo que existe ‘substancialmente’ que os textos falam
‘não-substancialmente’, incluindo da nossa subjectividade corporal: que nos
permite falar porque textos nos ensinaram, deles e doutros usos e costumes
fomos feitos gente.
Admirável
Maurice Gross
16. Este retorno a Parménides manifesta-se,
embora com maneiras de ler diferentes, no facto de a actividade destes dois
filósofos ser predominantemente de esclarecimento de sentidos de palavras, de
expressões, de pedaços de textos, etc.: aí encontram o pensamento que fez /
faz o Ocidente, nos textos e nas línguas (Heidegger sendo aliás conhecido por
ter privilegiado a grega e a alemã como eleitas para a filosofia). E
deconstruir é ainda uma actividade textual da própria civilização.
17. Porque é que houve então a perturbação do
jovem Guerreiro perante a imanência? Julgo que resultou de a ter recebido na
evidência filosófica da separação entre o sujeito e
o objecto[10] que todos recebemos no liceu, ‘transcendentes’ (o Ego transcendental
e o númeno kantiano, por exemplo) e deixa a linguagem num qualquer entre ambos:
‘meio’, ‘instrumento’, ‘expressão’ de representações, sei lá. Ora, foi contra
essa separação (contra essa ‘bêtise’) que se levantaram as filosofias
estruturais dos anos 60 e 70, na sua inédita aliança com as ciências sociais e
humanas (bem como de outra maneira a fenomenologia de Husserl e Heidegger), propondo
a imanência da linguagem como o lugar aonde filosofias e ciências se elaboram,
aonde encontram as suas problemáticas. Daí que a linguística de Saussure,
recebida como a primeira grande disciplina social e humana a ter encontrado uma
metodologia rigorosa que lhe garantia um estatuto científico inédito, tenha
tido um papel pioneiro de que se inspiravam, melhor ou pior, as tentativas das
outras disciplinas. Maria Alzira, como muitos outros entre nós, ainda vivia
dessa euforia. Mas foi chão que deu uvas. E o mais triste sintoma da
decadência posterior do pensamento estrutural foi o recobrimento dessa
magnífica linguística por uma técnica de tradução de línguas a partir do inglês[11] que, por exemplo, ignora a dupla articulação da linguagem e toma como
modelo implícito, à maneira da lógica formalizada, a escrita matemática!
Tentarei para terminar, e mostrar que não se trata aqui de nostalgias, algumas
sugestões da fecundidade possível da linguística saussuriana.
18. Para isso será necessário evocar o mais
espantoso de todos os textos linguísticos publicados no século XX depois do Curso
de Linguística Geral de Saussure que abriu o
paradigma: Méthodes en syntaxe: régime des constructions complétives, Hermann, 1975[12], de Maurice Gross, prematuramente falecido há pouco tempo. Espantoso
por duas razões principais que coroam a grande proposta saussuriana. 1) Pela
primeira vez, desde os Alexandrinos, se escreveu um texto de gramática ou
linguística sobre os verbos duma língua humana em que eles são tratados, não a
partir de alguns exemplos, mas de forma tendencialmente exaustiva: ele
analisa nada mais nada menos do que 3000 verbos[13], através das suas propriedades de aceitar argumentos (sujeito e complementos
preposicionais), classificando-os em 19 tabelas, com alguns verbos, por ex.
‘aller’, ‘donner’, ‘faire’, ‘avoir’, entrando em mais do que uma (ou seja
definindo-se as respectivas grandes polissemias). 2) Ora, algumas destas
tabelas são de verbos semanticamente aparentados (verbos de “passagem dum lugar
a outro”, de “causativo de movimento”, de “juízo de valores”, etc.). Ora, se
fôr possível prosseguir a afinação das análises em ordem a conseguir chegar a
tabelas semânticamente homogéneas[14], ter-se-á encontrado uma maneira rigorosa de articular a Sintaxe e a
Semântica dos verbos numa só região, como Hjelmslev já fizera para a
Morfologia e a Sintaxe[15]: foi a isso que Gross chamou Léxico-Gramática.
Comparação de
antropologias através das línguas
19. Estas análises têm-se revelado extremamente
interessantes em processamento de textos - mormente para tradução automática
entre línguas, que, ao contrário do que julgam os puristas, é fortemente
desejável para se conseguir que as línguas humanas resistam à sua creolização
pelo inglês -. Mas poderão vir a
revelar outras possibilidades, se fôr verdade que a imanência das línguas[16] lhes dá a pujança de lhes permitir: a) inscreverem-se em criancinhas
e torná-las sujeitos de fala e saber, b) que podem por isso entender e formular
em discursos inúmeros aspectos da paisagem do Mundo da sua tribo (hoje globalizando-se,
donde a importância da tradução). Para além das trivialidades habituais sobre
os ‘russos’, os ‘franceses’, os ‘americanos’ (se negativas, são sintomas de
racismos, se positivas, de servilismos) poderia ter-se acesso a comparações
entre formas diferentes que elas permitem de verem / serem o Mundo (a célebre
tese de Sapir-Whorf). Do ponto de vista da separação clássica entre pensamento
e mundo, esta tese é aberrante: do ponto de vista que aqui se defende, há que
precisar justamente o seu não-determinismo, já que uma língua ao inscrever-se
num humano, inscreve este como falante, isto é, inscreve os mecanismos de
autonomia falante de que as regras sociais da língua fazem parte, apagando os
outros que lhes ensinam; ou seja, inscreve-o, com maior ou menor talento,
como livre, capaz de segredo, de estratégia, de pensamento[17].
20. Ora, mesmo em línguas muito próximas pode
haver diferenças intrigantes. Seja, com a liberdade que é permitida aos
‘curiosos’, uma lista de verbos portugueses com a mesmo sufixo em ‘-ecer’, que
me ocorreu há algumas semanas, que eu situaria em torno de ‘acontecer’: ‘aparecer’, ‘esquecer’, ‘esclarecer’, ‘merecer’, ‘adormecer’,
‘adoecer’, ‘estremecer’, ‘enrouquecer’, ‘enlouquecer’, ‘fortalecer’,
‘enfraquecer’, ‘emagrecer’, ‘enrijecer’, amolecer’, ‘enfurecer’, ‘aborrecer’,
‘entristecer’, ‘estabelecer’, ‘abastecer’, ‘prevalecer’, ‘encarecer’, ‘enriquecer’,
‘empobrecer’, ‘embranquecer’, ‘aquecer’, ‘arrefecer’, ‘fenecer’, ‘falecer’,
‘perecer’, ‘apodrecer’, ‘amanhecer’, ‘entardecer’, ‘anoitecer’, last but
not the least, ‘obedecer’; todos me parecem envolver
uma significação que me arriscaria a caracterizar como ‘mudança de estado que
acontece a algo ou alguém’; ‘obedecer’ seria o estado de quem está sujeito à
mudança de estado que lhe mandarem, o que permite abordar esta significação
através do sentido etimológico de ‘sujeito’: enquanto que é tradicional a
concepção que faz do ‘sujeito’ da frase um ‘activo’, um ‘causador’ (já Nietzsche
se queixava disso)[18], estes verbos supõem, quando o têm[19], um ‘sujeito’ nem activo (acontece-lhe algo) nem passivo (nesse
acontecer, ele muda de estado), como sugere a etimologia do seu correlativo
clássico, o ‘objecto’ como ‘objecção’. Ora bem, julgo saber suficientemente
francês para poder constatar que nessa língua os verbos que traduzem estes
nossos, que nem sempre os há, não têm entre eles nenhum parentesco deste género,
que os agrupe. Haverá na literatura linguística portuguesa alguma análise
deste sufixo e das distribuições destes verbos[20], permitindo esclarecer melhor este sentido gramatical em torno do
motivo filosófico do ‘acontecimento’, tão caro a Heidegger, Derrida, Deleuze?
Questão de linguística comparada: os equivalentes franceses terão também esta
mesma ‘propriedade’ sintáctico-semântica que postulei hipoteticamente?
21. Mas sem dúvida que as relações sintácticas
reveladas pelas tabelas de Gross são bem mais interessantes e dignas de serem
comparadas entre várias línguas (mormente os tais verbos locucionários que
referi em nota ao § 18), a detectar-lhes eventuais coincidências para certo
tipos de verbos e variações para outros, o que seria certamente significativo
na medida em que se conseguisse formalizar tais comparações: entre línguas latinas,
entre germânicas, entre germânicas e latinas, indo-europeias em geral, etc.,
até chegar às línguas das grandes civilizações asiáticas. Da mesma maneira,
seria interessante encontrar regularidades e irregularidades nas maneiras de
se conjugarem os tempos verbais, os conjuntivos, os imperativos. No que diz
respeito às maneiras de se construir o ‘eu’ e o ‘tu’ (quando eles existem),
talvez se possa encontrar o peso da ‘alma’ que a filosofia grega e o cristianismo
introduziram nas línguas ocidentais e também os constrastes, quer com os
cristãos ortodoxos, quer com os muçulmanos, isto é, regularidades e
irregularidades entre línguas que disseram durante séculos religiões
monoteistas absolutas. Então os grandes constrastes entre estas línguas e as
línguas que ignoraram a alma e o Deus que as conhece no seu íntimo, que não
têm a noção de ‘absoluto’, poderia ajudar a compreender as dificuldades de
relação e compreensão entre Europeus e Asiáticos.
22. Análises austeras de muito abstractas,
provavelmente, só possíveis depois de infindáveis análises (entretanto
necessárias para as preciosas traduções automáticas), talvez alguns dos nossos
netos, Maria Alzira, possm vir a saber delas e a compará-las com as literaturas
comparadas em que você é Mestra, e que eu ignoro.
[1] Como os ‘meios de comunicação social’. A
que os americanos chamam ‘mass-media’ (eles martelam as massas como ninguém, e
toda esta minha gente quer aprender com eles a martelar-nos) e os pindéricos
que não sabem que ‘media’ é latim mas (não) sabem que quem sabe diz que (em
latim o neutro plural do nominativo ‘-um’ é ‘-a’) se deve dizer ‘-a’ e não
‘-as’, e quem sabe parece não saber que do latim o português fez o plural da
terminação ‘-a’, em regra, por ‘-as’ (como poeta fantasma, jornalista, vigarista),
em inglês é que não! E depois, e é o cúmulo, mas toda a gente faz isto (e pode
ser que se eu mando um texto para um jornal ou uma tipografia também me
corrijam!) a subordinação duma língua latina à maneira anglófona de dizer
palavras latinas leva a que se escreva ‘media’, com aspas, a dizer que é um
termo inglês (os brasileiros vão ao ponto de escrever mídia, sem aspas!). O que
é que será preciso para explicar a esta gente sabiamente colonizada que devem
escrever os médias, sem aspas nenhumas, como qualquer língua latina que se
preze. Que irritação!
[2] Quando Teresa d’Ávila ou Hadjwich falam assim, estão encontrando uma
linguagem para as contar, essas experiências. “[Teresa d’Ávila] só escreve
porque as palavras lhe faltam” (M. Allendesalazar, Thérèse d’Avila, l’image
au féminin, Seuil, 2002, p. 73).
[3] “[...] Pode-se chamar ‘contexto’ toda a ‘história-real-do-mundo’, na
qual este valor de objectividade, e mais geralmente ainda o de verdade,
adquiriram sentido e se impuseram. [...] Uma das definições do que se chama
desconstrução seria a tomada em conta deste contexto sem bordo, a atenção mais
viva e mais larga possível ao
contexto e portanto um momento incessante de recontextualização. A frase, que
para alguns se tornou uma espécie de slogan, em geral tão mal compreendido, da
desconstrução (“não há fora-de-texto”), não significa senão que não há
fora-de-contexto. Sob esta forma, que diz exactamente a mesma coisa, a fórmula
teria sem dúvida chocado menos” Limited Inc., Galilée, 1990, p. 252.
[4] “Discursos, números, músicas, imagens. Cérebro, livro, computador”, in
www.educ.fc.ul.pt./hyper
[6] Que tentei prosseguir nas minhas Leituras de Aristóteles e de
Nietzsche, A Poética. Sobre a Verdade e a Mentira, F.
C. Gulbenkian, 1994. Ver a teorização dessa abordagem in “Semiótica e Ciências
Sociais”, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 10, Coimbra, retomado em apêndica a A Conversa, Linguagem do
Quotidiano. Ensaio de Filosofia e Pragmática,
Presença, 1991.
[7] Há duas páginas verdadeiramente notáveis de Derrida em La voix et
le phénomène, P. U. F., 1967, pp. 88-89, técnicas
demais para as citar aqui, em que ele analisa como, no interior desta redução
do empírico (no ser-ouvido), se continua a operação de ouvir-se falar - a
auto-afecção pura da voz - com as idealidade dos sentidos das palavras,
tornando possível a universalidade: é a possibilidade do que se chama
subjectividade.
[8] Recolher-se no ‘leito’, estendido, é da mesma família semântica (como
‘lit’, em francês, sugere melhor).
[9] “Não há senão texto, não há senão fora-de-texto, ao todo um “prefácio
incessante’ que dá cabo [déjoue] da representação filosófica do texto, a
oposição tradicional do texto ao seu excesso” (Derrida, La dissémination, Seuil, 1972, p. 50).
[10] Lembro-me de, nesses tempos, ter perguntado a um colega que ia dar um
curso sobre o “problema fundamental da filosofia em Hegel”, o que era essa
problema e dele ter-me respondido com ar de evidência: “o problema sujeito /
objecto”.
[11] Língua excepcional pela sua quase ausência de morfologia, o que faz
dela uma útil língua de contactos internacionais.
[12] Ver texto citado na nota ao § 8, Q133ss.
[13] Que corresponderão a 3/4 dos verbos franceses presentes em dicionários
de bolso. A leitura de E. Ranchhod (org.), Tratamento das Línguas por Computador.
Uma introdução à Linguística Computacional e suas aplicações, Caminho, 2001, incluindo um capítulo de M. Gross, a cuja escola
Ranchhod pertence, mostra de forma prática como é possível tratar textos de
forma automática, isto é simplesmente formal: na sua imanência (embora com alguns
limites, mormente em literatura poética com as suas transgressões gramaticais).
Esses métodos dependem essencialmente do grau de exaustividade dos dicionários
electrónicos que utilizam. Na p. 131, transcreve-se a primeira tabela do livro
de 1975.
[14] Como tentei sugerir na tese citada, a partir dos trabalhos dum
linguista russo, J. Apresjan.
[15] À maneira tosca dum amador, esbocei, no texto sobre a Conversa
citado (nota a § 4), um quadro de semântica distribucional-pragmática para os
verbos locucionários e performativos (que ‘fazem’ algo de social, a par do que
‘dizem’).
[16] O serem imotivadas, nas diferenças entre elas, em relação a factores
fisiológicos, ambientais, sociais.
[17] Contra uma maroteira do meu mestre Barthes, a língua não é fascista,
dá, bem pelo contrário, mecanismos de resistência. Mas é certo que os fascismos
generalizam-se pelas suas linguagens colectivizantes e estupidificantes.
[19] ‘Amanhecer’ e congéneres são mais impessoais do que o exemplo gramatical
clássico ‘chover’, já que com a regularidade quotidiana da rotação da terra.
[20] Já agora, aqui entre nós que gostamos das palavras, haverá linguista
que me explique esta espantosa conjunção, de tipo ‘lógico’ segundo parece, ‘já
agora’, feita de dois advérbios temporais? Eis o que julgo compreender: que ‘já
que’ (‘já que falas nisso’) e ‘agora’ (‘agora, se estás de acordo com o primeiro
ponto, podemos dizer que...’) são conjunções desse tipo em que se entende a
temporalidade: no primeiro caso, ‘já’ parece referir a fala anterior, no segundo a conjunção suporia o sentido do advérbio como índice de
locução. Se ‘já’ em ‘já agora’, se refere possivelmente à fala anterior (no
caso desta nota, a referência à literatura linguística como esclarecedora),
continua enigmático para mim como é que o índice de locução ‘agora’ se liga ao
‘já’ para criar uma espécie de ‘acontecimento lógico’ numa associação de
ideias de que afastará o carácter arbitrário.
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