1. As sociedades humanas parecem ser
regidas por uma lei de rivalidade a todos os níveis, os superiores eclodindo
mesmo em guerras. O antropólogo francês Pierre Clastres explicou que as
sociedades a que chamamos ‘primitivas’ que se depararam aos navegadores,
conquistadores, comerciantes e missionários ocidentais, sempre foram descritas
como fortemente guerreiras em relação às suas vizinhas, as trocas cingindo-se
adentro das fronteiras. As sociedades agrícolas por sua vez tiveram guerreiros
como castas ‘nobres’ dominantes. Mas também a níveis internos, cidades e
regiões, onde quer que haja ‘estranhos’ aos costumes locais, mas mesmo
familiares, entre irmãos e herdeiros, entre vizinhos de bairro, predominam
sempre rivalidades de tipo diferente, como se as alianças sociais suscitassem
delas mesmo irritações mais ou menos permanentes (‘quem pode mais?’). Esta lei
da guerra é uma espécie de deslocamento
da lei da selva que opõe os
animais carnívoros aos herbívoros e estes às plantas como condição de
sobrevivência, já que só alimentando-se de vivos se conseguem as moléculas
complexas à base de carbono de que são feitas as células (as plantas recebem o
carbono da fotossíntese) e justifica que as anatomias dos animais ganhem em
músculos e astúcias quanto mais crescem as espécies. Assim fortes e astuciosos
os humanos. Quando deixaram de ser canibais, sobrou-lhes apenas a guerra. Eis
onde reside o velho problema do mal, da violência.
Ver Da ben(mal)dição: porque é que há Mal?
2. Qual a sua ‘origem’, como se
reconstitui constantemente? Creio que é no próprio processo da aprendizagem dos
usos de cada tribo em que crescemos a partir de outros, em geral mais velhos,
que se apagam progressivamente para que o aprendiz ganhe autonomia. Todo o uso,
de linguagem nomeadamente, é relacional aos outros e sucede com frequência que,
no processo de recompensa e castigo que fomenta as aprendizagens, a vontade de
aprender ganhe o sentido também de ser melhor do que os outros ao lado, o mais
hábil e reputado, o capaz de ocupar os melhores lugares. Aos vários níveis
sociais, esta rivalidade de querer ser melhor e mais forte instaura a lei da
guerra que se pode reconhecer com
facilidade à nossa volta, lendo jornais ou vendo televisão. Hoje ainda há
guerras aqui e ali mas as ‘grandes’ guerras do século XX parece difícil que
voltem a haver, já que é ao nível económico – concorrência e competitividade –
que ela hoje se trava, os nobres guerreiros substituídos pelos burgueses
capitalistas na dominação social.
3. Também as religiões holísticas
desapareceram, como os fundamentalismos minoritários atestam os resquícios
delas, substituídas pela escola obrigatória (isto é, holística) e pelos médias.
Ora o futebol, e outros desportos em alguns países menos futebolísticos, parece
ser um sucedâneo quer da lei da guerra quer das religiões. Da primeira, ele tem
a competição como regra principal que serve para que haja campeões e equipas
que o querem ser, mas com a vantagem de essas guerras serem organizadas com
regras vigiadas por árbitros. Da segunda, ela tem a paixão clubística que se
transmite em geral por parentesco e se vinca a ‘herois’, mas que é capaz de envolver vidas poucos
interessantes e dar-lhes um ‘sentido’ que de outra maneira poderia facilmente
descambar em bebida ou droga; tem por outro lado as suas liturgias anuais, os
seus campeonatos e outras taças entre clubes, além das selecções nacionais,
propícias a um certo patriotismo que vai faltando noutras dimensões cívicas e
políticas. Se tiver razão, não há que barafustar contra o excesso da violência
no futebol: não desejável, ela faz parte da competição, da paixão de ganhar.
Mais vale violência organizada e com regras, que bem sabemos como a falta de
controle das competições financeiras tem consequências terríveis sobre todos
nós.
Público, 11 / 07 / 2014
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