sábado, 8 de março de 2014

O pensamento das Mulheres


texto inédito com alguns anos, que foi resposta a uma pergunta duma jornalista do D. Notícias, que utilizou em seguida o que quis em artigo seu (julho 2005)

1. Há que completar a questão: ‘será que as mulheres pen­sam de maneira diferente dos homens?’ É esta a questão que está em aberto e para a qual as respostas, necessariamente plurais, vão continuar por várias gerações, creio. Sem este acrescento – com a pressuposição de que os homens pensam, e então as mu­lheres? – a pergunta seria ignóbil.
2. Depois há que desconfiar das categorias ‘mulheres’ e ‘homens’: um camponês e uma camponesa, supondo-os inteligen­tes, estão mais perto um do outro no pensar deles do que do seu ‘par de sexo’ de um casal de médicos, também supostos inteligen­tes, e estes igualmente.
3. Em seguida, o que é que se entende por ‘pensar’? Se se lhe der um sentido razoavelmente exigente, o de inventar pensa­men­tos que venham a ter futuro, então quase ninguém pensa, nem eu nem você, e aí não se sabe se o sexo terá algum significa­do. Se entendermos ‘pensar’ em sentido da vida quotidiana, de capacidade de ajuizar e decidir nas dificuldades inéditas que ela ponha, julgo, da minha experiência e observação e do que leio em livros e vejo em filmes, que facilmente as mulheres são mais es­pertas e rápidas do que os homens, talvez porque foram obriga­das por uma longa tradição patriarcal a serem manhosas para le­varem a água ao moinho de­las: muitos provérbios sublinham essa manha, que por vezes até ajuda aos maridos no campo deles. Mas não é sempre assim, também se encontra o contrário.
4. Se viermos enfim à questão da escrita literária, das artes, das ciências ditas duras, das matemáticas, a primeira constatação a fazer é, parece-me, que as mulheres foram sistematicamente arredadas delas durante séculos e ainda não deu tempo para se criarem tradições femininas nesses sectores. Ora o que chamamos pensa­mento implica essencialmente tradição e sua aprendizagem (aprende-se a pensar lendo e ouvindo pensamento), e esta ainda se faz em grande parte por género, entre mulheres, entre homens. A educação mixta é muito recente em todo o mundo ocidental, os primeiros frutos dela têm levado a maioria das mulheres para os campos intelectuais mais adequados às tradições femininas, como se conclui do tipo de profis­sões que se têm feminizado mais rapi­damente. Nas profis­sões que mais têm resistido, começa a haver mulheres que se revelam profissionais de valor mas que são ainda minoritárias, o que lhes dificul­ta muito ganhar mestria no pensar. Por isso, a questão está aberta às gerações fu­turas: elas mostrarão se vai continuar a ha­ver carreiras intelectuais predo­minan­te­mente femininas e outras masculinas.
5. Dito isto, a questão mais difícil é a das diferenças. Por exemplo que sem dúvida você conhece melhor do que eu, há es­critoras que reivindicam uma escrita feminina e outras que se lhe opõem, há quem diga que as escritas de Proust, Bernardim Ribeiro e outros homens são femininas. Se se quisesse pôr a (invenção da) mate­mática num pólo (de razão) e a poesia no outro (de letra) e distri­buir homens e mulheres segundo esses pólos, encontram-se tam­bém muitos homens do lado de cá, como sem­pre foi, mas também muitas mulheres boas ensaistas a revela­rem-se tão incapazes de poesia como muitos homens.
6. Escrevi no texto que me citou, a propósito da Luce Irigaray, que as questões que ela colocou nos seus primei­ros tex­tos – justamente sobre a feminidade e a sexualidade femi­nina – me resistem muito fortemente: elas levar-me iam a crer que cer­tas regiões do pensamento ou certas maneiras de as abor­dar po­derão ser onde esta diferença melhor se revele. Mas não estou certo de que não se trate apenas de defeito meu. Há mulheres fi­lósofas que também lhe resistem, a tomam por ‘essencialista’, isto é por defensora duma oposição essencial entre os dois sexos. Não julgo que haja posição neutra que permita decidir.   

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