A propósito do livro
Boaventura de Sousa Santos, Se Deus fosse um activista dos direitos
humanos, Almedina, 2013
1. Comprometi-me, face ao estimulante
prefácio deste livro de título bizarro, a comentá-lo se me suscitasse a isso.
Não se trata em todo caso duma recensão, mas a tarefa é delicada demais. Por um
lado, o autor põe o seu trabalho de sociólogo alter-mundialista ao serviço duma
questão extremamente importante e extremamente complexa, como ele sabe e
repete, e devo dizer, não só que me parece muito conseguida aos meus olhos de
profano nestas questões e sem desacordos significativos em relação às suas
análises[1],
como me senti interpelado no inacabado duma obra que publiquei há 40 anos (Lecture
materialiste de l’évangile de Marc. Récit, pratique, ideologie, Cerf, 1974), por ter tomado outros rumos
impostos (mas com gosto meu) por uma carreira universitária inesperada, a
leitura revelando como estou fora destas questões. Por outro lado, eu tenho
trabalhado numa perspectiva filosófica diferente da que BSS pressupõe[2]
e a distância entre ambas saltou-me a cada página, sem todavia que a crítica
epistemológica da posição sociológica de BSS possa ajudar, por insuficiência
minha, em questões tão importantes para grande parte da população mundial.
2. A questão é a de saber articular
as lutas de libertação das diferentes gentes oprimidas (social, política, sexo,
raça, colonização...) com os movimentos teológicos e espirituais que nelas se
manifestam a favor dessa libertação, e bem assim despistar os fenómenos religiosos
fundamentalistas que jogam a favor da opressão[3].
Limitar-me-ei pois ao ponto que me parece ser de divergência (sendo que BSS tem
obra vasta que conheço mal), a maneira como fala de “monoculturas rivais”, a do
Ocidente e as das sociedades não ocidentais, com o exemplo do colonialismo (p.
76-80), achando que “a força das novas concepções raramente residiu em si
mesmas, mas antes no poder daqueles que as queriam impor” (p. 78). É o termo monocultura que me parece discutível, o ‘mono’ fazendo com
que a cultura apareça aqui e ali como instância outra do que o económico, o
politico e o social, à maneira como em antropologia se fala de simbólico e o
marxismo falava de ideologia, isto é, como uma instância relativamente autónoma
da sociedade. É entre monoculturas que se propõe a possibilidade de confronto
ou de diálogo consoante, como se se tratasse do mesmo tipo de autonomia no
Ocidente e em todas as sociedades não ocidentais. De facto, excepto
possivelmente na questão dos direitos das mulheres e do feminismo como
movimento de libertação, já que o patriarcado parece ser universal, há uma
diferença grande entre a maneira como as sociedades asiáticas de grande
civilização entraram em contacto com o Ocidente e como o fizeram as islâmicas,
africanas e latino-americanas. Tanto o Japão como a China, e quão diferentes
são, adoptaram as técnicas e as ciências duras do Ocidente e trataram de fazer
a sua própria ‘libertação’, capitalista mas seguindo as suas tradições (ver as
minhas tentativas de pensar as diferenças entre a história ocidental e uma
civilização asiática: o contraste que há entre o alfabeto e a definição, por um
lado, e a escrita chinesa, por outro[4];
ou entre o Ocidente e o Japão, sociedade não monoteísta[5]).
3. O que quereria sublinhar é
argumentado no texto sobre a escrita chinesa. O que diz a razão da proeminência
ocidental enquanto único conjunto de sociedades que produziu a modernidade tem a ver justamente com a sua história relativa
ao saber, que BSS trata como se fosse uma sabedoria equivalente à das grandes
literaturas asiáticas ou islâmicas. A invenção da definição pela escola socrática de filosofia gerou algo de
inédito, um tipo de texto gnosiológico, sem a morfologia dos verbos narrativos,
composto de argumentos sobre essências intemporais e incircunstanciais,
arrancadas ao contexto das opiniões e narrativas. É aliás contra isso que joga
a necessidade reclamada por BSS de contextualizar as questões de libertação,
toda a problemática moderna da relatividade implica redobrar a atenção aos
contextos. A outra grande etapa (em que o cristianismo teve um papel
historicamente importante, apesar de vir a pagar o preço da secularização) foi
a invenção do laboratório científico que introduziu na história gnosiológica um saber em que a matemática e
técnicas convencionais de medição intervêm para produzir conhecimento, o que
veio a permitir a invenção de máquinas, de transformações químicas inéditas, da
electricidade, daquilo que o termo técnica costuma resumir. Ou seja, a tal ‘monocultura’ ocidental teve um papel
único na história: conhecimento que transforma os usos sociais, reformula o
social e por arrastamento os seus paradigmas de organização económica e politica.
4. Ora, é esta transformação exuberante que os
médias actuais dão em espectáculo às gentes que não partilham dos benefícios
dela, quer as classes trabalhadoras das sociedades ocidentais, quer as
populações das outras sociedades que se descolonizaram em vista de virem a
beneficiar dessa transformação. É este espectáculo mediático que é o grande engodo
do capitalismo imperial. Se for certo que a religião é uma estrutura social holística ancestral, que releva de todos os antepassados e liga toda a população, pode-se pensar que nas sociedades
cosmopolitas modernas secularizadas foi a escola obrigatória que se tornou
holística em vez da religião privatizada; em seguida os médias em geral, desde
os livros e jornais aos das imagens e músicas, constituem o laço social da
secularização, constituem o novo “ópio do povo” (como os fundamentalistas
americanos compreenderam despudoradamente). Embora sem deixar de suscitar
‘espiritual e politicamente’ os activistas de libertação de que BSS dá conta,
incluindo uma bibliografia imensa e variadíssima.
5. Quando se diz que “os três princípios da
regulação social moderna ocidental são o Estado, o mercado e a comunidade” (p.
120), não se percebe como é que este terceiro termo faz série ou paralelo com
os outros dois, que são efectivamente transversais de regulação (de trocas e de
ordem) às várias estruturas sociais. A “comunidade” consistirá na rede das
‘famílias’? Se for o caso, há que dizer que ela é trabalhada justamente pela
escola, que recebe as crianças das famílias para as fornecer com saber mais ou
menos adequado às instituições onde se trabalha, e que os médias de massas são
as famílias que visam sobretudo: não ‘a comunidade’ mas a escola e os médias, com bem e com mal – a que ninguém escapa ainda
que em graus e aspectos diferentes –, serão pois o terceiro grande laço social
com o Estado e o mercado, os três laços transversais e holísticos que tornam
tão difícil a libertação, tão problemática a eficiência dos direitos humanos.
6. A questão então a pôr é a do porquê desta
dificuldade. Nós nascemos sem nenhum saber, a nossa autonomia virá do saber
que aprendermos dos outros e se faça nosso[6]. Há neste processo que dura a vida toda um enigma
fundamental, já que é o saber dos outros, de muitos outros, heteronomia, que se tornará saber nosso, autonomia: o que implica que os ‘outros’ que nos ensinaram se apaguem na nossa memória como condição de falarmos e pensarmos e amarmos por nós
mesmos. Chegar a adulto é uma primeira ultimação deste processo que nos permite
ser cidadãos livres e actuantes na nossa sociedade. Ora, encontramos nos
evangelhos cristãos três alternativas de escolha espiritual – “Deus ou o dinheiro”
(Mt 6.24, Lc 16.13), “Deus ou César” (Mc 11.17, Mt 22.21, Lc 20.25), “Deus dos vivos ou Deus dos mortos” (Mc 12.27, Mt 22.32, Lc 20.38)
– que são perfeitamente actuais (não é necessário ser-se crente, leia-se a
justiça e o amor do próximo como sentido bíblico da palavra ‘Deus’) e visam os feitiços das três instâncias ou laços de regulação social.
Porquê chamar-lhes ‘feitiços’ sociais (termo português onde Marx foi buscar o
‘fétiche’)? Porque têm uma eficácia nos nossos desejos que justamente não se
apaga, porque constantemente
actualizados pelo jogo global dos médias, desviam os desejos para querer ganhar
cada vez mais, para o poder (e o medo em consequência) e para o deslumbramento
dos ‘deuses’ mediáticos, jogam como uma espécie de ‘aspirador’ de desejos heteronomizando
cada um, impedindo as autonomias que poderiam criar comunidade em redor como
libertação social. É uma eficácia anónima, interveniente no quotidiano sem
necessidade da força de polícias da parte do capital e do poder, basta-lhes,
além das burocracias integradoras, o jogo dos espectáculos, a força imensa dos
luxos e sorrisos a fingir de alegria. Mas acrescente-se que estes feitiços
também enfeitiçam e heteronomizam os ricos e poderosos, que por regra não têm
vidas invejáveis, como de fora pode parecer.
7. Ainda um ponto de discórdia parcial quanto à
noção de “injustiça cognitiva” que me parece despropositada, dado o § 3 acima.
A “monocultura ocidental” seria “injusta”, em sentido equivalente às injustiças
de exploração social, de sexo e raça e colonização, relevaria de algo que se
acrescenta à ‘cultura’ como força extra, armada ou política, que se imporia a
“culturas inferiores”. Creio que a afirmação é defensável em relação à missionação
católica e protestante que acompanhou a colonização, clero de mãos dadas com os
colonos, e devastou culturalmente as sociedades autóctones, os indígenas americanos
tendo sido dizimados[7] no primeiro século de conquista das Américas por
portugueses e espanhóis e uma boa parte dos africanos escravizados e emigrados
à força[8].
Mas a essa missão, monoteísta entre Bíblia e filosofia grega, resistiram
claramente islâmicos, hinduístas, budistas, confucionistas, as respectivas
literaturas pedindo meças às ocidentais, o que indica os limites duma tal noção
de “injustiça cognitiva”. Ora, essas civilizações, a islâmica com maiores
dificuldades, é certo[9],
abriram-se completamente às invenções técnicas e científicas do Ocidente, sem
ressentimentos diante do que seria uma ‘injustiça’ devida a desigualdade
cultural.
8. O que receio, eu que tenho trabalhado em
questões que relacionam filosofia e ciências (e cristianismo) na história do
Ocidente e que me deslumbro com os grandes apaixonados dessa história, é que
uma tal concepção altermundialista faça olhar com ressentimentos estapafúrdios
essa nossa história que fica aquém da história da guerra, das conquistas e das
explorações comerciais e coloniais, embora possa ter beneficiado delas financeiramente
e em termos mineiros. O que me confrange, isso sim, é que essa história
fabulosa, hoje fecunda mundialmente, tenha desaguado em boa parte na
brutalidade da guerra dos capitais, destrutiva das economias dos próprios
países ocidentais, a começar pelos Estados Unidos, devastando as ecologias cujos
segredos foram sendo desvendados. O que me confrange é ver a maneira como as
estruturas financeiras, guiadas por M. Friedman e sopradas pelas inovações
electrónicas, caíram nas mãos de gente ignorante, já não proprietários privados
ávidos mas gestores que não vêem senão ecrãs de números astronómicos e taxas
que lhes prometem uns milhõezinhos nos bolsos a troco de brilhantes esquemas de
extorsão. Ser isto o desfecho (actual) de uma tão grande aventura intelectual,
tanta burrice, tanta miopia, brada aos céus!
[1] A excepção é em relação à piada
esquerdista de mau gosto sobre uma « profecia cumprida » que
pressupõe a equivalência entre Bush e Obama e que Republicanos e Democratas
andam de braço dado (p. 66), o que claramente a nota 66 da p. 72 desmente.
[3] Sobre a diferença entre
‘espiritual’ e ‘religioso’ ver texto no blogue nº 2 citado, embora esse meu
texto não pareça adequar-se sem mais ao que está aqui em jogo, já que se refere
ao cosmopolitismo das sociedades ocidentais e ignora as questões
alter-mundialistas.
[5] www.philoavecsciences2.blogspot.pt/2008/08/le-japon-une-socit-non-monothiste.html
[6] É onde reside a grande
ignorância da modernidade ocidental sobre as sociedades, reputadas como
‘conjuntos de indivíduos’.
[7] Literalmente: reduzidos a um
décimo da população, segundo os cálculos de Pierre Clastres (A sociedade
contra o Estado).
[8] Um exemplo notável de
‘eficiência’ das culturas indígenas é o livro do etnopsiquiatra Tobie Nathan,
trabalhando com emigrantes africanos perturbados e utilizando mitos e rituais
que estudou junto dos feiticeiros locais para os ‘curar’, à maneira duma
psicanálise transplantada..
[9] Devido ao monoteismo e ao peso
antropológico das estruturas familiares (“harém dos primos”, escreveu G.
Tillon). O seu fundamentalismo, tal como o cristão americano, resulta da
percepção das liberdades ocidentais vistas nos médias que atraem os jovens.
Ora, estas são consequência, quer da técnica, autonomizadora dos indivíduos
(máquinas libertam músculos e acrescem saber), quer da escola e dos médias,
pelas suas incidências na transformação dos usos, organizações e
entretenimentos sociais. A moral tradicional resiste à modernidade, como foi o
caso do catolicismo: será uma questão de gerações?
Sem comentários:
Enviar um comentário