texto publicado no Público por altura da independência de Timor
1.
Não sendo diplomata, estratega, jornalista ou historiador, arriscando-me pois
a ser desmentido por algum especialista, creio que este processo timorense é
uma novidade na história deste século e que, mais do que a última descolonização
do sec. XX, talvez se trate da primeira dum novo tipo no sec. XXI. 0.4% da população
dum dos maiores Estados do mundo conseguiu, num contexto de repressão
extremamente feroz, alcançar a independência por meios democráticos
extremamente límpidos; o processo opôs a concepção ocidental de política a
uma concepção asiática tradicional e teve o apoio unânime do Conselho de
Segurança da ONU, sendo uma das suas fases de maior suspense o espectáculo de
um Presidente da República, com todo o seu governo e altas patentes militares
em grande estadão, a levantar a bandeira branca diante das televisões do
mundo inteiro. Já se vira algo assim?
2.
O Estado indonésio é multiétnico, como se sabe, embora cerca de dois terços da
população (nas duas ilhas maiores, Java e Sumatra) tenha uma longa história
cultural ligada às grandes civilizações continentais, nomeadamente à Índia,
cujas influências foram recobertas, desde o tempo das descobertas ocidentais,
pelo Islão e pelo colonialismo holandês. Aliás, esta implantação do islamismo,
geograficamente ‘aberrante’, parece sintoma dum atraso histórico da unificação
das populações dessas duas grandes ilhas, em relação às grandes nações
asiáticas. A ilha de Timor, nas suas duas metades, faz parte dum conjunto de
dezenas ou centenas de etnias (os números variam com as fontes), numa
imensidade de ilhas mais pequenas que a Indonésia sempre teve dificuldade em
congregar, onde justamente o Exército tem um papel predominante, o de uma espécie de ‘partido único’,
de garante da unidade à força (as milícias fazem parte disso). Ora, na Ásia da
China e do Vietname, este gigante frágil era o aliado dos Estados Unidos (e da
Austrália) desde que Suharto, em 1965, massacrara cerca de um milhão de militantes
e simpatizantes comunistas pró-chineses. Eis uma das condicionantes fundamentais
da questão de Timor.
3.
A outra é a extrema dificuldade dos ‘pequenos’ se fazerem ouvir no concerto dos
medias, como sabe o desconhecido que publica livro, disco ou filme que não vá
segundo os ventos de feição dominantes, ou quem faz uma campanha de marketing
com poucos meios; desejos e cunhas não intervêm, e sorte é só às vezes. Questão: como fazer ouvir Timor? Houve
o massacre de Sta. Cruz e o Prémio Nobel, depois mais nada.
4.
O factor decisivo em relação à primeira condicionante foi o PREC surgido na
Indonésia com a queda de Suharto; até aí, os esforços diplomáticos
portugueses, fossem do PSD fossem do PS, não deram frutos nenhuns, que só
depois foram possíveis e nas condições que se sabem, as que os indonésios, sem
pressões ainda sobre eles, puderam impôr. É que na altura só nós,
praticamente, é que prestávamos atenção. Ainda que se possa e deva discuti-lo,
foi o acordo de Maio que tornou possível o recenseamento de toda a população,
o referendo com 98% de votantes e com os 78.5% a dizerem ‘sim’ à
independência. Depois, foi esta votação esmagadora e o massacre que se seguiu,
que mostrou, agora sim a todo o mundo, as razões muitos fortes dos timorenses
quererem viver sozinhos. E foi então que todo o mundo viu, Clinton e os outros
também, o que se estava a passar em pleno Oceano Pacífico: 0.4 % contra 99.6 %,
um David / Golias entre asiáticos, mas em que o fraco estava armado pela ONU
com a razão ocidental, a razão democrata dos direitos humanos, e o forte
massacrava sem dó nem piedade, à maneira antiga dos exércitos coloniais
(incluindo o português há trinta anos).
5.
Estou em crer que foi este confronto espectacular de civilizações - diria
Huntington - que obrigou a decidir os “senhores do mundo”: as convicções mais
fortes do Ocidente (que, contra os cínicos, também fazem parte dos interesses
“materiais” estratégicos dos americanos) estavam a ser esmagadas na paisagem
política asiática. E é por isso que me parece que as críticas sobre a “ingenuidade”
dos diplomatas diante dos Indonésios são críticas “ingénuas”. O ofício dos
diplomatas foi o de tentar meter a razão diplomática possível no aleatório duma
relação de forças extremamente desfavorável. O outro lado também estava a
negociar (e dividido, como se viu depois que o governo não controlava os
militares), também calculou mal, esperava conseguir alcançar uma espécie de
empate com o medo que as milícias inspirassem aos eleitores. Foi a amplidão da
derrota que ditou a amplidão do massacre. Sem o acordo que houve, e porventura
sem a infeliz cláusula reservando a segurança aos malfeitores, ainda se
estaria a negociar; em Novembro, a filha de Sukarno, com minoria de deputados,
a precisar de coligações e de se conciliar a tropa, que sempre se disse contra
o referendo, acabaria com as negociações em nome da democracia interna da
Indonésia, e da sorte de Timor só continuariam a saber os portugueses e poucos
mais. Teria sido essa a vitória diplomática de Ali Alatas! Este argumento é
triste: fazem parte intrínseca dele os milhares de mortos a quem ninguém
ressuscita. Mas a história dos humanos fez-se as mais das vezes com dores
destas para que algum bem possa vir, para que agora a independência de Timor
seja irreversível. E isto porque quer os Estados Unidos quer a Austrália foram
capazes de jogarem a fundo contra os seus interesses estratégicos na região.
6.
O que creio ser, senão totalmente inédito, pelo menos extremamente raro. E
por isso mesmo significativo: são as razões de justiça nas relações
internacionais que poderão ter dado um salto para a frente. Ora, a estabilidade
e a força do direito e das instituições internacionais, mormente da ONU, são
porventura o problema mais urgente da actualidade internacional. E é de esperar
que, com a globalização das TV, surjam no futuro, não os dois, três, dez
Vietnames que o Che Guevara em tempos desejou, mas dois, três, dez Timores buscando
a sua independência, sair debaixo da alçada de qualquer exército de povos
“irmãos”.
7.
O caso de Timor não é único, há outras etnias, maiores até, na própria
Indonésia, mas também noutros lados, o Tibet, o Daguestão, e tantas e tantas
pela África pós-colonial fora. Toda a gente responsável tem dito, desde o caso
da ex-Jugoslávia, que não se deve mexer nas fronteiras pós-coloniais. Se estes
conglomerados frágeis, instáveis e capazes por vezes de surtos de violência imprevisível,
começam a desmantelar-se como nos Balcans, se sucede isso à Rússia e à China
(por muito que o nosso coração esteja com os de Tianamen), à África, que caos
tremendo não será? É esse o grande
medo da estratégia americana em relação à Indonésia, Timor nada pesa ao pé
deste pesadelo.
8.
Ora, qual parece ser o problema? Na Europa, levaram-se alguns séculos para se
fazerem Estados-nações, com predomínio das línguas duns sobre as dos outros,
que viraram minoritárias, mas esse tempo de consolidação nacional foi também o
da formação da civilização industrial. As coisas foram lentas, violentas (com
revoluções) mas foram a par; os outros países tendem a acelerar e a
precipitar. Entre os povos não-ocidentais, praticamente só as grandes
civilizações asiáticas, e sobretudo o Japão, tinham já algumas condições de
unificação nacional para formarem rapidamente Estados modernos. A África, como
se tem visto sobejamente nos últimos 40 anos, está nos antípodas: o problema
deles é como passar rapidamente, em quantas gerações?, de sociedades tribais de
há algumas décadas a sociedades modernas. O mínimo que se pode dizer é que
ninguém sabe responder a isto. E também ninguém sabe, justamente porque essa
perspectiva é catastrófica para o planeta, dizer se a independência étnica não
será uma dessas condições.
9.
Foi esse medo, e não a ‘hipocrisia’, quem impediu os Clintons e outros de se
ocuparem de Timor, e até da Bósnia e do Kosovo, da mesma maneira que é o saberem
que eles têm esse medo que permite aos Milosevic e aos Wiranto a confiança na
sua impunidade. Nós, eu e você leitor, que não somos senhores do mundo, temos
um problema para os nossos desejos, e os jovens talvez empenhamentos futuros
em ONGs: devemos querer que haja mais e mais Timores? ou devemos temê-los?
Deveríamos querer que, da próxima vez, a ONU possa intervir mais pacificamente,
com acordos correctos, sem milícias fantoches, que o direito internacional
possa estar à altura das circunstâncias sem as dezenas de milhar de mortos.
Pode ser que Timor tenha sido uma estreia mundial para muitos desses pequenos
povos oprimidos que, se não me engano, farão boa parte da actualidade
internacional do século que aí vem.
Sem comentários:
Enviar um comentário