A Fenomenologia como Filosofia com Ciências
O gesto husserliano de voltar às próprias coisas : a redução
Heidegger: a (pro)dução
Heidegger e Aristóteles
Derrida repete e desloca Husserl e Heidegger
Redução e (pro)dução : re(pro)dução
Filosofia-com-ciências: da Physica de Aristóteles à Fenomenologia
1. Para o dizer com a maior brevidade, trata-se
aqui de restituir às ciências contemporâneas, referidas através de algumas das
suas principais descobertas no século que acabou, a matriz filosófica da sua
origem histórica, fechando o parêntesis da separação kantiana das águas
filosóficas e científicas, cuja fecundidade, durante a instituição turbulenta
dessas ciências nos dois últimos séculos, se presume que se esgotou. Recuperar
a antiga dimensão filosófica das ciências parece-me poder ser feito na
perspectiva da fenomenologia aberta por Husserl, desde que se tenham em conta
também as reformulações que Heidegger e Derrida, cada um à sua maneira, trouxeram
a essa perspectiva. As ciências em questão, que todas conheceram transformações
essenciais ao longo do século XX, dizem respeito à energia e matéria, à vida,
às sociedades, às línguas e ao psiquismo humano. Aqui limitar-nos-emos à biologia
molecular e à linguística saussuriana, mais acessíveis em tão pouco tempo.
Confesso que se trata dum extracto dum texto muito vasto, sem dúvida que uma
parte da argumentação dependerá de outros argumentos não expostos.
O gesto husserliano de voltar às próprias coisas : a redução
2. Se se toma a redução
fenomenológica na sequência das suas três intuições, sensível, categorial e
eidética, a sua fecundidade filosófica (que será retomada na gramatologia de
Derrida) vem-lhe de se tratar da repetição do gesto inaugural da filosofia dos
socráticos, o da definição: retira-se o ente do seu contexto e comparam-se em
seguida os diversos entes do mesmo eidos, de forma a poder definir este e a torná-lo passível de argumentação
filosófica. É esta abs-tracção, este arrancar ao contexto - que Heidegger dirá
segunda, derivada, apofântica - que é repetida antes de mais pela redução. É a
intencionalidade da consciência na coisa percebida que afasta Husserl da separação
cartesiana entre sujeito e objecto e o faz regressar à maneira grega de
filosofar, mas à diferença de Platão, Husserl repete-o reflectindo sobre o seu
gesto, exibe nele a descontextualização que a definição opera, como Heidegger
compreenderá ao tomar o caminho para o mundo das coisas, o qual é prévio à
definição gnosiológica, ao saber filosófico. Isto só foi possível porque, ao
repetir o gesto inicial vinte e três séculos mais tarde, Husserl teve que ter
em conta essa longa história e que suspeitar quer a forte tradição
substancialista a respeito do objecto (reduzir a sua existência empírica, a
coisa aparecendo, uma
circunferência desenhada, por exemplo, para não reter senão a sua idealidade
fenomenal, a circunferência da Geometria, o seu aparecer formal ou estrutural, o que ela tem em comum com
as outras coisas da mesma idealidade, as outras circunferências empíricas),
quer a tradição substancialista a respeito do sujeito (a consciência não é
‘substância’ como a alma de Descartes, ela é a coisa intuicionada). A sua descoberta
essencial, a diferença fenomenológica entre a empiricidade aparecendo (reduzida) e o aparecer retido como
idealidade, não é já a que havia entre os dois sentidos da ousia de Aristóteles, entre a ousia substância e a ousia essência, que permitiram ao Estagirita
compreender, com o par dunamis
/ energeia, o movimento
autónomo dos vivos; foi deste que a representação clássica libertou os objectos
para os oferecer, inertes, sem actividade própria, nem dunamis nem energeia, à física de Galileu e Newton e às suas forças
(dinâmicas e energias, os termos aristotélicos tornados livres para a nova
física dizem eloquentemente o que evoco aqui de raspão). Ora, é de objectos
inertes que Husserl tem percepções, não de moscas ou de cavalos. É com efeito a
substância europeia, existente e inerte, que é reduzida, suspensa ou
des-substancializada por Galileu e Newton[1], por Kant e Husserl. Des-substancialização, como
a da consciência pela intencionalidade: em termos de Heidegger,
desontologização. Na sequência assim da ciência física, pode-se afirmar que a
desontologização é uma característica forte da Fenomenologia, inerente à intencionalidade e à redução. Nem
Heidegger, que abandona a redução, nem Derrida que volta a ela para a deslocar,
porão em causa este projecto, sem o qual não se entende nem a diferença ontológica,
nem a diferença com a.
Heidegger: a (pro)dução
3. Foi pois a empiricidade
(substancial) do objecto dado
ao seu olhar que Husserl reduziu, retirou da percepção, do seu olhar, para
poder chegar à idealidade. Ora, esta empiricidade situa-se justamente aonde o
objecto se liga ao seu contexto, apesar de Husserl o colocar como já destacado
dele. Poder-se-á dizer que Heidegger prossegue o caminho da intencionalidade
husserliana, mas que, em vez de ir na direcção da idealidade constituída pela
consciência transcendental, prossegue-o na direcção do que, do lado do contexto
do objecto, o dá e permanece
retirado do olhar fenomenológico. Tratar-se-á pois de prosseguir o gesto de
retorno às coisas, que ele fará por um passo duplo: num primeiro tempo, o
chamado I Heidegger, questiona o próprio olhar fenomenológico, abandona a
essencialidade do seu sujeito para o temporalizar na sua existência pro-jectada
nas suas possibilidades, Dasein pondo a questão do sentido do seu ser; no segundo tempo, o chamado II Heidegger,
ele volta-se, além do contexto onde são dados os entes, para (a historicidade de) o Ser que os dá ao mesmo tempo que se retira em relação ao olhar.
Assim regressa às coisas em contexto, Mundo e Terra, ao humano que não é
filósofo, ao cuidado com a sua existência, com o seu ser e a sua morte. Sem se
tornar todavia escritor literário (como se poderia suspeitar dum Nietzsche), permanece
no domínio do pensamento e da questão do ser, do aparelho filosófico de pensar.
4. Ele deixa pois cair a redução para
reencontrar o que a tinha pedido, para suspender agora a preocupação husserliana
pelas idealidades e pelas definições científicas, para diagnosticar a sua
secundariedade, para perguntar ao filósofo Husserl quem é antes de mais Edmund,
esse humano singular que põe questões, o humano que vive antes demais no
cuidado quotidiano da habitação, no Mundo em que as coisas nos são úteis mas
articuladas de tal maneira que nenhuma intuição sensível seja prévia a outra
categorial. Este ‘filosófico’ supõe já que se põe a questão do ser (supõe pois
a linguagem), assim como a temporalidade das existências que as definições
intemporais suspenderam à partida da escola socrática de filosofia. Se já há
retiro (da empiricidade) como desontologização na redução husserliana, então há
que pensar que, mais do que abandoná-la, Heidegger inverteu-a para encontrar as
suas condições prévias de possibilidade, o retiro doador do Ser. Guardando
portanto, mas para o radicalizar, o projecto de desontologização: nomeadamente
o Dasein como exterioridade,
ser-no-mundo, prolonga a intencionalidade até à mesmidade parmediana do
dizer-(que)-pensa-o-ser[2]. Por outro lado, que ele seja pensado como aquele
que põe a questão do seu ser implicita já a mesmidade do pensar e do dizer que
Husserl falhou e de que se pode encontrar uma fonte no Nietzsche do Sobre a
verdade e a mentira em sentido extra-moral[3]. Com efeito, se em Heidegger que retorna a
Parménides, o ser é o mesmo que o dizer que o pensa, não pode ser um ente: diferente
dos entes que ele dá, ele é o Nada-de-ser-que-dá-entes (isto seria, digamos, uma definição da diferença
ontológica). A destruição da
metafísica que propõe será o projecto de reler a história da filosofia
des-substancializando-a, desligando substância e ser para retirar o ser aos
entes substanciais, negando o Deus como Ente supremo e causa criadora dos entes
que têm neles o movimento, causa eterna que, privilegiando o ‘presente’ (que perdura
na ousia), desvaloriza o tempo
(como acidentalidade) : é o motivo da crítica da ontoteologia e do presente
como a sua matriz. Esta destruição da metafísica é pois o que Heidegger guardou
da redução ao deixar a sequência das intuições e o seu privilégio da presença
das coisas à consciência.
5. Não creio forçá-lo demais se
introduzir o motivo do uso social no de cuidado no Mundo : mais do que um
utensílio à mão, é a aprendizagem da sua utilização (pelo Mundo, pelos Outros)
que o institui enquanto Dasein (‘compreendido’ pois no Sein), o que permite ter em conta essa componente essencial que é a pré-compreensão,
aprendida e portanto não ‘presente’ aos entes, portanto ontológica. Quando ele
chega à leitura do primeiro capítulo do livro II da Physica de Aristóteles, reencontra na sua archê o poder doador de pro-dução[4] (dum fruto, por exemplo), guiar (-dução) em
frente (pro-), isto é, o poder de fazer-vir-à-presença, a doação ; o motivo do retiro de Heraclito será o
herdeiro, se se pode dizer, da redução des-substancializante: retracção desse
poder, enquanto deixar-vir-à-presença,
retiro da doação. Grafemos (pro)dução, marcando o ‘fazer vir à presença’ de Heidegger no ‘pro’ e o deixar vir à presença nos parêntesis que o escondem.
6. O II Heidegger integra no
pensamento do ser a história da filosofia e da civilização ocidental, como se
se tratasse dum gesto de repetição, a da ruptura de Hegel em relação a Kant,
mas agora fora da oposição sujeito / objecto. Aliás, se se pensa que, na Fenomenologia
do Espírito, a experiência da consciência
– passagem da consciência natural à consciência do saber – é a do objecto aparecendo ao seu aparecer fenomenológico, poder-se-ia ler Husserl como
alguém que foi tomar a Hegel esta diferença fenomenológica para voltar, mas numa fenomenologia da
intencionalidade, à problemática das ciências exactas de Kant. A viragem do I
ao II Heidegger repetiria pois Hegel mas tendo em conta o passo atrás de
Husserl.
Heidegger e Aristóteles
7. O Ereignis de 1962, sugeri-o no colóquio da Covilhã há 5
anos, acaba o percurso heideggeriano duma forma tão surpreendente que se seria
tentado a falar dum III Heidegger. Na formulação da diferença ontológica como Nada-de-ser-que-dá-entes falhava a descoberta de Ser e Tempo, o tempo, que nesse texto só dizia respeito ao Dasein humano; todo o percurso do II Heidegger em torno
da história do ser pedia que a temporalidade fosse generalizada, um pouco
‘como’ o ser[5]. Ora, Ereignis é ‘acontecimento’ em alemão, em que ser e tempo
são indissociáveis: é como se, na conferência Tempo e Ser, o Ereignis tomasse o lugar do ser, deixando este tornar-se enfim o parceiro do tempo[6]. Haverá que pensar que a conferência reformula a
diferença ôntico-ontológica, podendo agora ser lido o Ereignis como Nada-de-acontecimento-que-dá-acontecimentos. Ora, nas cenas da dita realidade, não há senão acontecimentos, tudo no
ente – nascimento, alimentação, morte, fabrico, desfazer-se -, e ele próprio (eigen) na sua indeterminação, é acontecimento, já que
esta doação permanece retirada, sem lugar para determinismos nem para
fatalismos. A surpresa é tão grande que se justifica uma visita a Aristóteles,
para indagar o que há aqui de retorno e de novidade.
8. Como o pensamento deste diz
respeito sobretudo aos entes vivos, tomemos o exemplo do cavalo[7]. A ousia é o próprio movimento (kinêsis) da substância que é ‘este’ cavalo (ousia primeira) vindo à presença, o qual movimento é o mesmo que o dos
outros cavalos e éguas, a ‘essência’ deles (ousia segunda), mas este movimento, durante toda a
duração da sua vida de cavalo, desde o nascimento até à morte, é vivido de
maneira singular, particular, ‘própria’, diferente dos outros cavalos e éguas,
segundo os seus acidentes, os seus acontecimentos ônticos. A importância da
essência na lógica que ele inventa explicará que a ousia se tenha congelado numa intemporalidade, de
acordo com a sua definição gnosiológica: Aristóteles também sendo parmenidiano,
as suas categorias são dizer-(que)-pensa-o-ser dos entes, este ‘ser’ sendo
substancial, a ousia primeira
ou substância tendo o primado sobre a ousia segunda ou essência. Era nesta diferença entre primeira
e segunda que o ente tinha o primado ontoteológico da presença e o tempo se tornava
secundário, quer como acidentalidade em relação à ousia, quer como um momento qualquer em relação ao
presente intemporal (da definição) da segunda. E o que é que isto dá no Ereignis? O movimento
é a ousia dada, ser-e-tempo
dados em simultâneo, movimento ôntico, particular, este cavalo que acaba de
nascer, de ser (pro)duzido, vindo à presença, vindo da sua égua materna e que
crescerá no tempo, comerá e dormirá, reproduzir-se-á. Ora, nada disto é
‘acidental’, no sentido de derivado, secundário, mas é tudo bem ‘essencial’ ao
acontecimento ôntico, à existência deste cavalo particular : desapareceu a diferença primária / secundária da
ousia (como já sucedera para o
Dasein em Ser e Tempo)[8]. E o acontecimento ontológico? É a espécie
cavalar que dá o cavalo, bem como outros cavalos e éguas. Uma espécie biológica
não é nenhum dos seus indivíduos (não sendo ‘nada’ fora deles), já que estes
nascem e morrem e a espécie continua a reproduzir-se nos seus descendentes. Ela
não é nenhum ‘ente’, é ‘Nada’ (não ente) que tem a fecundidade, o poder de
doação dissimulado, escondido, de se reproduzir como o Mesmo em entes
individuais, nunca idênticos entre si. Nesta reprodução, a espécie é o
Nada-de-acontecimento que dá poldros, cavalos e éguas. Ousia deixa de ter oposição hierárquica a acidente, já
que as suas regras científicas têm uma relação essencial ao aleatório das cenas
e é na experimentação em entes particulares que tais regras da espécie são estudadas
nos laboratórios científicos. Se repararmos que, em português, as palavras
‘acidente’ e ‘ acontecimento’, um conotado negativamente e o outro
positivamente, dizem a mesma coisa (o que sucede imotivadamente implicando
vários), comprende-se como o Ereignis de Heidegger regressa ao aristotelismo e o transforma: a oposição entre
ser e tempo é enfim ultrapassada.
9. Se se pensar na diferença entre as
circunferências empíricas que Husserl reduz, cuja empiricidade suspende para
obter a idealidade da circunferência da Geometria que não existe no Mundo mas
que se repete em cada circunferência empírica, e nos lembrarmos da diferença
fenomenológica entre umas e a outra, pode-se compreender a diferença entre os
cavalos e as éguas individuais e empíricos que nascem das éguas, por um lado, e
a espécie cavalar por outro, como relevando desta mesma diferença fenomenológica,
mas de tal maneira que as intuições sensível, categorial e eidética que se
possam ter dela permanecem epistemologicamente pobres: os cavalos e as éguas
comem e reproduzem-se independentemente dessas intuições, os zoólogos que os
estudam fazem operações laboratoriais bem mais complexas para definirem uma
espécie biológica, o seu genoma. A ‘constituição’ pela consciência das coisas
vivas e não inertes não nos leva muito longe no caminho do conhecimento delas;
mas a espécie sim, pode ser dita ‘constituída’, já que ela só é enquanto ‘conhecida’ por aqueles que se ocupam
dela, que criam e cuidam de cavalos, os conduzem nas corridas. E o cavalo que
não fala, o que é que ele sabe da sua espécie? À sua maneira, sabê-lo-á provavelmente,
a nós é que escapa como é que ele sabe. Parece-me que a diferença ontológica entre os acontecimentos e o
dizer-(que)-pensa-o-ser aproxima-se assim da diferença fenomenológica, herdando
da sua redução, sem que se possa no entanto falar de identidade entre elas. Sem
se dar conta, Heidegger reencontrou as ciências a que muito cedo tinha
virado as costas, aquando da ruptura com o seu Mestre em fenomenologia,
regressou às próprias coisas, cumprindo assim a finalidade da fenomenologia
além de Husserl; o seu
percurso terá sido a sua maneira de, em várias etapas, introduzir a temporalidade
na diferença husserliana. Primeiro no Dasein, mas talvez ainda não nas coisas e utensílios do
seu cuidado de habitação no Mundo; depois presta atenção à história ocidental
do ser, à longa temporalidade que envolve os humanos enquanto mortais e
portanto entes de tradição; chegando enfim, se vejo bem, a uma diferença entre
os acontecimentos ônticos e Acontecimento(s) ontológico(s), em que o tempo joga
nos dois níveis.
10. E ainda, de Aristóteles a Heidegger: do
movimento do ‘próprio’ (auto) que se repete, os acidentes sendo secundários, ao
acontecimento antes de mais, condição do próprio ‘próprio’, os outros antes
do próprio. No entanto o seu Ereignis não deixa de ter limites: ele não permite saber
porque é que os cavalos são vivos (nem os humanos, que ele designa como ‘mortais’),
assim como não soube o que fazer do Mitsein, colocado em 1927 ao lado do Dasein, não soube pensar a relação ao Outro humano, a
crítica de Levinas, que deixaremos de parte aqui, é justíssima.
Derrida repete e desloca Husserl e Heidegger
11. Repetição aqui, entenda-se, de
gestos filosóficos em relação com as civilizações em que tiveram lugar, e não
dos próprios temas, tais como os historiadores da filosofia nos ensinam com
minúcia a singularidade, a dificuldade de os comparar, fora do contexto, a
temas mais ou menos homónimos de outros pensadores. Em Derrida, a repetição é
quase vertiginosa, por causa da multiplicidade e heterogeneidade dos textos dos
pensadores que ele lê, sejam os três filósofos de que está mais perto que
repete e desloca, sejam diversos científicos, sejam ainda escritores
contemporâneos, escolhidos entre os mais ‘difíceis’, a quem vai buscar a
problemática da escritura que ele introduziu na filosofia. É justamente esta
capacidade de leitura em todos os azimutes que tem o efeito de deslocamento de
uns pela repetição dos outros. Não creio que haja nenhum outro caso semelhante
que tenha sido conseguido na história do pensamento ocidental. A maneira como,
na Gramatologia, ele fez jogar a redução husserliana ou diferença fenomenológica
sobre a diferença saussuriana entre os sons aparecendo e o aparecer dos sons, as suas diferenças[9], inverteu a posição instauradora da fenomenologia
e tornou possível pensar o sujeito como ‘instituído’[10] pela aprendizagem dos usos e da linguagem da sua
tribo. São as palavras que são no falante o rasto da voz dos outros, a
consciência vindo com o acordar da nova voz que esses rastos suscitam como
resposta. Peço desculpa por não poder desenvolver aqui: trata-se do tempo da
leitura, com as suas retenções e diferanças, da língua antes dos motivos, da
diferença das línguas e do problema da sua tradução antes da razão e da sua
universalidade, trata-se, digamos, dobre de finados da representação mental,
tanto percepção como ideia.
12. Esta diferença fenomenológica torna-se rasto
ou différance, espaçamento-temporalização,
poder-se-á dizê-la ‘textual’: por um lado, ‘não há fora de texto’, diz ele de
forma parmenidiana pós-heideggeriana – escrever-(que)-pensa-o-jogo-do-mundo -,
o que significa que não há acesso à dita realidade senão através da linguagem
como inscrição ou trabalho (energético) de habitação (não apenas as palavras e
as coisas, também os gestos dos usos de construir, é a isso que ele chama a
escritura como rasto dos humanos em geral): por outro lado, qualquer organismo
vivo, os diversos órgãos e o seu jogo recíproco, qualquer sistema social de
usos (as suas diversas actividades, ao longo dos dias e das estações, com uns e
com outros), tudo são espécies de textos, agenciamentos que se reproduzem, com
jogos estruturais diferenciais e temporais, lugares e ritmos, e assim de
seguida. Ora, este motivo do rasto, do texto a várias vozes e várias mãos,
implica relações estruturais ao outro, aos outros, relações constitutivas ou institutivas
ou alterativas: rasto do outro pois que, se repete Levinas, desloca-o bastante,
já que sem infinito, divino ou rosto, enigmático, sem dúvida, mas não é a mesma
coisa: a inscrição da voz dos outros em mim e o seu apagamento é a condição,
totalmente enigmática, de que a minha voz fale em mim. Mas o outro a quem o
rasto é relação estrutural é também o Mundo heideggeriano, que vem, de maneira
parmenidiana no que ouço ou digo[11].
13. Por seu lado, Heidegger é retomado mas cortado
da sua problemática das origens (divinas, históricas, linguísticas ou outras),
já que é a repetição, retomada de Husserl, que é originária, o que significa
dizer que não há origens, apenas repetições ou reproduções; e ainda a
escritura, rasto, différance, inscrição, trabalho, jogo de forças, é de direito
anterior ao ‘logos’ e ao seu ‘ser’, este sempre já disseminado: não há nenhum
vivo ou uso social ou texto que não seja co/instituído por rastos de outros
vivos, usos e/ou textos, múltiplos e complexos, em jogos em que o aleatório
impõe que haja estratégias e errâncias.
Redução e (pro)dução : re(pro)dução
14. Derrida repete pois Husserl e Heidegger,
e pode-se esperar que o seu motivo do rasto ou différance (e o double bind posterior) tenha qualquer relação com a redução
de um e com a (pro)dução do outro. O que é surpreendente é que ele possa
revelar-se ser mais do que uma simples operação de pensamento fenomenológico ou
do ser: a escritura-(que)-pensa-o-jogo-do-mundo revela-se ser também uma
‘verdadeira’ operação ‘ôntico-ontológica’, dizendo respeito, por exemplo em
Biologia molecular, à mimesis
ou reprodução dos vivos para além da morte dos seus progenitores. Seja o programa[12] genético nos cromossomas e a sua divisão em duas
metades, em duas gâmetas, fêmea e macho: cada uma une-se à outra para formar o
programa genético dum novo ser vivo, diferente do de cada progenitor,
constituído assim pelos rastos desses seus progenitores, uma vez que se pode
dizer que, desde que o novo ADN do ovo começa a regular a síntese das proteínas,
são apagados os outros de que ele é o rasto. Ora, o que é que é esta divisão do
programa genético? É primeiro a redução da metade do ADN nos progenitores (formação das gâmetas sexuais), a
redução dum ‘mesmo’ em vista da sua repetição numa ‘substância’ empiricamente
outra, não idêntica, numa outra célula. Em seguida, há a (pro)dução desta nova célula (ovo ou zigoto), que o processo
de união das duas metades fez
vir à presença (concepção, futuro nascimento) e que o apagamento dos outros deixou vir à presença (o apagamento é o retiro dos
progenitores que deram as duas metades: é neste apagamento que consiste a
redução enquanto operação). Ora, isto é a ilustração da operação do rasto biológico, do pro-grama genético: Derrida repete assim quer a redução
husserliana quer a (pro)dução heideggeriana, esta sendo o inverso daquela[13], mas nenhuma delas sendo senão em função da
outra: a (pro)dução só é reprodução devido à redução. Para marcar na
necessidade estrutural desta sequência das duas operações a herança filosófica
respectiva, proponho grafar re(pro)dução, aonde se pode ler a redução de
Husserl fora dos parêntesis e a simultaneidade do ‘fazer / deixar vir à presença’
de Heidegger no ‘pro’ e nos parêntesis que o escondem, a doação e o seu retiro.
Ora bem, esta operação de nascimento, se se pode dizer, repete-se em cada
reprodução celular: quando este programa genético, sempre nos cromossomas, se
dividir de novo em dois para que cada metade dê origem a uma simétrica (são as
mesmas diferenças que se repetem
em moléculas empiricamente novas, são estas diferenças que são transmitidas de
célula mãe em células filhas) de modo a que haja duas novas células, haverá
re(pro)dução. O mesmo tipo de operação sucede quando um segmento de ADN é
reduzido na sua cópia de ARN mensageiro em vista da síntese duma proteína: são
as mesmas diferenças entre as unidades de base do ADN que re(pro)duzem as do
ARNm, empiricamente outras[14], e são essas mesmas diferenças que re(pro)duzem a
proteína, em moléculas de ácidos aminados, aqui claramente manifesta a
diferença fenomenológica entre o mesmo (diferencial, desusbtancializado) e o
empírico duma outra ‘substância’, (pro)duzida. Eis aqui conseguida explicitamente
a intenção manifestada por Derrida, desde 1967, de que o seu motivo do rasto
seja referido ao campo científico da biologia.
15. Seja agora a Linguística
saussuriana. Foi explicitamente a diferença fenomenológica que Derrida teve em
vista ao deslocar a epochê ou
redução de Husserl para a diferença entre os significantes e os sons. Com
efeito, é no momento da escuta daquele que ainda não fala, da escuta da voz dos
Outros pelo in-fans, que é reduzido o empírico desses sons ‘estrangeiros’ para
não reter senão as suas diferenças, des-substancializadas pois. Mas Derrida não
retomou a redução tal qual, introduziu nela a temporalidade (heideggeriana), ou
melhor dito, o ‘movimento’ do jogo das diferenças, isto é, retomou-a como
espaçamento-temporalização (ou différance, em que o ‘a’ introduz justamente em ‘différence’ o tempo – que existe no
verbo, em ‘différer’, no sentido de ‘adiar’). Este ‘movimento’ implica um outro
momento além do da redução na escuta, em que estes rastos escutados e grafados
(pro)duzirão – fora – uma voz inédita, apagadas as vozes dos Outros pela
redução: re(pro)dução, o enigma deste fenómeno consistindo justamente na
articulação dos dois momentos numa só e dupla operação. Com efeito, não se
podem distinguir os dois momentos desta operação como se um fosse husserliano e
o outro heideggeriano, porque o apagamento, a des-substancialização, que deixa
ser a nova fala[15] (pro)duzida, é o efeito da redução. Também aí a
re(pro)dução continuará em cada aprendizagem dum novo saber, em cada troca de
palavras. Foi a isto que, sem parecer dar-se conta, J.-P. Changeux chamou grafo (escritura, grama, inscrição, impressão, marca),
esta escrita dos Outros, do Mundo, na rede das sinapses que agarram (aptô) os neurónios entre eles (sun), o enigma estando na novidade, inteligência,
habilidade ou falta de jeito, desta nova voz que repete à sua maneira um saber
antigo. É o mesmo Mundo (diferencial, textual, des-substancializado) da linguagem e da cultura, como se diz, que se
re(pro)duz assim nos eixos Audição-Cérebro-Fonação e respectivas glândulas de
cada um, na sua ‘matéria cinzenta’, na sua voz e emoções. Mas o rasto
gramatológico diz respeito à diferença entre qualquer inscrição e a matéria
aonde ela se inscreve, valendo pois para a linguagem matemática, a música, as
imagens, o cinema, etc., bem como à aprendizagem de qualquer uso social, andar
e correr, comer com talheres e lavar os dentes com escova e detergente:
aprende-se de outrem, cuja empiricidade é reduzida e (pro)duz-se o hábito dum
‘saber fazer’ adquirido, de que a continuação afinará o talento. A receita de
cada um dos usos diz a sua mesmidade social que se transmite de geração em geração[16].
16. Em qualquer destes casos, não é
aquele que nasce ou que aprende que é o sujeito do processo, mas, dir-se-ia, o
seu re(pro)duzido. É o próprio processo – enquanto movimento vindo de outrem e
implicando o seu apagamento – que... quê? que verbo utilizar quando não há
sujeito, quando não se trata senão de diferenças, nada de substancial, quando é
a ‘substância’ do ente que é reduzida para que outro ente seja?
Nada-de-acontecimento (a língua dos linguistas) dá este acontecimento. De cada vez há espaçamento-temporalização
re(pro)duzido, relação estrutural ao Outro apagado, rasto (trace) ou escritura, que Derrida chamou différance, marca, grama, iterabilidade - a repetição que
altera, o mesmo-que-não-é-idêntico -, tendo desde uma conferencia programática
de 1968 alertado para este enigma, a propósito de Freud em Além do princípio
de prazer: “tocamos aqui no ponto
da maior obscuridade, no próprio enigma da différance, no que divide o seu conceito por uma estranha
partilha. Não devemos precipitarmo-nos a decidir. Como pensar ao mesmo tempo a différance como desvio económico que, no elemento do mesmo,
visa sempre reencontrar o prazer ou a presença diferida por cálculo (consciente
ou inconsciente) e por outro lado a différance como relação à presença impossível, como despesa
sem reserva, como perca irreparável da presença, usura irreversível da energia,
ou até como pulsão de morte e relação ao totalmente outro interrompendo aparentemente
qualquer economia? É evidente – é a própria evidência – que não se pode pensar
juntos o económico e o não-económico, o mesmo e o totalmente outro, [...] a différance é este impensável [...]”[17]. Impensáveis assim: o nascimento, a aprendizagem,
a alimentacionalidade. A unidade da redução e da (pro)dução no Ereignis. Que os rastos dos outros, as suas vozes
essencialmente apagadas, falem na minha voz, enigma dos outros a mim e de mim a
mim, seria este enigma vertiginoso a que não chegaram nem Husserl, nem nenhum
dos dois Heidegger: todavia as escritas deles escrevem na escrita de Derrida,
complicadas pelos diversos deslocamentos.
Filosofia-com-ciências: da Physica de Aristóteles à Fenomenologia
17. O mesmo económico: a redução; a
nova presença totalmente outra: a (pro)dução. A différance: inconciliáveis sem dúvida, Husserl e Heidegger,
enigmaticamente indissociáveis. Em suma, a diferença fenomenológica e a diferença
ontológica juntam-se na différance gramatológica como rasto do outro, dupla
ligação de duas leis indissociáveis e inconciliáveis[18] (motivo derridiano, a partir de 74, que eu não
soube aqui introduzir). A mesmidade que persiste nesta alteridade: reencontradas
as ciências que obcecaram Husserl, porque não guardar o nome de Fenomenologia
para a descrição do que, em sua indeterminação ou enigma, são as próprias coisas,
os ‘fenómenos’ ? Assim reformulada, ela seria a nova aliança entre Filosofia e
Ciências que anunciaram Prigogine e Stengers nos alvores dos anos 80.
18. Procurei mostrar no artigo sobre
a Physica de Aristóteles como
ela era indissociavelmente filosofia-com-ciências, que ela não era senão isso.
Donde que, segundo Heidegger, ela seja, “em retracção, o livro de fundo da
filosofia ocidental”, esse “fundo”, essa matriz paradigmática reelaborada pelo
duplo gesto de Agostinho e do Aquino, repetindo o de Platão e Aristóteles;
matriz que, desde Occam, Galileu e Newton pelo menos, se foi desfazendo,
desconstruindo, refazendo para desconstruir mais adiante; era a Physica que era ensinada nas escolas europeias, era ela
que dava as questões que sábios e filósofos revolviam e ultrapassavam; foi ela
enfim que, permaneceu “em retracção” no vazio da explosão científica dos séculos
XIX e XX – o silêncio sobre Aristóteles ao longo desses séculos que quase só
Heidegger ousou infringir – enquanto exigência surda de articulação do campo
anárquico de tantas escolas científicas e filosóficas. Foi esta exigência anónima
que Husserl escutou, que o levou à tentativa fenomenológica de encontrar uma
saída para a “crise das ciências europeias”; ter reconhecido o nome do velho
Estagirita nessa retracção, terá, entre outras questões, levado o primeiro Heidegger
ao segundo. Se pusermos a questão do estatuto da escrita de Derrida, herdeiro
fiel e infiel dos outros dois nesta minha tentativa, teremos que dizer que foi
ela que tornou possível esclarecer o conjunto das várias cenas científicas e
dos seus entes, e que por seu turno este esclarecimento vindo das ciências pôde
manifestar a fecundidade inaudita desta corrente fenomenológica, como tentou
sugerir o motivo da re(pro)dução. O que quer dizer que, no contexto desta
problemática pós-kantiana de filosofia-com-ciências, a Fenomenologia gramatológica ocupa um lugar que
não pode ser decidido entre as diversas ciências e a filosofia. Como outrora a
Physica de Aristóteles, nas sociedades
de dominância energética de origem biológica. Deixando obviamente lugar para discursos
meta-fenomenológicos além dos científicos, como a meta-physica do Estagirita,
se vejo bem, esta Fenomenologia viria ocupar, nas sociedades modernas de energias
industriais, o lugar da antiga Physica.
19. Poder-se-á então dizer da
desconstrução que ela é a longa história desta substituição da Physica aristotélica pela Fenomenologia gramatológica,
que ela é, pois, oscilação entre construção e descontrução, toda a história da
civilização e pensamento ocidentais; há em consequência que dizer que ela é
também reconstrução da civilização, incessantemente se des/reconstruindo. Dizia
Derrida na conferência de 68 acima citada : “eu diria que a différance pareceu-me estrategicamente o mais apropriado
para pensar o mais irredutível da nossa época”[19]. Tinha razão.
Fernando Belo
Belo, « O lugar da Física na obra de Aristóteles : Filosofia com
ciências », Aristóteles em contexto. Philosophica, revista do
Departamento de Filosofia, FLUL, nº 26, 2005, pp. 63-79
Belo, Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida,
l’Harmattan, 2007
Changeux, L’homme neuronal, Fayard, 1983
Derrida, De la grammatologie, Minuit, 1967a
Derrida, La voix et le phénomène, Introduction à l’économie du signe
dans la phénoménolgie de Husserl,
P. U. F., 1967b
Derrida, “La différance”, in Marges, de la Philosophie, 1972a
Derrida, Positions,
Minuit, 1972b
Heidegger, “La question de la technique”, in Essais et Conférences, Gallimard, 1954
Heidegger, Le príncipe de raison, Gallimard, 1957
Heidegger, Questions II, Gallimard,
Heidegger, “Temps et Être”, Questions IV, Gallimard,1976
Nietzsche, “Sur la vérité et le mensonge en sens extra-moral”, in Le
livre du philosophe, Aubier, ed.
bilingue, 1969
Comunicação ao III Congresso internacional da AFFEN e I Congresso
luso-brasileiro de Fenomenologia, em 5 a 8 dezembro 2007, Faculdade de Letras
de Lisboa
[3] Onde ele interrogava “o nascimento da
linguagem e de todo o material no interior do qual e
com o qual o homem da verdade, o sábio, o filósofo, trabalha e constroi em
seguida” (Nietzsche,
1969, p. 179) para mostrar que esse nascimento era imotivado, a construção
intelectual não tendo como alicerces senão água corrente, mas onde o
‘material’, o ‘trabalho’ e a ‘construção’ que sublinhei indicam que Nietzsche
reencontra, aquém ou além da representação europeia, a mesmidade grega do
pensar e do dizer.
[4] Heidegger, por exemplo em La
question de la technique, expõe a actividade da phusis
como pro-duzir (hervor-bringen),
assim como em Comment se détermine la phusis,
a palavra alemã sendo aí her-stellen. Pro-duzir não “no
sentido do fabrico das coisas feitas ; [...] o fabrico não é senão um dos
modos do pro-duzir, que se torna então a noção decisiva para compreender quer a
technê quer a phusis” (F. Fédier, Questions
II, p. 247, n.1), o que Heidegger desenvolve pp. 254svs.
[5] Houve pelo menos duas tentativas para
substituir o Ser doador: o Quadripartido (Geviert)
em “La chose” (1954) e o Jogo em Le Principe de Raison
(1957) ocupam por assim dizer o lugar que, em 1962, será enfim o do Ereignis.
É o conseguir chegar ao fim dessas tentativas que o título “Tempo e Ser”
assinala.
[6] No seu comentário a esta conferência,
depois de ter sublinhado a novidade dela – “ser é determinado como presença
pelo tempo” (1976, pp. 64-6) -, Heidegger chega a dizer: “no mesmo tempo em que
ser chega ao olhar enquanto vinda, desaparece enquanto ser” (pp. 77-78).
[8] Pela antecipação da sua morte e a
correlativa decisão de ser ele próprio, é a sua existência, a sua temporalidade,
que determina a sua essência : se esta reside na sua existência, é para o Dasein
humano a disjunção ser / tempo (ousia / acidente em
Aristóteles) que é ultrapassada.
[9] Deve-se no entanto precisar que a
diferença entre a intenção signitiva e a intuição do objecto na primeira
Investigação lógica (analisada por Derrida, 1967b) liberta o sentido -
gramatical, digamos – da linguagem da ‘verdade’ da referência na dita realidade
(a expressão ‘o círculo quadrado’ tem um sentido, apesar desse objecto não
existir, é aliás o sentido que permite saber dessa inexistência). Ora, esse
gesto é, por assim dizer, paralelo ao de Saussure reduzindo
o referente do signo, o nomenclaturismo, diz ele, como condição da diferença
linguística (ou ‘valor’): os dois portanto reduzem os significados das palavras
na articulação palavras / frase. O deslocamento operado por Derrida consiste em
continuar
esse paralelo da nova fenomenologia com Saussure: prolongar essa redução à
articulação fonemas / palavras, à dos sons depois da dos significados..
[10] ‘Constituído’ seria forte de mais;
pode-se usar esse termo ao nível da doação do genoma pelos progenitores.
[13] É notável que no texto de Questions
II sobre a phusis em Aristóteles, a ousia
seja sempre vista como vinda à presença, isto é, como substância (o que Husserl
tinha reduzido) e nunca como repetição nos outros indivíduos (à maneira de
Husserl), isto é, como essência. Sucede algures a Heidegger caracterizá-la como
permanência na presença. Por outro lado, não deixa de ter piada dar-se conta da
inversão em relação a Ser e Tempo: este privilegia a morte
e ignora o nascimento, que, em Tempo e Ser, estaria do lado
da ‘vinda ao ser’, Heidegger parecendo já não ligar à morte.
[14] A diferença das bases (timina no ADN
e uracilo no ARNm) manifesta melhor como são as diferenças ordenadas entre as
moléculas que são ‘copiadas’.
[16] A música é um bom exemplo do que eu
proponho. Consiste em sons, sem dúvida, mas é mais do que ruídos, mais do que a
simples acústica, são diferenças sonoras que constroem edifícios musicais fundados
em água corrente, como dizia Nietzsche das ciências e da filosofia (n. 2). Há
muitos mundos musicais, os seus indígenas nem sempre se reconhecem entre si.
Como é que alguém se torna indígena dum mundo musical? É ele que o pega pelos
ouvidos, o arrasta até à dança e faz dele um habitante desse mundo. Com o
tempo, a inteligência, o talento, aprende a discernir a qualidade, a felicidade
musical, por vezes também a sofrer com a ‘bêtise’. Durante momentos mais ou
menos longos, não haverá senão a Música, está-se dentro dela, agarrado ao jogo
dos sons. Como um macaco agarrado aos ramos da árvore.
[17]
“La différance”, p. 20. Eis a indicação de alguns lugares aonde Derrida diz a sua
dívida em relação a Husserl e/ou a Heidegger: 1972b, pp.
18, 73-74, 79-80n., 1967a, pp. 35, 38.
[18] Husserl pensa o aparecer das coisas
ao pensamento; Heidegger pensa o aparecer das coisas ao pensamento e no ser; e
Derrida, operatório, porque com ciências, permite pensar o movimento
do aparecer das coisas (vindas de outrem) até ao seu desaparecer.
Sem comentários:
Enviar um comentário