1. Dois sociólogos escreveram há uma
quinzena de anos que não havia uma definição de sociedade que servisse para
todas as épocas (Dubet e Martucelli, Dans quelle
société vivons-nous?, Seuil, 1998). Creio que é um d/efeito filosófico que as
ciências europeias herdaram ao se situarem na oposição sujeito / objecto, no
caso conceitos como acção (Touraine), prática (Althusser), habitus (Bourdieu); a sua desconstrução pode dar lugar
ao motivo de ‘usos sociais’ em respectivos paradigmas, implicando aprendizagem,
o ‘sujeito’ modificado por cada uso aprendido. Definir-se-á então sociedade em
geral como o sistema mais ou menos complexo de paradigmas de usos que se repetem em
múltiplas unidades locais, aprendidos por cada nova geração como condição da
renovação da sua população. Ora, a aprendizagem traz consigo dois princípios:
por um lado, o de aliança
entre as unidades locais que trocam entre si (o/a jovem torna-se um/a dos nossos), e por
outro o de rivalidade, já que
as habilidades ganhas servirão, além da aliança, para ocupar os lugares de
prestígio da sociedade; indissociáveis e inconciliáveis entre si, eles são a condição
da coesão social. Um texto de P. Clastres equilibrava por assim dizer estes
dois aspectos duma sociedade entre as trocas de Lévi-Strauss e a guerra de todos contra todos de Hobbes: troca-se adentro
da sociedade (mulheres, discursos, bens), faz-se guerra para fora (Guerra,
religião, poder, Ed. 70, 1980).
Mas no coração das trocas também a rivalidade joga: se recebo um presente,
tenho que dar um equivalente ou melhor, sob pena de desconsideração social. O que significa que estes dois princípios
jogam a todos os níveis das sociedades, desde o dos irmãos ou dos colegas até
ao das grandes guerras com aliados dum lado e doutro.
2. A guerra não era só apanágio das
tribos a que Clastres se referia, foi-o de todas as sociedades históricas, em
que a nobreza era a casta dos guerreiros, os quais também prevaleciam para
dentro sobre escravos, servos ou súbditos. Se constatamos que, fora 1914-45,
nos dois últimos séculos não houve guerra entre as principais nações (Polanyi:
“o comércio doravante estava ligado à paz”), ela prevaleceu como fenómeno
regional mas sobretudo deslocou-se para o mundo da economia e das finanças,
cuja palavra chave é a competitividade (rivalidades) num mercado de trocas
(alianças), assim como entre lucros e salários. Um bom exemplo de como os dois
princípios se podem compatibilizar sem se anularem é a maneira como são
organizados os desportos, competição por definição, através de regras e
árbitros que as fiscalizam: regras arbitradas são regulação. Eis o que permitirá abordar a noção de Estado,
ao nível geral que convém ao filósofo.
3. Digamos que as sociedades
contemporâneas são complexos de actividades especializadas diversas que se
interpenetram frequentemente mas de que é possível ressalvar a autonomia
relativa entre eles de sectores como alimentação e saúde, construção, transporte,
fabricos variados, etc. Três todavia se diferenciam por serem estruturalmente
necessários, transversais, a todos os outros: os que têm a ver com as
aprendizagens (escolas, livros e outros meios de comunicação), os que têm a ver
com o dinheiro (mercado e finanças) e o Estado que tem a ver com a regulação do conjunto
(leis, administração, tribunais, segurança, defesa, etc.)
4. A democracia impôs-se na modernidade como a
maneira mais ética e razoável de o Estado ser organizado a partir da sociedade
civil, embora haja regimes e tradições diferentes. Qual foi a razão de fundo da
sua invenção pelos Gregos nos séculos VI e V antes da nossa era (Sólon,
Clístenes, Péricles)? Numa sociedade esclavagista em que os nobres adquiriam
escravos na guerra para trabalho agrícola (então base da riqueza), as suas
casas ganharam preponderância tal que esmagavam as casas pequenas, por vezes
ficando escravos por dívidas (Sólon anulou-as). A democracia foi
essencialmente o travão a essa dominação como ameaça de vida precária da
maioria das casas e dos cidadãos,
para obviar à desigualdade social quando a sua dimensão ameaça destruir a própria
cidade: ela nunca interessou por
ela mesma às casas guerreiras, desapareceu da história até as burguesias a
imporem às aristocracias, o comércio às guerras.
5. Sem dúvida que a pertença à U. Europeia torna
as coisas ainda mais complicadas, mas quando Rui Tavares chama a atenção para
que, entre os objectivos dela, está “o pleno emprego”, isso lembra-nos que o emprego é parte essencial da democracia, juntamente com o Estado social. Acontece que
nos dois outros sectores transversais, o princípio da rivalidade afirma-se como
selecção no sentido de fomentar, na escola, os mais competentes para virem a
ocupar lugares de topo, na finança, os mais ricos porque os que mais beneficiam
da aliança dos cidadãos que trabalham para eles: são os que não precisam de
serem protegidos senão da implosão social. Em épocas de tanto desemprego, é bom
que quem tem responsabilidades de regulação saiba que o jogo entre estes dois
princípios não pode ser o de se perfilhar um contra o outro, mas o de se ter ambos como vectores
imprescindíveis do alvo democrático, a aliança sendo a boa solidariedade para
que todos tenham direito a viver melhor e assim se garanta o próprio conjunto
social. Eis o que deve guiar o guião da reforma do Estado, como é certamente o
que guia o árbitro dos árbitros, o Tribunal Constitucional.
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