segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Porque é que as ciências precisam de laboratório ?




(determinação e indeterminação no âmbito
da Filosofia com Ciências)

comunicação a Philosophy of Science in the 21st Century – Challenges and Tasks 
Lisboa, Faculdade de Ciências, 4 a 6 dezembro 2013 
   https://www.youtube.com/watch?v=vrx7ulPlfZE&feature=c4-overview&list=UU5mZ3LtH1nRFdlKb_xBo6lQ

vídeo da comunicação que não foi lida senão parcialmente; segue-se uma entrevista





 
1. Assim como não é frequente os filósofos interrogarem-se sobre a razão filosófica de ser da definição, também não será costume que cientistas e filósofos das ciências se interroguem sobre o estatuto epistemológico do laboratório, a crer por exemplo no Dictionnaire d’Histoire et Philosophie des Sciences de Dominique Lecourt (P U F, 1999)  em que a entrada ‘laboratório’ não existe. Ora, são estas as duas invenções maiores da história gnosiológica do Ocidente, dos Gregos a primeira, dos Europeus a segunda. Presumo que se se fizesse uma sondagem entre cientistas e filósofos das ciências sobre a razão de ser do laboratório se encontrassem respostas análogas às da necessidade de andaimes para construir um prédio, que são retirados e ignorados uma vez o prédio pronto, um instrumento indispensável que a reflexão dispensa de pensar. Presumo, presunção talvez. Acontece em todo o caso que o laboratório se me impôs como crucial em Filosofia com Ciências e é do que me vou ocupar.
2. A definição é uma operação violenta de escrita operada sobre as narrativas e os discursos retóricos enquanto particulares que retirou o termo a definir dos seus contextos, ou seja que reduziu esses contextos e os seus caracteres particulares, incluindo a ampla morfologia dos próprios verbos das narrativas, e constituiu o texto filosófico enquanto texto que trata de generalidades (e não mais de particulares, acontecimentos ou opiniões), de essências impessoais e intemporais, sem lugar nem circunstância, sem contextos pois, e argumenta sobre elas, nomeadamente indagando de causas e efeitos como razão de ser das coisas.
3. A especulação medieval mostrou os limites do alcance da definição. O laboratório de física do século XVII acrescentou-lhe, à teoria científica de definições feita, a experimentação sobre movimentos detectados por instrumentos de medição (segundo dimensões que se foram multiplicando nos séculos seguintes): numa das coisas que sempre faltara aos filósofos, o uso das mãos, tanto Galileu como Newton eram exímios, fabricando eles próprios a sua aparelhagem laboratorial. Mas embora acrescentando, o laboratório não deixou de ser filho da definição, já que, como esta, opera uma redução do contexto donde retira o fenómeno a analisar laboratorialmente, retira-o do alcance das narrativas e opiniões para o alçar ao saber gnosiológico intemporal, digamos ‘universal’, se entendermos por ‘universo’ os laboratórios que repitam as operações experimentais e as escolas e bibliografias onde se ensinam ciências. Poder-se-á então dizer que o que o laboratório consegue e o torna condição estrutural dessa verdade científica universal é a criação de condições experimentais de determinação que justamente não existem nos contextos habituais da chamada ‘realidade’, de que se ocupam narrativas e opiniões. Mas ao fazê-lo, diz também algo que provavelmente incomodará muitos cientistas e filósofos das ciências: que fora do laboratório, não havendo determinação, essa dita ‘realidade’ permanece indeterminada, e é sobre isso que quero reflectir aqui.

Os três estratos dos textos científicos
4. Proponho que os textos científicos em geral são compostos de três estratos. O primeiro é o de mais fácil diagnóstico, já que se dá como citação do que foi experimentação laboratorial, exemplificando com os resultados das medidas se se trata de física ou química, com as operações linguísticas de comutação estrutural, as informações dum indígena tribal ao antropólogo. Mas no primeiro caso, por exemplo os resultados das medições do espaço e do tempo da queda duma bolinha pela calha duma tábua por Galileu (que aliás não os dá e usava demonstrações geométricas que notações algébricas ainda não as tinha disponíveis), esses resultados só têm sentido para servirem de verificação duma equação, das suas variáveis e e t, que permitem conhecer a velocidade respectiva  (v=e/t) e a sua aceleração (a=v/t=e/t2). E como as variáveis são parte definitória da equação, que pertence ao segundo estrato, o da teoria, já que é essa equação que justamente se trata de descobrir, haverá que dizer que não há fronteira que separe estes dois primeiros estratos. Mas uma equação, na sua forma algébrica, sendo o essencial das descobertas da física como veremos, não subsiste sem a sua interpretação em termos de linguagem duplamente articulada, explicitando que e significa ‘espaço’, t ‘tempo’, v velocidade, a aceleração, = ‘igual a’, / ‘divisão do primeiro factor pelo segundo’ e 2 ‘multiplicação do factor por si mesmo ou elevação ao quadrado’. O que implica que o segundo estrato, o da teoria, se compõe das equações físicas e da sua interpretação, da compreensão teórica desse nível operacional, que corresponde ao fragmento duma questão científica regional. Mas tem também a teoria que vier a unificar os diversos fragmentos experimentais e respectivas equações, o que implica querer dar conta da ‘realidade’ que diz respeito ao domínio científico em questão.
5. O terceiro estrato é o que Les mots et les choses de Michel Foucault exibiu magistralmente: o epistema comum a três disciplinas diferentes, a respeito dos vivos, das línguas e do trabalho, quer nos séculos clássicos (entre 1660 e 1780) em torno da representação em tabelas, quer com a assunção da temporalidade nos respectivos paradigmas no século XIX, afirmadas respectivamente como biologia, linguística e economia, como ciências que se autonomizaram da metafísica beneficiando do corte operado entre ciências e filosofia pela critica kantiana. Sendo comum a três disciplinas e diferentes na maneira como o são em cada uma, este epistema revela-se claramente como indissociavelmente filosófico e científico, estas ciências herdeiras da definição filosóficas. E sem dúvida que se poderia mostrar que também a teoria da física de Newton, que ele sabia ser uma nova ciência mas a que chamou “filosofia natural”, e até por vezes “filosofia experimental”, é indissociavelmente filosófica, pelo papel da definição na teoria, e científica, pela sua componente matemática e experimental (geometria e mecânica, na sua maneira de explicar a nova mecânica como ciência das forças).
6. A relação entre a física e a técnica tem no laboratório um carácter paradoxal. Se distinguirmos entre laboratório de físico, em que se descobre tal fenómeno, e laboratório de engenheiro, em que se inventa tal artefacto, por exemplo um automóvel, pode-se perceber que este, por um lado é polivalente, recorre a várias regiões da física e da química, e que por outro aplica ao seu artefacto as equações descobertas pela física através das medidas que calcula segundo as suas equações. O paradoxo reside no facto de que as interpretações teóricas dessas equações podem variar sem que isso provoque problemas ao engenheiro: o caso mais flagrante é o das novas interpretações relativistas (para velocidades perto da da luz) e quânticas (para dimensões da ordem das partículas sub-atómicas) da física não afectarem a ‘verdade’ da física newtoniana tal como ela continua a ser utilizada na maior parte dos laboratórios de engenharia: contra a ideia corrente que considera essa física obsoleta, historicamente ultrapassada, se se tomam em consideração os laboratórios, isto é o alcance  dimensional dos seus aparelhos de medição, essa física para velocidades e distâncias terrestres continua verdadeira, já que nessas dimensões as equações relativistas e quânticas reduzem-se às newtonianas.

Paradigmas, epistemas, fenomenologia
7. Esta distinção entre estratos não é incompatível com a bela análise kuhniana dos paradigmas, embora a consideração dos epistemas à Foucauld coloque alguma ‘comensurabilidade’ a paradigmas bem distintos a olho nu, entre disciplinas e depois ciências claramente distintas, o que sugere que a tese da incomensurabilidade ignora a dimensão filosófica dos paradigmas. Mas uma das características mais fortes deste motivo kuhniano é a exclusão da oposição entre teoria  e experiência, como aliás a consideração feita acima da relação entre variáveis das equações e resultados experimentais já sublinhava. Há uma vantagem fenomenológica na maneira de não se poder dissociar teoria científica e epistema, ciência e filosofia: é que, numa época em que a distinção clara entre ambas operada pela crítica kantiana não parece ter já pertinência, dado que as ciências se autonomizaram suficientemente das questões metafísicas, e é pelo contrário o problema das suas interrelações, da chamada interdisciplinaridade, que se tornou agudo e doloroso, nesta nossa época torna-se necessário tentar avançar mais longe do que Kuhn, penetrar nos próprios paradigmas (que não no laboratório, interdito aos não especialistas) a indagar do que há de filosofia neles como obstáculo a essa interdisciplinaridade (e que consiste na oposição dentro / fora, com as figuras de sujeito / objecto, sucedâneo europeu do dualismo platónico alma / corpo).
8. Mas não se pode entrar nos paradigmas científicos duma forma ‘apenas’ filosófica, é necessária a cumplicidade epistemológica das próprias ciências, não apenas a que é indagada mas de várias que se possa considerar cobrir o leque das várias regiões científicas. É aqui que a invocação do epistema de Les mots et les choses é interessante, já que, procedendo embora de uma maneira bem diferente, se tratou de analisar o epistema comum às principais ciências do século XX, através das suas descobertas maiores: a teoria do átomo e da molécula, a biologia molecular e neuronal, a dupla articulação das línguas (Saussure, Martinet), a relação entre o interdito do incesto e a exogamia como estrutura elementar das sociedades humanas (Lévi-Strauss) e a teoria freudiana das pulsões (o critério de discernimento destas descobertas como primaciais é interno à própria indagação, não susceptível de argumentação a priori).
9. Basta esta lista para se perceber que se trata duma caminhada bem diferente da de Foucault: com efeito foi a fenomenologia, que Husserl abriu em termos de poder tratar o que chamou “crise das ciências europeias” e a que Heidegger primeiro e Derrida em seguida fizeram desvios capitais, que permitiu a descoberta dum acordo entre as várias ciências insuspeitado dos próprios cientistas, senão dos filósofos inspiradores. Heidegger permitiu sair do que enclausurava em Husserl a ‘consciência’ do sujeito e do seu Ego, vir ao ser no mundo que do ‘exterior’ é instituído na sua ‘interioridade’, vir à historicidade dos termos filosóficos e à sua impregnação pelos textos científicos (crendo-se exteriores à filosofia); Derrida prolongou ambos os seus predecessores e, escrevendo différence como différance, marcou esta (espácio-temporal da vida, da linguagem e da técnica) como relação estrutural ao outro, atento ao motivo biológico do ‘programa genético’, permitindo assim desocultar o lugar da aprendizagem como instituição do ser no mundo, em prolongamento da concepção e do nascimento. Seja dito de passagem que é este motivo da différance como arqui-escrita que dá conta da importância que aqui se atribui ao laboratório.
10. Deixando de lado os motivos fenomenológicos desta caminhada, que tornaria este texto ininteligível, há que dizer que o motivo de fenómeno a descrever se veio a mostrar extremamente fecundo, já que deve ser à descrição dos seus fenómenos que se dedicam as várias ciências, a fenomenologia revelou-se pois o que deveria ser a coisa delas. E foi assim essa relação ignorada das ciências entre elas e com a fenomenologia que se manifestou, nas suas principais descobertas, a dimensão filosófica delas ocultada pela critica kantiana, o que permitiu que elas viessem a ocupar um lugar filosófico nessa fenomenologia reelaborada, o que chamei Filosofia com Ciências. Basta lembrar que, desde a ‘alma’ platónica, e apesar de Aristóteles, que o ‘sujeito’ e a ‘consciência’ europeus são privados de corpo e de sexo, de linguagem e de trabalho, de peso e de sociedade, para se perceber que uma fenomenologia que se queira capaz de interferir nas difíceis questões da nossa civilização, parida justamente da definição filosófica e do laboratório físico e químico, precisa de ser capaz dessas dimensões de que o ‘sujeito’ foi despojado e de que as diversas ciências se ocuparam com êxitos notáveis ao longo do século que passou. A nova Filosofia com Ciências permite em princípio (havendo por certo ainda muito trabalho de competências variadas a fazer) compreender o universo das coisas, descrever os seus fenómenos, unificar os saberes hoje tão escandalosamente dispersos.

Cientistas, filósofos e a ‘realidade’
11. É esta Filosofia com Ciências, fenomenologia reelaborada, que proponho ser o epistema das ciências actuais. É claro que é preciso ter lata, tanta que ninguém dá por ela. Se for certo o que disse nas minhas primeiras palavras sobre a falta de atenção dos cientistas ao laboratório e dos filósofos à definição, entende-se que uns e outros se pretendam decifradores da chamada ‘realidade’ com que se confrontam como se fossem observadores exteriores, neutros, entregues ao ‘puro’ conhecimento, ao ‘puro’ pensamento. Ambos pretendem obviamente abarcá-la, a tal ‘realidade’, mas o mal-entendido é inevitável: os cientistas nem sequer entendem as questões dos filósofos, estes por sua vez tendem a aceitar sem crítica a versão que os cientistas têm da sua ciência, parecem ignorar a tradição filosófica que atravessa esta, sabem-se exteriores ao laboratório e incompetentes para apreciar o que lá se passa. Como posso eu justificar a minha audácia? Vejo duas razões de ordem pessoal. A primeira consiste em a minha primeira formação ter sido científica, uma licenciatura em engenharia civil e portanto em física clássica. A segunda resulta de não ter tarimba filosófica académica e de ter entrado em filosofia por via de questões (teológicas) em parte alheias a ela; nomeadamente cheguei às questões que relacionam filosofia e ciências, não através da física que aí é predominante, mas das questões epistemológicas da linguística saussuriana que tinham sido colocadas nos anos 60 pelo estruturalismo francês e onde Derrida tinha afiado as suas primeiras armas. Ora, quando peguei nessas questões nos anos 80, o campo tinha sido abandonado e apresentou-se-me como o face a face entre uma ciência muito recente e um pensamento filosófico fortemente inovador e que fora atravessado por ela. Enquanto que a filosofia das ciências se me dava como uma espécie de negócio de velhotes viúvos que querem ‘juntar os trapinhos’, sem serem capazes todavia de perderem todos os hábitos das suas longas vidas, eu encontrei-me, fascinado, face a um jovem casal virgem capaz de se modificarem um diante do outro. Com efeito, Derrida passara essencialmente pela ‘diferença’ saussuriana para afirmar o seu questionamento entre filosofia, oralidade e escrita, enquanto que o debate estruturalista que pude ler esmorecera em posições filosóficas antagónicas inadequadas ao que havia de singular na nova ciência. Foi só após ter sabido compreender o que estava em jogo que se me abriu a porta fenomenológica de acesso às outras ciências, que se completou quando poucos anos mais tarde descobri maravilhado o ‘retiro do ser’ heideggeriano na sua leitura dum capítulo da Physica de Aristóteles. 
12. Este, em seu tempo, lera o que chamamos ‘realidade’ como phusis, como aquilo que cresce e se desabrocha, não só os vivos, mas também as casas e cidades dos humanos, as suas obras poéticas e retóricas. Ou seja, essa ‘realidade’ foi ordenada filosoficamente, a phusis como Ser. Apesar da importância decisiva do aristotelismo para a Europa que Heidegger sublinhou, em certo aspecto foi Platão quem venceu, o que se reflecte na maneira como filósofos e cientistas, quando lhes acontece quererem dizer de que é composta a ‘realidade’ (res), fazem enumerações de ‘coisas’ variadas sem contexto. Porque o ‘contexto’, por aí comecei, é o que foi reduzido pela definição e pelo laboratório, é pois o que fica sempre por conhecer, por pensar (sem phusis). No entanto, quando um cientista pretende analisar um fenómeno em seu laboratório, pondo uma hipótese teórica, como se diz, tem que o ir buscar ao seu contexto, apará-lo e limpá-lo digamos, antes de o pôr em movimento para lhe medir o percurso. Essa hipótese destina-se a integrar a teoria já confirmada que é suposta corresponder à tal ‘realidade’. Mas é como se se esquecesse o passo final que completaria o do ir buscar o fenómeno lá fora, se se esquecesse de ir verificar se batia certo... mas com quê? A tal ‘realidade’ é dispersa e sem contextos, confrontar o resultado com quê? No caso da física, verificam-se os resultados com as variáveis da equação, a verificação, passa-se pois dentro da laboratório. Lá fora, continua a ser o que não se sabe senão por narrativas e opiniões, que não valem para ciências e filosofias. Por exemplo, a lei da gravidade, segundo a qual as coisas caem para a terra com a mesma aceleração, é insusceptível de verificação por causa da resistência do ar segundo as superfícies dos objectos. Visto num tubo de vidro com possibilidade de ar e de vácuo alternadamente, vê-se bem com os nossos olhos a lei que lhes é improvável (no pavilhão do Conhecimento), mas esse tubo é um laboratório!

Regras e aleatório
13. O que está em questão é saber como é que as regras que as ciências descobrem no laboratório funcionam fora dele. A ideologia europeia é a de que o laboratório manifesta o determinismo de todo o universo[1]: uma vez provado experimentalmente, é universalmente determinado. E então, porque é que é preciso o laboratório? Façamos um desvio, dum laboratório de cientistas, só dele é que tenho falado, para o dum (muitos) engenheiro de automóveis. Aí, a questão muda radicalmente, já que é a verificação do funcionamento do artefacto na ‘realidade’ fora do  laboratório que é primordial, de tal maneira que se pode dizer que, ao contrário do cientista, ele tem que ter sempre os olhos fora do laboratório, não na ‘realidade’ mas na ‘cena de circulação’ de transportes e na sua lei do tráfego: é esta, com efeito, que determina a ‘anatomia’ dum automóvel (dum camião, duma mota, duma bicicleta) como aparelho que tem que ser capaz de avançar mais ou menos depressa, acelerar ou travar, virar à direita ou à esquerda, recuar até, avisar outros carros, vê-los à frente mas também atrás, etc. Ao que há que acrescentar algo capaz de lhe dar movimento, um motor, cego por sua vez para o tráfego. O que é que é interessante neste exemplo para a nossa questão? É perceber que tudo o que no laboratório é experimentado rigorosamente segundo várias regiões da física e da química, em condições de determinação que permitem aferir causas e efeitos de movimentos, todas as regras segundo as quais o automóvel é fabricado exercem-se segundo o aleatório do tráfego, cuja lei é a teoria do engenheiro, se dizer se pode, é para esse aleatório que se faz o automóvel.
14. Se voltarmos aos laboratórios científicos, pensemos por exemplo nos laboratórios bioquímicos de biologia. Seja ao nível das células e do seu metabolismo incessante, seja do sangue que lhes transporta as moléculas necessárias, seja do aparelho digestivo e respiratório que ‘carrega’ esse sangue, seja do cérebro e (outras) glândulas hormonais, seja dos órgãos periféricos que permitem situar-se na cena ecológica e dos músculos que nela se deslocam, todas as inúmeras e minuciosas regras que se descobrem estão ao serviço da circulação nessa cena: porquê? Porque todas as complexas moléculas de que a célula precisa têm que ter moléculas de carbono (além de outras), as quais só existem nas plantas (por fotossíntese), nos herbívoros que as comem e que são necessariamente as presas ideais dos carnívoros. O ciclo biológico do carbono explica a lei da selva que determina as anatomias de todas as espécies zoológicas (as imensas diferenças entre estas mostrando que tal determinação não é determinista), que têm que ser capazes de procurar e comer plantas ou animais para sua auto-reprodução e de escaparem a outros que delas se alimentem. Regras e aleatório.
15. O mesmo se passa nas regras duma língua, fonologia e morfologia, sintaxe e semântica, códigos textuais segundo paradigmas dos seus corpus: essas regras, por vezes muito subtis, às dezenas em cada frase mas em que nunca pensamos quando as utilizamos, sob pena de não falarmos, agem de forma quase sempre correcta mesmo em analfabetos e em crianças pequenas com a agilidade enorme que o aleatório da conversa pede, em que nunca se sabe bem o que o outro vai dizer nem por conseguinte o que se lhe responderá. E poder-se-ia continuar com os exemplos dos usos duma casa ou duma fábrica, usos que se aprenderam mas em que há com frequência alterações de contexto que obrigam a improvisar, com as leis dos tribunais que os juízes têm que adaptar a cada caso concreto, e por aí fora. Nem a física escapa, como mostra o exemplo do automóvel. Mas nenhuma pedra cai, segundo a lei da gravidade, se não for movida por algo de aleatório, pé que a empurra ou abalo do seu solo.
16. Não só toda a ‘realidade’ é indeterminada, como o que as ciências descobrem – em laboratórios concebidos segundo condições de determinação – são regras que se adequam a essa indeterminação. O que significa que a Filosofia com Ciências apresenta uma outra vantagem inestimável em termos de teoria do conhecimento: a chamada ‘realidade’ deixa de ser um amontoado desordenado de ‘coisas’ de toda a ordem para ser organizada em cenas de circulação cujas leis são conhecidas. E os mecanismos singulares que nelas se movem, fazem-no autonomamente segundo as regras que as ciências vão descobrindo consoante as suas espécies (moléculas, biológicas, sociedades, línguas): com Heidegger percebemos que estas regras das cenas, isto é de todos os outros mecanismos, heteronomia, são dadas a cada um (alimentação, aprendizagens) como sua autonomia, e retiradas para deixarem que esta seja real. A determinação que descobre a heteronomia no laboratório é pois estruturalmente correlativa da indeterminação de cada autonomia. Como sucedia em sua ourtra maneira na Physica de Aristóteles, a sua Filosofia com Ciências, com a ousia (essência-substância) e os seus indeterminados acidentes.
17. A última coisa a precisar nesta questão do laboratório está longe de ser de somenos, já que nos faz a todos sofrer. Ele reduz o contexto do que descobre, se é de ciências, mas também o de engenheiro, ao utilizar os resultados descobertos, ignora os contextos que vão além do que inventaram: a poluição resulta dessa cegueira redutora. Se um automóvel expele gases, o seu laboratório não experimentou a incidência desses gases na respiração dos indígenas, como terá que fazer um outro laboratório, de medicina desta vez. Os chamados “efeitos secundários”, como em farmácia também, são efeitos que o laboratório não pôde considerar, porque não faziam parte do teste experimental. É aonde está a dificuldade da enorme questão das alterações climáticas: elas dão-se na tal ‘realidade’ sem que haja laboratórios para as testar, apenas estatísticas. É aonde está a dificuldade da enorme questão das alterações climáticas: elas dão-se na tal ‘realidade’ sem que haja laboratórios para as testar, apenas estatísticas. É dessas estatísticas que se está a fazer o seu laboratório, argumentando com as convergências entre os vários factores medidos. A dificuldade é política: como convencer com esses argumentos probabilísticos os que dominam as redes de especulação financeira e os dirigentes políticos que eles cativam com empréstimos, juros e dívidas? Quantas catástrofes serão necessárias?
18. Voltemos ao paradoxo do § 6. A tradição filosófica vinda dos Gregos, da sua invenção da definição, veio até Heidegger como ‘o pensamento pensa’, procurando conhecer o que observa. O ‘labor’ do laboratório com matemática e meios de mensuração veio alterar esta economia do saber no que aos usos sociais, à technê, diz respeito: é a técnica científica agora que ‘labora’ o conhecimento, transforma os usos sociais, ficando o pensamento, inclusive científico, num estatuto digamos de acompanhamento interpretativo, que vai atrás do elaborado pela técnica, pelo ‘sistema técnico’ e financeiro. Foi o que Heidegger chamou Ge-stell e que se tornou muito mais ameaçador estas últimas décadas. Escapa ao controle dos humanos, que são ‘usados’ nele como nova condição humana. Quereria que esta reflexão mostrando que o sistema técnico e financeiro não é determinista mas cheio de indeterminações possa ajudar a buscar saídas em época tão difícil.






[1] “Devemos olhar o estado presente do Universo como efeito do seu estado anterior e como causa do que se vai seguir. Uma inteligência que num instante dado conhecesse todas as forças de que a natureza está animada e a situação respectiva dos seres que a compõem, se fosse suficientemente vasta para submeter esses dados à análise, abraçaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do Universo e os do mais leve átomo: nada seria incerto para ela e o futuro como o passado estariam presentes aos seus olhos” (Laplace, Ensaio filosófico sobre as probabilidades, 1814), citado da Teia www.




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