(determinação e indeterminação no
âmbito
da Filosofia com Ciências)
comunicação a Philosophy of Science in the 21st Century – Challenges and Tasks
Lisboa, Faculdade de Ciências, 4 a 6 dezembro 2013
https://www.youtube.com/watch?
vídeo da comunicação que não foi lida senão parcialmente; segue-se uma entrevista
1. Assim como não é frequente os
filósofos interrogarem-se sobre a razão filosófica de ser da definição, também
não será costume que cientistas e filósofos das ciências se interroguem sobre o
estatuto epistemológico do laboratório, a crer por exemplo no Dictionnaire
d’Histoire et Philosophie des Sciences de Dominique Lecourt (P U F, 1999)
em que a entrada ‘laboratório’ não existe. Ora, são estas as duas
invenções maiores da história gnosiológica do Ocidente, dos Gregos a primeira,
dos Europeus a segunda. Presumo que se se fizesse uma sondagem entre cientistas
e filósofos das ciências sobre a razão de ser do laboratório se encontrassem
respostas análogas às da necessidade de andaimes para construir um prédio, que
são retirados e ignorados uma vez o prédio pronto, um instrumento indispensável
que a reflexão dispensa de pensar. Presumo, presunção talvez. Acontece em todo
o caso que o laboratório se me impôs como crucial em Filosofia com Ciências e é do que me vou ocupar.
2. A definição é uma operação violenta de escrita operada sobre
as narrativas e os discursos retóricos enquanto particulares que retirou o termo a definir dos seus contextos, ou seja que
reduziu esses contextos e os
seus caracteres particulares, incluindo a ampla morfologia dos próprios verbos
das narrativas, e constituiu o texto filosófico enquanto texto que trata de
generalidades (e não mais de particulares, acontecimentos ou opiniões), de essências
impessoais e intemporais, sem lugar nem circunstância, sem contextos pois, e
argumenta sobre elas, nomeadamente indagando de causas e efeitos como razão de
ser das coisas.
3. A especulação medieval mostrou os
limites do alcance da definição. O laboratório de física do século XVII
acrescentou-lhe, à teoria científica de definições feita, a experimentação sobre movimentos detectados por
instrumentos de medição (segundo dimensões que se foram multiplicando nos
séculos seguintes): numa das coisas que sempre faltara aos filósofos, o uso das
mãos, tanto Galileu como Newton eram exímios, fabricando eles próprios a sua
aparelhagem laboratorial. Mas embora acrescentando, o laboratório não deixou de
ser filho da definição, já que, como esta, opera uma redução do contexto donde retira o fenómeno a analisar
laboratorialmente, retira-o do alcance das narrativas e opiniões para o alçar
ao saber gnosiológico intemporal, digamos ‘universal’, se entendermos por
‘universo’ os laboratórios que repitam as operações experimentais e as escolas
e bibliografias onde se ensinam ciências. Poder-se-á então dizer que o que o
laboratório consegue e o torna condição estrutural dessa verdade científica
universal é a criação de condições experimentais de determinação que justamente não existem nos contextos
habituais da chamada ‘realidade’, de que se ocupam narrativas e opiniões. Mas
ao fazê-lo, diz também algo que provavelmente incomodará muitos cientistas e
filósofos das ciências: que fora do laboratório, não havendo determinação, essa
dita ‘realidade’ permanece indeterminada, e é sobre isso que quero reflectir
aqui.
Os três estratos dos textos científicos
4. Proponho que os textos científicos em geral são
compostos de três estratos. O primeiro é o de mais fácil diagnóstico, já que se
dá como citação do que foi experimentação laboratorial, exemplificando com os resultados das medidas se
se trata de física ou química, com as operações linguísticas de comutação
estrutural, as informações dum indígena tribal ao antropólogo. Mas no primeiro
caso, por exemplo os resultados das medições do espaço e do tempo da queda duma
bolinha pela calha duma tábua por Galileu (que aliás não os dá e usava
demonstrações geométricas que notações algébricas ainda não as tinha disponíveis),
esses resultados só têm sentido para servirem de verificação duma equação, das
suas variáveis e e t, que permitem conhecer a velocidade
respectiva (v=e/t) e a sua
aceleração (a=v/t=e/t2). E como as variáveis são parte definitória
da equação, que pertence ao segundo estrato, o da teoria, já que é essa equação que justamente se trata de
descobrir, haverá que dizer que não há fronteira que separe estes dois
primeiros estratos. Mas uma equação, na sua forma algébrica, sendo o essencial
das descobertas da física como veremos, não subsiste sem a sua interpretação em
termos de linguagem duplamente articulada, explicitando que e significa
‘espaço’, t ‘tempo’, v velocidade, a aceleração, = ‘igual
a’, / ‘divisão do primeiro factor pelo segundo’ e 2 ‘multiplicação
do factor por si mesmo ou elevação ao quadrado’. O que implica que o segundo
estrato, o da teoria, se compõe das equações físicas e da sua interpretação, da
compreensão teórica desse nível operacional, que corresponde ao fragmento duma
questão científica regional. Mas tem também a teoria que vier a unificar os
diversos fragmentos experimentais e respectivas equações, o que implica querer
dar conta da ‘realidade’ que diz respeito ao domínio científico em questão.
5. O terceiro estrato é o que Les mots et les
choses de Michel Foucault exibiu
magistralmente: o epistema
comum a três disciplinas diferentes, a respeito dos vivos, das línguas e do
trabalho, quer nos séculos clássicos (entre 1660 e 1780) em torno da representação
em tabelas, quer com a assunção da temporalidade nos respectivos paradigmas no
século XIX, afirmadas respectivamente como biologia, linguística e economia,
como ciências que se autonomizaram da metafísica beneficiando do corte operado
entre ciências e filosofia pela critica kantiana. Sendo comum a três
disciplinas e diferentes na maneira como o são em cada uma, este epistema
revela-se claramente como indissociavelmente filosófico e científico, estas ciências herdeiras da definição
filosóficas. E sem dúvida que se poderia mostrar que também a teoria da física
de Newton, que ele sabia ser uma nova ciência mas a que chamou “filosofia
natural”, e até por vezes “filosofia experimental”, é indissociavelmente
filosófica, pelo papel da definição na teoria, e científica, pela sua
componente matemática e experimental (geometria e mecânica, na sua maneira de
explicar a nova mecânica como ciência das forças).
6. A relação entre a física e a técnica tem no
laboratório um carácter paradoxal. Se distinguirmos entre laboratório de
físico, em que se descobre tal fenómeno, e laboratório de engenheiro, em que se
inventa tal artefacto, por exemplo um automóvel, pode-se perceber que este, por
um lado é polivalente, recorre a várias regiões da física e da química, e que
por outro aplica ao seu artefacto as equações descobertas pela física através
das medidas que calcula segundo as suas equações. O paradoxo reside no facto de
que as interpretações teóricas dessas equações podem variar sem que isso
provoque problemas ao engenheiro: o caso mais flagrante é o das novas
interpretações relativistas (para velocidades perto da da luz) e quânticas
(para dimensões da ordem das partículas sub-atómicas) da física não afectarem a
‘verdade’ da física newtoniana tal como ela continua a ser utilizada na maior
parte dos laboratórios de engenharia: contra a ideia corrente que considera
essa física obsoleta, historicamente ultrapassada, se se tomam em consideração
os laboratórios, isto é o alcance
dimensional dos seus aparelhos de medição, essa física para velocidades
e distâncias terrestres continua verdadeira, já que nessas dimensões as
equações relativistas e quânticas reduzem-se às newtonianas.
Paradigmas, epistemas, fenomenologia
7. Esta distinção entre estratos não é
incompatível com a bela análise kuhniana dos paradigmas, embora a consideração
dos epistemas à Foucauld coloque alguma ‘comensurabilidade’ a paradigmas bem
distintos a olho nu, entre disciplinas e depois ciências claramente distintas,
o que sugere que a tese da incomensurabilidade ignora a dimensão filosófica dos
paradigmas. Mas uma das características mais fortes deste motivo kuhniano é a
exclusão da oposição entre
teoria e experiência, como aliás a
consideração feita acima da relação entre variáveis das equações e resultados
experimentais já sublinhava. Há uma vantagem fenomenológica na maneira de não
se poder dissociar teoria científica e epistema, ciência e filosofia: é que,
numa época em que a distinção clara entre ambas operada pela crítica kantiana
não parece ter já pertinência, dado que as ciências se autonomizaram
suficientemente das questões metafísicas, e é pelo contrário o problema das
suas interrelações, da chamada interdisciplinaridade, que se tornou agudo e
doloroso, nesta nossa época torna-se necessário tentar avançar mais longe do
que Kuhn, penetrar nos próprios paradigmas (que não no laboratório, interdito
aos não especialistas) a indagar do que há de filosofia neles como obstáculo a
essa interdisciplinaridade (e que consiste na oposição dentro / fora, com as
figuras de sujeito / objecto, sucedâneo europeu do dualismo platónico alma /
corpo).
8. Mas não se pode entrar nos paradigmas
científicos duma forma ‘apenas’ filosófica, é necessária a cumplicidade
epistemológica das próprias ciências, não apenas a que é indagada mas de várias
que se possa considerar cobrir o leque das várias regiões científicas. É aqui
que a invocação do epistema de Les mots et les choses é interessante, já que, procedendo embora de uma
maneira bem diferente, se tratou de analisar o epistema comum às principais
ciências do século XX, através das suas descobertas maiores: a teoria do átomo
e da molécula, a biologia molecular e neuronal, a dupla articulação das línguas
(Saussure, Martinet), a relação entre o interdito do incesto e a exogamia como
estrutura elementar das sociedades humanas (Lévi-Strauss) e a teoria freudiana
das pulsões (o critério de discernimento destas descobertas como primaciais é
interno à própria indagação, não susceptível de argumentação a priori).
9. Basta esta lista para se perceber que se trata
duma caminhada bem diferente da de Foucault: com efeito foi a fenomenologia,
que Husserl abriu em termos de poder tratar o que chamou “crise das ciências
europeias” e a que Heidegger primeiro e Derrida em seguida fizeram desvios
capitais, que permitiu a descoberta dum acordo entre as várias ciências
insuspeitado dos próprios cientistas, senão dos filósofos inspiradores.
Heidegger permitiu sair do que enclausurava em Husserl a ‘consciência’ do
sujeito e do seu Ego, vir ao ser no mundo que do ‘exterior’ é instituído na sua ‘interioridade’, vir à historicidade
dos termos filosóficos e à sua impregnação pelos textos científicos (crendo-se
exteriores à filosofia); Derrida prolongou ambos os seus predecessores e,
escrevendo différence como différance, marcou esta (espácio-temporal da vida, da
linguagem e da técnica) como relação estrutural ao outro, atento ao motivo
biológico do ‘programa genético’, permitindo assim desocultar o lugar da aprendizagem como instituição do ser no mundo, em prolongamento da concepção e do nascimento.
Seja dito de passagem que é este motivo da différance como arqui-escrita que dá conta da importância que aqui se atribui
ao laboratório.
10. Deixando de lado os motivos fenomenológicos
desta caminhada, que tornaria este texto ininteligível, há que dizer que o motivo
de fenómeno a descrever se
veio a mostrar extremamente fecundo, já que deve ser à descrição dos seus
fenómenos que se dedicam as várias ciências, a fenomenologia revelou-se pois o
que deveria ser a coisa delas. E foi assim essa relação ignorada das ciências
entre elas e com a fenomenologia que se manifestou, nas suas principais descobertas,
a dimensão filosófica delas ocultada pela critica kantiana, o que permitiu que
elas viessem a ocupar um lugar filosófico nessa fenomenologia reelaborada, o
que chamei Filosofia com Ciências. Basta lembrar
que, desde a ‘alma’ platónica, e apesar de Aristóteles, que o ‘sujeito’ e a
‘consciência’ europeus são privados de corpo e de sexo, de linguagem e de
trabalho, de peso e de sociedade, para se perceber que uma fenomenologia que se
queira capaz de interferir nas difíceis questões da nossa civilização, parida
justamente da definição filosófica e do laboratório físico e químico, precisa
de ser capaz dessas dimensões de que o ‘sujeito’ foi despojado e de que as
diversas ciências se ocuparam com êxitos notáveis ao longo do século que passou.
A nova Filosofia com Ciências
permite em princípio (havendo por certo ainda muito trabalho de competências
variadas a fazer) compreender o universo das coisas, descrever os seus
fenómenos, unificar os saberes hoje tão escandalosamente dispersos.
Cientistas, filósofos e a ‘realidade’
11. É esta Filosofia com Ciências, fenomenologia reelaborada, que proponho
ser o epistema das ciências
actuais. É claro que é preciso ter lata, tanta que ninguém dá por ela. Se for
certo o que disse nas minhas primeiras palavras sobre a falta de atenção dos
cientistas ao laboratório e dos filósofos à definição, entende-se que uns e
outros se pretendam decifradores da chamada ‘realidade’ com que se confrontam
como se fossem observadores exteriores, neutros, entregues ao ‘puro’
conhecimento, ao ‘puro’ pensamento. Ambos pretendem obviamente abarcá-la, a tal
‘realidade’, mas o mal-entendido é inevitável: os cientistas nem sequer
entendem as questões dos filósofos, estes por sua vez tendem a aceitar sem
crítica a versão que os cientistas têm da sua ciência, parecem ignorar a tradição
filosófica que atravessa esta, sabem-se exteriores ao laboratório e incompetentes
para apreciar o que lá se passa. Como posso eu justificar a minha audácia? Vejo
duas razões de ordem pessoal. A primeira consiste em a minha primeira formação
ter sido científica, uma licenciatura em engenharia civil e portanto em física
clássica. A segunda resulta de não ter tarimba filosófica académica e de ter
entrado em filosofia por via de questões (teológicas) em parte alheias a ela;
nomeadamente cheguei às questões que relacionam filosofia e ciências, não
através da física que aí é predominante, mas das questões epistemológicas da
linguística saussuriana que tinham sido colocadas nos anos 60 pelo estruturalismo
francês e onde Derrida tinha afiado as suas primeiras armas. Ora, quando peguei
nessas questões nos anos 80, o campo tinha sido abandonado e apresentou-se-me
como o face a face entre uma ciência muito recente e um pensamento filosófico
fortemente inovador e que fora atravessado por ela. Enquanto que a filosofia das ciências se me dava como uma espécie de negócio
de velhotes viúvos que querem ‘juntar os trapinhos’, sem serem capazes todavia
de perderem todos os hábitos das suas longas vidas, eu encontrei-me, fascinado,
face a um jovem casal virgem capaz de se modificarem um diante do outro. Com
efeito, Derrida passara essencialmente pela ‘diferença’ saussuriana para afirmar
o seu questionamento entre filosofia, oralidade e escrita, enquanto que o
debate estruturalista que pude ler esmorecera em posições filosóficas
antagónicas inadequadas ao que havia de singular na nova ciência. Foi só após
ter sabido compreender o que estava em jogo que se me abriu a porta
fenomenológica de acesso às outras ciências, que se completou quando poucos
anos mais tarde descobri maravilhado o ‘retiro do ser’ heideggeriano na sua
leitura dum capítulo da Physica de Aristóteles.
12. Este, em seu tempo, lera o que chamamos
‘realidade’ como phusis, como
aquilo que cresce e se desabrocha, não só os vivos, mas também as casas e
cidades dos humanos, as suas obras poéticas e retóricas. Ou seja, essa
‘realidade’ foi ordenada filosoficamente, a phusis como Ser. Apesar da importância decisiva do aristotelismo
para a Europa que Heidegger sublinhou, em certo aspecto foi Platão quem venceu,
o que se reflecte na maneira como filósofos e cientistas, quando lhes acontece
quererem dizer de que é composta a ‘realidade’ (res), fazem enumerações de ‘coisas’ variadas sem
contexto. Porque o ‘contexto’, por aí comecei, é o que foi reduzido pela
definição e pelo laboratório, é pois o que fica sempre por conhecer, por pensar (sem phusis). No entanto, quando um
cientista pretende analisar um fenómeno em seu laboratório, pondo uma hipótese
teórica, como se diz, tem que o ir buscar ao seu contexto, apará-lo e limpá-lo
digamos, antes de o pôr em movimento para lhe medir o percurso. Essa hipótese
destina-se a integrar a teoria já confirmada que é suposta corresponder à tal
‘realidade’. Mas é como se se esquecesse o passo final que completaria o do ir
buscar o fenómeno lá fora, se se esquecesse de ir verificar se batia certo...
mas com quê? A tal ‘realidade’ é dispersa e sem contextos, confrontar o
resultado com quê? No caso da física, verificam-se os resultados com as
variáveis da equação, a verificação, passa-se pois dentro da laboratório. Lá
fora, continua a ser o que não se sabe senão por narrativas e opiniões, que não
valem para ciências e filosofias. Por exemplo, a lei da gravidade, segundo a
qual as coisas caem para a terra com a mesma aceleração, é insusceptível de
verificação por causa da resistência do ar segundo as superfícies dos objectos.
Visto num tubo de vidro com possibilidade de ar e de vácuo alternadamente,
vê-se bem com os nossos olhos a lei que lhes é improvável (no pavilhão do
Conhecimento), mas esse tubo é um laboratório!
Regras e aleatório
13. O que está em questão é saber como é que as
regras que as ciências descobrem no laboratório funcionam fora dele. A
ideologia europeia é a de que o laboratório manifesta o determinismo de todo o
universo[1]: uma vez provado experimentalmente, é
universalmente determinado. E então, porque é que é preciso o laboratório?
Façamos um desvio, dum laboratório de cientistas, só dele é que tenho falado,
para o dum (muitos) engenheiro de automóveis. Aí, a questão muda radicalmente,
já que é a verificação do funcionamento do artefacto na ‘realidade’ fora
do laboratório que é primordial,
de tal maneira que se pode dizer que, ao contrário do cientista, ele tem que
ter sempre os olhos fora do laboratório, não na ‘realidade’ mas na ‘cena de
circulação’ de transportes e na sua lei do tráfego: é esta, com efeito, que
determina a ‘anatomia’ dum automóvel (dum camião, duma mota, duma bicicleta)
como aparelho que tem que ser
capaz de avançar mais ou menos depressa, acelerar ou travar, virar à direita ou
à esquerda, recuar até, avisar outros carros, vê-los à frente mas também atrás,
etc. Ao que há que acrescentar algo capaz de lhe dar movimento, um motor, cego por sua vez para o tráfego. O que é que é
interessante neste exemplo para a nossa questão? É perceber que tudo o que no
laboratório é experimentado rigorosamente segundo várias regiões da física e da
química, em condições de determinação que permitem aferir causas e efeitos de
movimentos, todas as regras
segundo as quais o automóvel é fabricado exercem-se segundo o aleatório do tráfego, cuja lei é a teoria do engenheiro, se dizer se pode, é para esse aleatório
que se faz o automóvel.
14. Se voltarmos aos laboratórios científicos,
pensemos por exemplo nos laboratórios bioquímicos de biologia. Seja ao nível
das células e do seu metabolismo incessante, seja do sangue que lhes transporta
as moléculas necessárias, seja do aparelho digestivo e respiratório que
‘carrega’ esse sangue, seja do cérebro e (outras) glândulas hormonais, seja dos
órgãos periféricos que permitem situar-se na cena ecológica e dos músculos que
nela se deslocam, todas as inúmeras e minuciosas regras que se descobrem estão ao serviço da circulação
nessa cena: porquê? Porque todas as complexas moléculas de que a célula precisa
têm que ter moléculas de carbono (além de outras), as quais só existem nas
plantas (por fotossíntese), nos herbívoros que as comem e que são
necessariamente as presas ideais dos carnívoros. O ciclo biológico do carbono
explica a lei da selva que
determina as anatomias de todas as espécies zoológicas (as imensas diferenças
entre estas mostrando que tal determinação não é determinista), que têm que ser
capazes de procurar e comer plantas ou animais para sua auto-reprodução e de
escaparem a outros que delas se alimentem. Regras e aleatório.
15. O mesmo se passa nas regras duma língua,
fonologia e morfologia, sintaxe e semântica, códigos textuais segundo
paradigmas dos seus corpus: essas regras, por vezes muito subtis, às dezenas em
cada frase mas em que nunca pensamos quando as utilizamos, sob pena de não
falarmos, agem de forma quase sempre correcta mesmo em analfabetos e em crianças
pequenas com a agilidade enorme que o aleatório da conversa pede, em que nunca
se sabe bem o que o outro vai dizer nem por conseguinte o que se lhe responderá.
E poder-se-ia continuar com os exemplos dos usos duma casa ou duma fábrica,
usos que se aprenderam mas em que há com frequência alterações de contexto que
obrigam a improvisar, com as leis dos tribunais que os juízes têm que adaptar a
cada caso concreto, e por aí fora. Nem a física escapa, como mostra o exemplo
do automóvel. Mas nenhuma pedra cai, segundo a lei da gravidade, se não for
movida por algo de aleatório, pé que a empurra ou abalo do seu solo.
16. Não só toda a ‘realidade’ é indeterminada,
como o que as ciências descobrem – em laboratórios concebidos segundo condições
de determinação – são regras que se adequam a essa indeterminação. O que
significa que a Filosofia com
Ciências apresenta uma outra vantagem inestimável em termos de teoria do
conhecimento: a chamada ‘realidade’ deixa de ser um amontoado desordenado de
‘coisas’ de toda a ordem para ser organizada em cenas de circulação cujas leis
são conhecidas. E os mecanismos
singulares que nelas se movem, fazem-no autonomamente segundo as regras que as
ciências vão descobrindo consoante as suas espécies (moléculas, biológicas,
sociedades, línguas): com Heidegger percebemos que estas regras das cenas, isto
é de todos os outros mecanismos, heteronomia, são dadas a cada um
(alimentação, aprendizagens) como sua autonomia, e retiradas para deixarem que esta seja real. A determinação que descobre a
heteronomia no laboratório é pois estruturalmente correlativa da indeterminação
de cada autonomia. Como sucedia em sua ourtra maneira na Physica de Aristóteles, a sua Filosofia com Ciências, com a ousia (essência-substância) e os seus indeterminados
acidentes.
17. A última coisa a precisar nesta questão do
laboratório está longe de ser de somenos, já que nos faz a todos sofrer. Ele
reduz o contexto do que descobre, se é de ciências, mas também o de engenheiro,
ao utilizar os resultados descobertos, ignora os contextos que vão além do que
inventaram: a poluição resulta dessa cegueira redutora. Se um automóvel expele gases, o seu laboratório
não experimentou a incidência desses gases na respiração dos indígenas, como
terá que fazer um outro laboratório, de medicina desta vez. Os chamados
“efeitos secundários”, como em farmácia também, são efeitos que o laboratório
não pôde considerar, porque não faziam parte do teste experimental. É aonde
está a dificuldade da enorme questão das alterações climáticas: elas dão-se na
tal ‘realidade’ sem que haja laboratórios para as testar, apenas estatísticas. É aonde está a dificuldade
da enorme questão das alterações climáticas: elas dão-se na tal ‘realidade’ sem
que haja laboratórios para as testar, apenas estatísticas. É dessas
estatísticas que se está a fazer o seu laboratório, argumentando com as
convergências entre os vários factores medidos. A dificuldade é política: como
convencer com esses argumentos probabilísticos os que dominam as redes de
especulação financeira e os dirigentes políticos que eles cativam com
empréstimos, juros e dívidas? Quantas catástrofes serão necessárias?
18. Voltemos ao paradoxo
do § 6. A tradição filosófica vinda dos Gregos, da sua invenção da definição, veio até Heidegger como
‘o pensamento pensa’, procurando conhecer o que observa. O ‘labor’ do
laboratório com matemática e meios de mensuração veio alterar esta economia do
saber no que aos usos sociais, à technê, diz respeito: é a técnica científica agora
que ‘labora’ o conhecimento, transforma os usos sociais, ficando o pensamento,
inclusive científico, num estatuto digamos de acompanhamento interpretativo,
que vai atrás do elaborado pela técnica, pelo ‘sistema técnico’ e financeiro.
Foi o que Heidegger chamou Ge-stell e que se tornou muito mais ameaçador estas últimas
décadas. Escapa ao controle dos humanos, que são ‘usados’ nele como nova condição
humana. Quereria que esta reflexão mostrando que o sistema técnico e financeiro
não é determinista mas cheio de indeterminações possa ajudar a buscar saídas em
época tão difícil.
[1] “Devemos olhar o estado presente do Universo como efeito
do seu estado anterior e como causa do que se vai seguir. Uma inteligência que num
instante dado conhecesse todas as forças de que a natureza está animada e a
situação respectiva dos seres que a compõem, se fosse suficientemente vasta
para submeter esses dados à análise, abraçaria na mesma fórmula os movimentos
dos maiores corpos do Universo e os do mais leve átomo: nada seria incerto para
ela e o futuro como o passado estariam presentes aos seus olhos” (Laplace, Ensaio
filosófico sobre as probabilidades, 1814), citado da Teia
www.
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