1. A questão do casamento entre dois
homens e entre duas mulheres não é uma questão jurídica, como julga quem
argumenta contra ou a favor dele a partir do direito. É uma questão social que
pede uma decisão política, após a qual os juristas têm o importante papel de a
legislar. Como sucedeu com outras questões sociais e politicas, como a abolição
da escravatura que nos Estados Unidos provocou a única guerra civil que eles
conheceram para ser resolvida,
ou a da pena de morte, que eles ainda não resolveram integralmente, tendo o
direito pactuado com ambas até que as sociedades tenham resolvido a respectiva
abolição. Ou o divórcio, a legitimação dos filhos extra matrimónio, para dar
exemplos de ordem familiar, ou melhor dito, relativos à organização do
parentesco, decisões politicas que se opuseram ao que o direito secularmente
estipulou.
2. A organização do parentesco é
estruturante do social, como mostrou uma célebre obra de Lévi-Strauss sobre as
suas estruturas elementares:
homem, mulher, filho e irmão da mulher formam o quadriedro elementar, o irmão
da mulher sendo o que permite figurar a troca de mulheres como o que impede a reprodução biológica de se
auto-centrar em ilhas de descendentes, o que impõe que, em cada grau de
parentesco, duas famílias se cruzem e façam sociedade: o interdito do incesto não tem razões biológicas
mas sociais, foi a sua tese fundamental, ele é condição da exogamia, que as
mulheres vão casar fora de casa. E pode-se continuar pelas sociedades agrícolas
posteriores, cuja célula social não era a ‘família’ mas a casa, simultaneamente realidade de parentesco e de
actividade económica, rural na maioria dos casos (de que entre os Gregos, por
exemplo, os escravos também faziam parte, como se pode ler na Política de Aristóteles); a casa, como os nomes ainda
atestam frequentemente (a mulher passa do nome do pai para o do marido), era
uma coisa entre pai e filhos, com diversas possibilidades de herança (morgadio,
igualdade dos irmãos independentes, comunitarismo patriarcal, “harém dos
primos” no Magrebe, etc.).
3. A nossa família moderna – pais e
filhos habitando em apartamentos de prédios e trabalhando fora de casa os
homens e depois também as mulheres – resultou da fractura das duas dimensões
das casas de antanho, empresas económicas e outras actividades sociais e
politicas por um lado, e famílias por outro, o que começou há pouco mais de
dois séculos no Ocidente. A atestar esta historicidade do casamento que
acompanha a do parentesco: a palavra ‘casamento’ não é primitiva no vocabulário
indo-europeu (Benveniste), como o não é na Bíblia hebraica, a casa era entre
pai e filhos, não entre marido e mulher. Depois mudou (há literatura abundante
sobre isso).
4. O ponto polémico é saber qual é a
importância social do parentesco. Não é tanto a relação entre macho e fêmea,
como a sua estabilidade em ordem à procriação e educação dos filhos, que foi
sempre e em todo o lado preocupação social predominante: a reprodução da
própria sociedade, pela longa aprendizagem dos usos e costumes dos que nascem
pelos adultos (pertencendo hoje em parte essencial à escola, torna possível
divórcios e recasamentos que as casas antigas não permitiam). Aprender os usos
e os costumes é uma tarefa essencial porque os nossos cérebros nascem virgens
de mundo e, sendo órgãos simultaneamente biológicos e sociais, só funcionam por
serem socializados pela aprendizagem (a filosofia nunca se preocupou muito com
esta, desde Platão que queria abolir as casas, o património como o matrimónio).
Ora, se a escola é feita por homens e mulheres, não se vê que um casal de dois
homens ou de duas mulheres não possa realizar cabalmente esta missão essencial
do parentesco: se lhes foi permitido casar, a adopção faz parte essencial
desse casamento. Embora haja
casais heterossexuais que preferem não ter filhos, tendo todo o direito de
casarem, como os homossexuais.
5. O que faz problema aqui, em mim
como em qualquer um, até porventura nos próprios homossexuais que se casam, é
que nós estamos moldados pelo modelo do casamento heterossexual que se encaixa
muito melhor na maneira da reprodução biológica se fazer, a nossa linguagem –
pai e mãe, marido e mulher – que tem a ver com aspectos afectivos fundamentais
da nossa existência precoce, rebela-se aqui (até os psicanalistas se atrapalham
com a complicação da coisa). Assim como o nosso racismo espontâneo só se vence
na nossa intimidade quando temos um/a amigo/a negro/a, também julgo que a
melhor maneira de se perceber o que está em jogo é conhecer de perto o que foi
durante muito tempo o drama tremendo de gente, rapazes e raparigas que se
descobrem como atraídos por gente do seu sexo e isso ser terrivelmente mal
visto socialmente, sem saberem como dizer aos amigos que namoram alegremente
eles com elas, aos pais, a alguém em que pudessem ter confiança. Trata-se, como
em tempos percebi contra os meus preconceitos lendo um texto de Miguel Gaspar,
duma outra reviravolta histórica do parentesco, a que só o tempo dará a
pacificação da língua (quando eu era adolescente, abominavam-se os divorciados,
juntamente com os ateus, os comunistas e os ex-padres casados).
6. Porquê se desabrocha alguém como hetero ou
homossexual? Não creio que haja hoje em dia explicação par isso, entre hormonas
e psicanálises. O mais provável é que pertença ao grande enigma de cada humano
na criação da sua espontaneidade em fazer com grande habilidade o que aprendeu,
como também os talentos intelectuais e as ‘vocações’ para a música, para o
desenho, para a matemática ou para as maquinarias.
7. Aos juristas: compreender a novidade social e
legislá-la.
Público de 7 setembro 2013, com alguns acrescentos
1 comentário:
este homem é inteligente, caraças se é raro!!! muito bom!
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