1. Quando fazemos análises de sangue a vários
parâmetros, é costume junto dos resultados virem entre parêntesis os limites
máximos e mínimos que indicam o equilíbrio saudável de cada parâmetro, o
chamado equilíbrio homeostático. A terapia que o médico seguirá é a de trazer o resultado a esses limites,
subi-los ou descê-los consoante; ainda que se trate duma criança, cuja saúde é
a de alguém em idade de crescer, não passa pela cabeça do médico fazer crescer
todos os parâmetros. Uma ciência terapêutica trabalha entre limites que a
investigação laboratorial testou como os adequados. Igualmente, o código penal
que se aplica nos tribunais indica limites máximos e mínimos de penas para dado
crime, a terapia ficando a cargo do juiz que estudará as circunstâncias para
decidir a pena a aplicar. Que sentido tem pretender que a economia, ciência dos
mercados, deve ser uma ciência terapêutica?
2. O que justifica fenomenologicamente a economia,
como qualquer ciência social (meus textos no blogue filosofiamaisciências2), é
o seu alvo no tratamento dos mercados ser o bem-estar da população de cidadãos.
E o que a crise dos últimos anos mostra é que, não só ela não busca regular os
mercados em vista do bem-estar, como parece incapaz de diagnosticar a doença e
portanto a terapia para a debelar. Uma das aberrações mais óbvias aos olhos do
leigo é a ‘crença’ generalizada, à direita e à esquerda, de que ‘o que é
preciso é crescimento’ e portanto investimento de capitais nesse sentido,
quando por outro lado todos reconhecem que esta crise veio directamente da
especulação dos capitais e do remédio que se aplicou, a recapitalização do
sistema bancário, ao mesmo tempo que apenas cresce o desemprego e a mal chamada austeridade, nome para
disfarçar o empobrecimento generalizado.
3. Este desiderato geral mostra uma ciência
económica cega para o que tem sido proposto de há 40 anos para cá pela sua
prima ecologia, desde o Relatório do Clube de Roma intitulado Os Limites do
crescimento (1972), que tem
clamado para os limites dos recursos naturais e contra o crescimento
descontrolado das maquinarias e químicas industriais que estão a dar cabo do
clima, do ar e das águas. Esta urgência deve tornar-se um axioma da economia,
que obrigue a lógica do mercado a ter em conta a homeostasia do planeta que habitamos.
O desemprego crescente, correlativo da cibernética dos robots e computadores,
obriga a outro axioma: a economia enquanto ciência social deve buscar o
pleno emprego, bem-estar óbvio da população, continuar a boa tendência em dois séculos de industrialização de diminuir
o horário de trabalho, que é outra variável homeostática (em vez de o aumentar
e de despedir na função pública: lógica absurda! com tantos cidadãos desempregados).
4. O desafio será o de inverter o critério
económico dominante, o crescimento dos números em dólares ou euros. Eis a
perversão: aquilo que foi inventado como um excelente ‘meio’ de racionalizar as
trocas, tornou-se o ‘fim’ das bolsas especulativas – caso único de disciplina
universitária que se pretenda ciência ser tão profundamente errada (os Nobel em economia têm justamente 40 anos!)
–, a que se junta o carácter sacrossanto da propriedade do capital em detrimento
da economia real, do mercado que serve o bem-estar dos cidadãos. A propriedade
é inerente ao dinheiro, cada um de nós que vive de salários sabe como a propriedade
de algumas centenas de euros é vital para a liberdade de viver. A questão é o
fascínio pelos grandes números como critério de ‘competitividade’, isto é, a
guerra entre os capitais e a correlativa destruição das suas bases económicas
(como fizeram as duas guerras mundiais, agora sem armas). É esta questão
epistemológica que me parece estar no coração da crise actual, da sua
incompatibilidade entre finanças e economia. Ora, a própria crise tem mostrado
um exemplo de terapia reguladora desta guerra: taxar os grandes capitais, dividendos
e salários, sim, mas para melhorar as condições do modelo social europeu, corresponde
a ter em conta os limites da homeostasia social, manter os mínimos controlando
os máximos, e foi o que fez a social-democracia escandinávia.
5. Desde o início que a figura de Vítor Gaspar me
atrai, inspira seriedade, tem fama de competente nos meios financeiros: que ele
esteja a empobrecer teimosamente a economia e nós todos com ela para pagar dívidas
a juros usurários, eis o que me parece tornar evidente que o problema está no
paradigma da economia, que é urgente alterar.
Público, 1/6/2013
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