sábado, 1 de junho de 2013

DA ECONOMIA COMO TERAPIA




1. Quando fazemos análises de sangue a vários parâmetros, é costume junto dos resultados virem entre parêntesis os limites máximos e mínimos que indicam o equilíbrio saudável de cada parâmetro, o chamado equilíbrio homeostático. A terapia que o médico seguirá é a de trazer o resultado a esses limites, subi-los ou descê-los consoante; ainda que se trate duma criança, cuja saúde é a de alguém em idade de crescer, não passa pela cabeça do médico fazer crescer todos os parâmetros. Uma ciência terapêutica trabalha entre limites que a investigação laboratorial testou como os adequados. Igualmente, o código penal que se aplica nos tribunais indica limites máximos e mínimos de penas para dado crime, a terapia ficando a cargo do juiz que estudará as circunstâncias para decidir a pena a aplicar. Que sentido tem pretender que a economia, ciência dos mercados, deve ser uma ciência terapêutica?
2. O que justifica fenomenologicamente a economia, como qualquer ciência social (meus textos no blogue filosofiamaisciências2), é o seu alvo no tratamento dos mercados ser o bem-estar da população de cidadãos. E o que a crise dos últimos anos mostra é que, não só ela não busca regular os mercados em vista do bem-estar, como parece incapaz de diagnosticar a doença e portanto a terapia para a debelar. Uma das aberrações mais óbvias aos olhos do leigo é a ‘crença’ generalizada, à direita e à esquerda, de que ‘o que é preciso é crescimento’ e portanto investimento de capitais nesse sentido, quando por outro lado todos reconhecem que esta crise veio directamente da especulação dos capitais e do remédio que se aplicou, a recapitalização do sistema bancário, ao mesmo tempo que apenas cresce o desemprego e a mal chamada austeridade, nome para disfarçar o empobrecimento generalizado.
3. Este desiderato geral mostra uma ciência económica cega para o que tem sido proposto de há 40 anos para cá pela sua prima ecologia, desde o Relatório do Clube de Roma intitulado Os Limites do crescimento (1972), que tem clamado para os limites dos recursos naturais e contra o crescimento descontrolado das maquinarias e químicas industriais que estão a dar cabo do clima, do ar e das águas. Esta urgência deve tornar-se um axioma da economia, que obrigue a lógica do mercado a ter em conta a homeostasia do planeta que habitamos. O desemprego crescente, correlativo da cibernética dos robots e computadores, obriga a outro axioma: a economia enquanto ciência social deve buscar o pleno emprego, bem-estar óbvio da população, continuar a boa tendência em dois séculos de industrialização de diminuir o horário de trabalho, que é outra variável homeostática (em vez de o aumentar e de despedir na função pública: lógica absurda! com tantos cidadãos desempregados).
4. O desafio será o de inverter o critério económico dominante, o crescimento dos números em dólares ou euros. Eis a perversão: aquilo que foi inventado como um excelente ‘meio’ de racionalizar as trocas, tornou-se o ‘fim’ das bolsas especulativas – caso único de disciplina universitária que se pretenda ciência ser tão profundamente errada (os Nobel em economia têm justamente 40 anos!) –, a que se junta o carácter sacrossanto da propriedade do capital em detrimento da economia real, do mercado que serve o bem-estar dos cidadãos. A propriedade é inerente ao dinheiro, cada um de nós que vive de salários sabe como a propriedade de algumas centenas de euros é vital para a liberdade de viver. A questão é o fascínio pelos grandes números como critério de ‘competitividade’, isto é, a guerra entre os capitais e a correlativa destruição das suas bases económicas (como fizeram as duas guerras mundiais, agora sem armas). É esta questão epistemológica que me parece estar no coração da crise actual, da sua incompatibilidade entre finanças e economia. Ora, a própria crise tem mostrado um exemplo de terapia reguladora desta guerra: taxar os grandes capitais, dividendos e salários, sim, mas para melhorar as condições do modelo social europeu, corresponde a ter em conta os limites da homeostasia social, manter os mínimos controlando os máximos, e foi o que fez a social-democracia escandinávia.
5. Desde o início que a figura de Vítor Gaspar me atrai, inspira seriedade, tem fama de competente nos meios financeiros: que ele esteja a empobrecer teimosamente a economia e nós todos com ela para pagar dívidas a juros usurários, eis o que me parece tornar evidente que o problema está no paradigma da economia, que é urgente alterar.
Público, 1/6/2013 

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