1. Foi no século XVII que foi inventado
uma forma de instituição social de inscrição radicalmente nova (havia a igreja
e a escola), o laboratório de física. Eis como Newton fala do que lá se
passa. “Os Antigos
partilharam a Mecânica em duas classes : uma teórica, que procede por
demonstrações exactas[1], a outra prática. Desta última
fazem parte todas as Artes chamadas Mecânicas[2], donde esta ciência [a nova
Física] tirou a sua denominação : mas como os artesão têm por costume
operar pouco exactamente, veio daí que se distinguiu tanto a Mecânica da
Geometria, que tudo o que é exacto é ligado a esta, e o que o é menos, à
primeira. No entanto, os erros que comete aquele que exerce uma arte, são do
artista e não da arte. […] A Geometria pertence em algo à Mecânica, já que é
desta que depende a descrição das linhas rectas e dos círculos sobre as quais
ela é fundada. É verdadeiramente necessário que aquele que se quer instruir em
Geometria saiba descrever [desenhar] essas linhas antes de aprender as
primeiras lições dessa ciência : depois é que se lhe ensina como é que os
problemas se resolvem por meio dessas operações. Vai-se buscar à Mecânica a
solução deles : a Geometria ensina o seu uso, e glorifica-se do magnífico
edifício que ela eleva indo buscar tão pouco fora dela. A Geometria é no
entanto fundada sobre uma prática mecânica, e ela não é mais nada senão um ramo
da Mecânica universal que trata e demonstra a arte de medir. Mas como as artes
usuais se ocupam principalmente de mover os corpos [cargas pesadas, nos estaleiros],
resultou disso que se assignou à Geometria a grandeza [a extensão] por objecto
e à Mecânica o movimento : assim, a Mecânica teórica [a sua nova Física]
será a ciência demonstrativa dos movimentos que resultam de quaisquer forças,
das forças necessárias para gerar quaisquer movimentos” (Newton, 1966)[3]. O movimento, isto é, o tempo e
as forças, eis o que há de novo, o que a Mecânica acrescentou à Geometria[4].
2. Quando nós hoje falamos de matemática,
pensamos em cálculo e em equações, em aritmética e álgebra, não pensamos em
geometria, que se tornou numa área afim. Mas, como antes Galileu, espantamo-nos
de vê-los argumentarem o que para nós é física de maneira geométrica : na
sua época, a do ‘more geométrico’ de Spinoza, geometria era matemática, e assim
é no raciocínio de Newton ; o que no entanto ele mostra é que se trata de
algo que é mais do que a nossa matemática – puras notações convencionadas que
funcionam exactamente segundo uma lógica rigorosa imanente a essas convenções
–, ela é uma matemática que mede, segundo a etimologia de geo-metria, medida da terra. Ou
seja, métrica, ela é a matemática da física, que se faz adequadamente a
instrumentos de medição. O que leva Newton a associá-la, ela que tem fama e
proveito de exacta, à mecânica a quem essa fama falta. E o que é a
mecânica ? O diálogo de Galileu sobre duas novas ciências, a que voltarei adiante, é
contado ter-se passado em Veneza num arsenal de construção de barcos, que é
justamente o reino da mecânica, do movimento de cargas pesadas com aparelhagem
própria. Newton : a delicada e exacta geometria só se faz com movimentos e
aparelhos de desenho que relevam da rude e inexacta mecânica. O que procura ele
então ? Nada mais nada menos do que chamar Mecânica à (por nós chamada)
Física que vai demonstrar longamente. Ele está a estabelecer uma aliança entre
matemática, instrumentos de medida e movimentos mecânicos como sendo a nova
física que se está a constituir então na Europa, ele não sendo mais do que um
anão aos ombros de gigantes, disse algures citando um medieval. Mas, sabendo
embora, como Galileu, que se trata duma ‘ciência’, ele não a trata pelo nome
que vingou (aristotélico, aliás), diz em título : princípios
matemáticos da filosofia natural. Este título acrescenta então um outro termo à tríade, cuja
aliança constitui o laboratório : ‘labor’ implica justamente a introdução
da mecânica na filosofia natural, no projecto do saber europeu (instituído de
longa data pelos tais gigantes). O que é que a filosofia tem de pertinente para
a nova ciência ? Newton não precisa de dizer que se trata da velhíssima
definição herdada dos Gregos e dos termos definidos e a definir da filosofia
natural, dotada agora de princípios matemáticos, isto é, geométricos e
mecânicos. Nas nossas categorias, que vieram a distinguir fortemente filosofia
de ciências justamente por estas terem laboratório no coração das suas
operações ao contrário daquela, que só tem ‘escritório’, para nós hoje a “filosofia natural” de Newton diz o lugar da teoria
como essencial a esse laboratório.
3. Há todavia um problema nesta pretensão
‘filosófica’ da nova ciência : como é que o laboratório pode incidir no
conhecimento, no saber ? É que a mecânica que Newton recupera e nobilita
pertence aos usos sociais de habitação, usos de construção ou de transporte,
tem funções empíricas bem definidas que não se adequam de forma evidente às
escritas que são a linguagem duplamente articulada e a matemática. A própria
geometria, que pede instrumentos de desenho para fazer as figuras das suas
demonstrações, põe um problema que Husserl resolveu fazendo uma redução
fenomenológica
das circunferências empíricas das rodas ou dos pratos do mundo da habitação
para reter apenas, como ‘geométrica’, a circunferência ideal que os geómetras
conhecem, por exemplo, pela equação
x2 + y2 = R2
com raio R e centro no ponto de encontro das coordenadas OXY. O que é que há
que reduzir da mecânica e dos instrumentos de medição laboratoriais para que a
física de Galileu e de Newton possa caber cabalmente na cena de
inscrição ? Para responder, teremos que fazer uma citação do tal diálogo
de Galileu sobre as duas novas ciências, a primeira dizendo respeito ao
movimento uniformemente acelerado que ele analisou fazendo correr uma bolinha
bem alisada na calha duma prancha inclinada e medindo os espaços percorridos e
os respectivos tempos ; depois de verificar que não há correlação linear
entre eles, pôs a hipótese certa, a de haver correlação entre os espaços e os
quadrados dos tempos (raciocínio provavelmente de indução geométrica do teorema
de Tales), que os resultados verificam (mas, ‘filósofo’ ?, Galileu não deu
nem as medidas nem os resultados, temos que lhe fazer confiança). Tinha porém
um problema técnico, não havendo cronómetros na época, como medir os tempos de
forma exacta ? Espante-se quem não conheça o truque. “Para medir o tempo, tomávamos um
grande balde cheio de água que atávamos bastante alto ; depois, por um
orifício estreito praticado no fundo escapava-se um fio de água fininho que era
recolhido num recipiente durante o tempo em que a bolinha rolava na calha. As
quantidades de água assim recolhidas eram pesadas de cada vez numa balança
muito sensível, e as diferenças e proporções entre os pesos davam-nos as
diferenças e proporções entre os tempos”[5]. O que há de engraçado nisto, é
que Galileu, a quem Husserl atribuía os males da evolução da geometria,
anticipa por assim dizer a redução fenomenológica nesta maneira extraordinária
de medir o tempo pesando água : as diferenças e proporções entre os pesos
e os tempos são as mesmas, as medidas da água dão para medir o tempo sem
ser preciso um cronómetro. O tempo enquanto tal, o tempo empírico medido, é
reduzido, a própria medida laboratorial é reduzida[6], isto é, a mecânica do movimento
da bolinha e a dimensão mecânica da própria geometria, as medições com
aparelhagem, tudo o que, empírico, releva do laboratório enquanto mecânica,
enquanto cena da habitação, é reduzido como condição da ciência física se
inscrever como saber, como conhecimento[7]. O que tem como consequência que
a Física, enquanto necessariamente laboratorial e redutora do seu empírico, não
conhece nem o espaço nem o tempo, mas deles apenas as diferenças das respectivas medidas[8]. Ora, uma diferença não é
‘nada’, não é ‘substância’ : reter apenas as diferenças implica a redução
das ‘substâncias’ e todo o carácter empírico do laboratório e da mecânica, dos
instrumentos e do movimento experimental, de tudo o que releva da cena da
habitação. Em resumo, a Física não conhece as substâncias com que lida,
des-substancializa-as, anticipando Saussure[9], Husserl, Heidegger e Derrida,
nenhum deles tendo sido possível sem a desconstrução operada pela Física.
4. E como é que estas medidas de espaço,
tempo e outras dimensões, obtidas por aparelhos laboratoriais, mas
necessariamente empíricas, experimentais, como é que elas contribuem para o
saber científico ? Por via das equações físicas em que elas vão ocupar o
lugar das chamadas variáveis e permitir calcular dimensões não mensuráceis
directamente, no exemplo de Galileu, a aceleração da bolinha (em metros por
segundo quadrado, em categorias actuais). Isto é, são as equações depois de
verificadas experimentalmente e podendo-o ser em qualquer outro laboratório em
qualquer parte do mundo onde os haja, são elas que constituem saber físico
universal. É claro que haverá bastantes dimensões novas (peso, temperatura,
intensidade eléctrica, e por aí fora) com respectiva instrumentalidade, havendo
como condição de universalidade que as unidades de medida convencionadas sejam
aceites em todo o lado, bem como a álgebra matemática. Mas uma das lições da
citação de Newton feita é que estas equações sejam, não apenas matemáticas, mas
geométricas em sentido lato, isto é equações adequadas exclusivamente aos
intrumentos de medição, sejam cronómetros sejam baldes de água. Do facto de
Newton não ter referido a teoria (da filosofia natural), podemos induzir uma
tese que não será pacífica : estas equações terão que ser interpretadas
teoricamente, por conceitos definidos à maneira filosófica, com discussões entre
os cientistas sobre essas interpretações, ou até com ignorância confessada,
como o mesmo Newton quando, tendo calculado a aceleração da gravidade terrestre
(9,8 m/s2), disse que não era capaz de ‘fingir hipótese’ sobre o que
era essa força da gravidade, essa atracção a distância, Feynman acrescentando
em 1961 que ainda hoje não se sabe em que é que esta consiste. Ora, esta
ignorância teórica (ou filosófica) não impede que equações e mensurações
relativas a essa aceleração continuem cientificamente correctas, ainda que a
física da relatividade tenha questionado as noções newtonianas de espaço e
tempo absolutos para velocidades perto da luz. Por exemplo que aqui importa,
uma boa parte da engenharia clássica que ainda hoje se faz, funciona na base da
correcção científica da Mecânica de Newton, Einstein não sendo para aí
chamado : o núcleo duro da Física enquanto saber científico (distinto do
saber filosófico) consiste nas equações ‘more geometrico’, é delas que
boa parte da técnica moderna depende.
5. P.S. Parece-me intrigante que na Lua não haja gravidade, como testemunharam os que lá caminharam. A fórmula newtoniana da atracção dos corpos na proporção directa das massas e inversa do quadrado das distâncias terá que se lhe diga: não se aplica às coisas na lua? Nem na terra as pedras não são ímanes, parece que só a Terra, enquanto planeta com dada densidade, é capaz de gerar gravidade (e é o que a constitui, as coisas de que ela é feita. Será que os físicos deram por ela, têm explicação para essa não 'universalidade' da fórmula de Newton (ou fui eu que a entendi mal?). O que me parece é que esta questão torna ainda mais difícil de compreender como é que se formaram as estrelas: será que foi só com elas que surgiu a gravidade? Difícil de compreender como é que se foi do tal big Bang até elas!
5. P.S. Parece-me intrigante que na Lua não haja gravidade, como testemunharam os que lá caminharam. A fórmula newtoniana da atracção dos corpos na proporção directa das massas e inversa do quadrado das distâncias terá que se lhe diga: não se aplica às coisas na lua? Nem na terra as pedras não são ímanes, parece que só a Terra, enquanto planeta com dada densidade, é capaz de gerar gravidade (e é o que a constitui, as coisas de que ela é feita. Será que os físicos deram por ela, têm explicação para essa não 'universalidade' da fórmula de Newton (ou fui eu que a entendi mal?). O que me parece é que esta questão torna ainda mais difícil de compreender como é que se formaram as estrelas: será que foi só com elas que surgiu a gravidade? Difícil de compreender como é que se foi do tal big Bang até elas!
[3] Plutarco, a propósito de Arquimedes,
conta como foi Platão quem vituperou os primeiros ensaios de aplicação da
geometria à mecânica. A citação termina assim: “a mecânica destituída foi assim
separada da geometria e desprezada pela filosofia durante muito tempo;
tornou-se um ramo da arte militar” (citado por Aldo Schiavone, 2003, L’histoire brisée. La Rome
antique et l’Occident moderne,
Bélin, p. 174).
[4] Que foram já
o fulcro das duas novas ciências de Galileu, sobre o movimento uniformemente
acelerado e a resistência dos sólidos a forças que os deformam.
[5] Galilée, 1970,
p.144.
[6] Seria por ter a
intuição disso que Galileu não deu os resultados ? era costume da época ?
[7] A redução é uma operação de
pensamento que consiste em suspender a ‘substancialidade empírica’ do fenómeno
a pensar como condição do conhecimento ‘ideal’ dele. Mas este ‘ideal’ é um
diferencial de linguagem, seja matemático ou lógico (caso de Husserl), seja de
linguagem, tipo definição ou comutação linguística. Há com efeito várias
reduções, as de cada tipo de laboratório científico, por exemplo, da moeda em
economia, a partir daquela que um nome (cão, casa, filho) faz das
particularidades de cada coisa que assim nomeia, a da escrita, a de qualquer
aprendizagem.
[8] É o que significa a
afirmação bombástica de Heidegger de que “a ciência não pensa”, com os seus
métodos. O que ele devia ter acrescentado: ela pensa enquanto elabora teoria
para montar as experiências e entender os resultados, pensa como filósofo de
laboratório.
[9] Derrida aplicou a
redução à diferença significante de Saussure, reduzindo os sons empíricos para
não reter senão a diferença entre eles (De la grammatologie, Minuit, 1967, pp.
65-94).
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