1. Os
nossos olhos são geocêntricos, vêem o sol de nascer e pôr-se rodear a terra,
tal como o nosso comboio parado parece andar quando outro se desloca em sentido
inverso. Foi por isso que a primeira grande demonstração da (astro)física
europeia por Copérnico, Galileu, Kepler e Newton provocou tanto escândalo nesse
tempo. O que é extraordinário é que todos nós que passámos pelo liceu aceitamos
de boa mente essa contradição da ciência com as nossas evidências, destes
nossos olhos que a terra há-de comer, como se dizia antes da moda das
incinerações, embora as aventuras dos astronautas tenham vindo ajudar a essa
aceitação. É certo que, como dizia Cornelius Castoriadis, a verdade geocêntrica
faz parte intrínseca dessa demonstração, já que as medidas (de Tycho Brahe) com
que esta foi calculada são geocêntricas, feitas a partir da terra segundo as
evidências dos olhos dos astrónomos. Mas não me lembro, após 60 anos de
leituras de autores muito variados, de ter visto nenhum filósofo espantar-se
dessa contradição – salva a honra de Husserl cujo fundamento na percepção lhe
exigia que “a terra não se move” – entre a primeira grande tese científica e as
nossas evidências sensíveis (contestadas estas por cartesianos, é certo). Quem
sabe como é que Newton conseguiu enfim demonstrar o heliocentrismo?[1] Não a esmagadora maioria das gentes, com certeza.
Conclusão: a física não é democrática, há um acto de crença generalizada na adesão à ciência. O problema de Galileu com a
Igreja, ainda que não fossem esses os conteúdos da disputa, atesta historicamente
o início da transferência de crenças entre as duas instituições, consumada com
a posterior generalização da escola e com a viagem de Armstrong.
2. O que é picante é que, no início
do século XX, Einstein e os outros seguidores de Planck tenham desembocado
estrondosamente na nova área das partículas, tanto os fotões da luz e a sua
velocidade inultrapassável como os átomos e os seus constituintes, tais entes
ínfimos tendo comportamentos que punham por sua vez em questão as evidências da
física clássica de Newton. Ainda hoje o problema não está resolvido e andam em
busca de unificar o que ficou quebrado por laboratórios irredutíveis.
3. Então não é que as ciências acima
da matéria inerte e da sua química mineral, se encontram numa situação
semelhante, sem saberem todavia que os seus paradigmas de busca integram
evidências que os impedem da cientificidade postulada? Digamos que acontece nas
ciências dos vivos, das sociedades humanas e das suas linguagens, cujos
cientistas estarão presos muitas vezes ainda em epistemologias deterministas
fora das quais não sabem o que seja ‘ciência’. Como as especializações se
acentuaram muito, o apetite por questões epistemológicas ter-se-á esbatido e,
se acaso esbarrassem com o título deste meu texto, achariam provavelmente que
se trata duma evidência mais ou menos pueril.
4. Mas o que me interessa é a etapa seguinte a
esse determinismo filosófico obsoleto, quando biólogos, neurologistas,
cientistas sociais, filólogos ou semióticos compreendem que os entes dos seus
domínios – vivos, unidades sociais e discursos ou textos – são constituídos
como autónomos em cenas que os reproduzem e onde circulam e que, por via
de consequência, as regras que vão descobrindo são justamente dadas como as dessa autonomia de reprodução. Marquei com itálicos as chaves desta concepção
geral do saber sobre tudo o que releva da vida: são autónomos, sim, com regras
que o permitem, mas essas regras são-lhes dadas por outros vivos, por geração e
reprodução temporal, regras (da espécie, da tribo, da língua e do paradigma) de
heteronomia, a qual permite entes individualmente distintos pois que os deixa
ser em sua autonomia, heteronomia
dissimulada, retirada (Heidegger). O motivo derridiano do rasto vivo (trace) é a descoberta filosófica desta regra
geral do ciclo “vida morte”.
5. É quando se chega aqui que se entende que os
cientistas destas vastas áreas têm, como todos nós, uma evidência que lhes oculta este processo de doação retirado,
dissimulado, das regras autonómicas, a evidência da sua interioridade como
ponto de partida do conhecimento, evidência que o cogito cartesiano reforçou: donde o primado do
‘interior’ (substancial) sobre o que o gera como ‘ambiente’, do corpo vivo, do
sujeito, da população, do falante ou escrevente em suas intenções.
6. Na biologia molecular, são os genes que
ganharam a primazia, como é claro na afirmação do biólogo chileno Francisco
Varela, que esteve em voga nos anos 80 e 90, que defende o primado do indivíduo
sobre a espécie: “a reprodução e a evolução, assim como
todos os fenómenos que decorrem delas, aparecem como fenómenos secundários, subordinados à existência e ao funcionamento
autopoiéticos destes sistemas”[2]. É a noção de autopoiesis que é esclarecedora, um
sistema vivo auto-reproduz-se sem sequer a alimentação ser tida em conta: a
reprodução e a evolução são secundárias, como se a determinação genética viesse
substituir o criador de outrora pelo acaso das mutações! Em termos de lógica, é
tanto mais inacreditável quando há o espantoso livro de Darwin, que mostra como
as anatomias foram sendo ‘inventadas’ pela evolução seleccionadora das
anatomias que conseguem subsistir à cruel “guerra da natureza”, à lei da selva.
Entre a galinha e o ovo, não há escolha possível, ambos são estritamente
necessários ao longo das gerações e das suas evoluções, isto é provieram da
cena ecológica que dá galinhas que põem ovos donde nascem galinhas que põem
ovos porque também dá outros vivos como alimentação possível. A cena é
prioritária, já lá está sempre já com a sua lei resultante do ciclo do carbono
a partir da fotossíntese, mas ela não existe sem galinhas e ovos, tal com o
campo do sistema planetário não existe sem planetas: a prioridade é
epistemológica, não cronológica. Ou seja, não se trata de
inverter a relação dentro / fora : se a lei da selva determina a imensa
variedade das espécies zoológicas e botânicas, só o faz através da coordenação
genética da anatomia de cada indivíduo na sua luta pela sobrevivência que Darwin
tão bem compreendeu.
7. Na neurologia, regozijo-me com a evolução de
Damásio cujo novo livro A estranha ordem das coisas estou ansioso por ler, já que anuncia que, após
ter vinculado a mente aos neurónios em O livro da consciência (2010), virou biólogo que se interessa
especialmente pelo sistema cerebral e põe este na dependência da homeostasia do
sangue. Mas parece continuar a ignorar o papel da aprendizagem dos usos da
tribo, incluindo a linguagem, sem a qual nenhum cérebro escapa ao pior dos
autismos: também aqui a tribo já lá é condição estrutural, como se depreende
facilmente ao ver como somos indígenas tão diferentes, consoantes as vozes com
as nossas tribos. Mas voltarei a Damásio, à maneira como ele define
‘sentimentos’, com grande esperança de compreender bastante melhor toda esta
espantosa economia anatómica.
8. No que diz respeito às ciências da linguagem, a
linguística saussuriana deu o grande volte face sem o qual Derrida teria sido
impossível, ele que permitiu que a minha tese de doutoramento tivesse resolvido
a contradição estruturalista entre língua e fala, que não vão uma sem a outra,
esta multiplicada pelos inúmeros indivíduos falantes, aquela sendo a mesma em todos eles sem ser nada sem eles, dando-lhes
as suas falas vindas de fora, de outros falantes, sendo o sistema paradigmático
das regras que permitem o entendimento entre os falantes dessa língua. Esta
linguística respeita a diferença entre as línguas, enquanto que a gramática
gerativa de Noam Chonsky (excelente intelectual!) coloca uma semântica lógica
no inatismo dos cérebros cartesianos e dela faz decorrer árvores sintácticas
prévias às diferenças fonológicas e morfológicas de maneira a serem idênticas
para todas as línguas, que obviamente ‘desaparecem’ na ausência da fonologia e
da morfologia, sem lugar que não seja secundário para as tribos e para as
aprendizagens, essas coisas vindas de fora que nenhum cartesiano pode admitir.
Contra esta maneira de ignorar as tribos e o seu papel na aprendizagem da
língua, basta reparar nos sotaques regionais alentejanos, minhotos, alfacinhas
ou açorianos. Não se trata duma Linguística, duma ciência das línguas em seus
usos específicos, mas duma gramática geral, que segue uma das duas grandes
tradições greco-europeias, a duma lógica sobrepondo-se à linguagem, uma técnica
de tradução para diferentes línguas a partir do inglês e da sua morfologia
quase zero. Como é que as traduções automáticas da Google se fazem será um
ponto em seu favor, mas por certo que supõem trabalhos linguísticox empíricos
infindos de adaptação de detalhes.
9. Ferdinand de Saussure, Louis Hjelmslev, Émile
Benveniste, André Martinet, Maurice Gros e outros fizeram o trabalho necessário
em Linguística, que não acompanhei nas últimas décadas, creio que é no campo
das semióticas textuais e das exegeses literárias que há questões
interessantes, embora também aí não possa falar senão da exegese bíblica. De
qualquer forma, limitar-me-ei ao aspecto que aqui interessa, que tem a ver com
a definição de texto e de leitura, lembrando o papel nesta dos dicionários,
fundamentais nomeadamente quando se trata de textos antigos e de línguas
estranhas, bem como da necessidade do conhecimento de antropologias de usos e
costumes bem diferentes dos nossos, coisas em que todas as cautelas são poucas.
Há que ganhar antes de mais conhecimentos de historiador sobre a época da
escrita e de gramática da língua do texto em questão, um bom dicionário sempre
à mão. O que sendo necessário não é suficiente, justamente por causa das nossas
evidências em relação à leitura, em que pensamos o texto como vindo das
‘intenções’ de alguém e ambicionamos como meta máxima poder chegar a tais
intenções preciosas, reveladoras da interioridade do escritor ou pensador. É frequente
dar uma importância desmedida a cartas ou diários íntimos, ou inéditos desdenhados
pelo próprio, como podendo ajudar a decifrar a ‘verdade’ dos textos publicados,
o verdadeiro pensamento ou mensagem do seu autor. Depois há questão das
palavras difíceis ou raras, um hapax[3] a desvendar sagazmente, a discutir com outros exegetas. Os dicionários não propõem um único significado,
multiplicam as polissemias possíveis, consoante os contextos. Ora, a regra de
ouro aqui é que é o próprio texto o primeiro contexto a privilegiar, devendo-se
construir, à maneira de Barthes ou de Lévi-Strauss, este para corpus de mitos
vizinhos, aquele para esse mesmo texto que se lê, construir os códigos de significações. Curiosamente, nos dois textos
escritos em grego que analisei à maneira do S/Z de Barthes, o evangelho de Marcos e a Poética de Aristóteles, dei-me conta de que as versões modernas traduziam as
várias ocorrências do termo logos por termos diferentes e que foi o cuidado de as correlacionar entre elas e
respectivos contextos próximos uma das traves mestras das minhas duas leituras
desconstrutivas, se posso dizer, a mais de dez anos de distância uma da outra.
Seja o caso de Marcos: o logos é a própria narrativa da prática de Jesus, do que ele faz e lhe acontece,
o que por exemplo permite interpretar as parábolas da semente e do semeador
(cap. 4) como dizendo respeito a ele e não à ‘palavra de Deus’ em geral, como
seria o caso em João 1,1[4]. O que está em jogo nesta questão é que nós,
leitores modernos, crentes ou não, sobrevalorizamos o pensamento (do sujeito,
da alma em Descartes) sobre a linguagem, que varia com os povos e suas línguas.
Os códigos são tecidos da língua que o texto – o têxtil – teceu para si,
podendo o autor dar-se conta disso ou não. Não é preciso que Freud nos tenha
ensinado que não sabemos coisas importantes de nós, que por vezes surpreendem o
sujeito em psicanálise, com o que ele é levado a dizer sem querer e sem saber;
basta pensarmos na rapidez com que falamos ou escrevemos para perceber que uma
boa parte da escrita faz-se automaticamente – tudo o que são elementos de
ligação sintáctica, os sincategoremas da escolástica, preposições, conjunções,
artigos, possessivos, e a morfologia dos verbos e nomes, a fonologia – mas
mesmo termos significantes verbos e advérbios, substantivos e adjectivos, vêem
muitas vezes como que já ligados entre si sem quase atenção nossa, mais virada
para o que virá a seguir e – sucede como boa ventura! – este ‘que vem a seguir’
surpreende-nos, não estávamos à espera, não tínhamos pensado assim. Ora bem, é
este tecer-se do texto em sua quase autonomia (as regras jogam sem darmos por
elas) que escapa às ‘intenções’ do que o escreve e o leva por vezes
inadvertidamente a alusões, confissões ou contradições que não se quereriam
escrever. Ou quando falamos e a língua nos foge para a verdade, como se diz do
que se não queria dizer. O texto pensa mais do que o próprio pensador, sem que
haja que opor os dois, é claro: nesse pensar mais do texto quem pensa é a
língua e a cultura da tribo, doutros textos lidos ou ouvidos. Em sociedades que
nos são culturalmente estranhas, este tipo de leitura de fenomenologia textual
permite aceder a conexões que não são nossas. Os textos bíblicos foram cobertos
pela filosofia grega pelo menos a partir de Orígenes nos inícios do século III,
filosofia essa que reduziu deliberadamente toda a antropologia hebraica, considerada “bárbara” por um platónico como
Orígenes teorizando sentidos morais e espirituais porque os literais, históricos,
não eram dignos de Deus (ou de Platão)[5]. Foi esta tendência da teologia platónica de
Alexandria que dominou a época helenística do cristianismo, nomeadamente se lhe
opondo a escola de Antioquia (na Síria) de Teodoro de Mapsuéstia, mais perto do
mundo bíblico e das suas categorias históricas literais[6].
10. O cap. 4 de Le Jeu des Sciences
avec Heidegger et
Derrida, consagrado às ciências
das sociedades (antropologia, história e sociologia), definia sociedade como “a
assemblagem de unidades locais de habitação, o sistema de usos que uma
população transmite de antepassados em descendentes na ‘terra’ que os deu”.
Esta definição pretende-se válida para toda e qualquer sociedade, que se diferencia
das outras pelos respectivos sistemas de usos e pelo território, contando com a
confissão de dois sociólogos franceses que admitiam não haver definições gerais
que abarcassem todas as sociedades humanas, sem que eu possa aqui garantir como
é que nos inumeráveis textos de especialistas, incluindo as ciências ‘sociais’
(que só abarcam uma zona de estruturas, o que aliás significa que ‘sociologia’
como ciência geral das sociedades contemporâneas não existe), é hoje tratada a
questão da definição implícita de sociedade. Vou assim supor alegremente que
ela inclui população, em geral vista como conjunto de indivíduos, e território[7]. Este é um conceito geográfico ou topográfico,
dele mesmo despido de população, o que contrasta com o nosso termo ‘terra’ que
inclui uma dimensão ecológica essencial: há que haver espécies zoológicas e
botânicas que dêem possibilidades de alimentação, assim como fontes de água e
qualidade respirável de ar, donde que seja a terra (como nós dizemos ‘a minha
terra é...’) que dê a cena ecológica de qualquer sociedade, de que a população
faz parte. Isso inclui algumas condições biológicas: a) a de ter que se
alimentar quotidianamente, b) a de ter de garantir segurança diurna e nocturna
de todos, mormente crianças e mães, c) a que é correlativa da descoberta
essencial de Lévi-Strauss (interdito de incesto e consequente exogamia na
lógica do parentesco), a necessidade de controlar o excesso de energia e desejo
sexual numa espécie que não conhece a restrição deste a períodos de cio das
suas fêmeas. Ora bem, e só ao escrever desta o percebi, o motivo de ‘unidade
local de habitação’ como ‘sistema de usos’, que faz da população gente organizada
e não uma mera ‘multidão’, surge como resposta a estas condições ecológico-biológicas, tanto os usos como as unidades locais. Mas esses
usos excedem também tais condições, já que incluem a linguagem, mitos e rituais
sobre as origens ancestrais, bem como ornamentações e festas, além de
dispositivos, digamos políticos, de contenção de rivalidades.
11. O motivo de usos que se aprendem,
a que todas as sociedades dão importância crucial, joga pelo conservantismo
estrutural (como as células e as espécies em biologia): o movimento social
consiste na reprodução das estruturas recebidas dos antepassados. Desde o
início tribal se pode encontrar o que perdurará: Freud tendo mostrado como
somos estruturados a partir desse interdito e Elias como as relações entre homens e mulheres de casais diferentes nas cortes monárquicas jogaram para afinar as
etiquetas dos costumes entre ambos os sexos quando não casados, todas as
unidades locais que vão além do familiar – escolas e empresas – terão que
interditar as relações sexuais entre homens e mulheres no seu seio (como as
questões do assédio hoje ilustram), a libertação sexual dos anos 60 e 70 sendo
enfim como que o ‘acabamento’ desse processo. Por outro lado, a diferença de
tamanho e de estrutura muscular entre machos e fêmeas herdadas da evolução e os
cuidados maternos continuados em partos sucessivos, tanto justificam a guerra
entre machos que herdaram agressividade e astúcia, como o machismo que exclui
as mulheres das funções ‘dominantes’.
12. Mas o motivo de usos pede um motivo
complementar que dê conta das transformações históricas (“a história é a ciência
das mudanças sociais”, disse algures Marc Bloch), o de ‘invenção’ de usos ou
costumes: serão sobretudo invenções técnicas e escrita diferentes
que resultam de novas gerações. A
invenção da agricultura foi decisiva para os humanos se subtraírem à lei da
selva a que estavam sujeitos como as outras espécies, tendo tornado possível a
libertação de gente para invenções técnicas que deram trabalhos especializados em cidades e
um mercado de trocas correlativo. Entre outros produtos de luxo, o fabrico de
armas tornou possível a estrutura de castas sociais que ilustra a interpretação
dos mitos indo-europeus de Dumézil: os camponeses, os guerreiros e os dedicados
à soberania e aos mitos da fecundidade, com uma nova abrangência da lei da
guerra que tornou possível grandes impérios. Da terceira casta resultou uma
outra invenção, a das técnicas de escrita que, além da
Índia que ignoro, resultou em duas grandes correntes de dois milénios e meio de
história: por um lado, a escrita chinesa dos mandarins garantiu um império
inédito que durou mais de 2000 anos, por outro, a escrita alfabética permitiu,
com a escola, a invenção da definição filosófica, da physica aristotélica
enquanto filosofia com ciências,
da lógica e da teoria geométrica de Euclides, assim como do direito romano, o
que veio a fecundar a futura Europa com a sua conjunção com técnicas de medida
em laboratórios, depois as máquinas e a electricidade, modernidade que ora se globalizou
na aliança do mercado com a escola após dois milénios de marginalidade de
ambos. Se o § 10 introduziu a ecologia na definição de sociedade, vale agora
lembrar que é a aliança entre técnica e conhecimento no seio do laboratório
físico e químico que explica o terrível problema da poluição actual, que consiste no que os limites do
laboratório (a sua positividade) não permitem saber: por exemplo que os
automóveis eléctricos vão resolver, a respiração humana dos gases dum carro não
fazer parte dos testes deste.
13. Merece perceber o papel do cristianismo neste
processo ocidental. A primeira consideração a fazer é que o cristianismo grego
e depois eslavo, chamado ortodoxo, não teve influência nele, portanto o ‘motor’ do processo não foi somente o
cristianismo. Em seguida, ele veio dum processo hebraico – ‘bárbaro’ para os
Gregos – que implicou uma endogamia, como aliás estes também: ou seja, nem a
escrita profética nem a filosófica se destinavam a sair para fora das
respectivas sociedades de preferência endogâmica, que hoje diríamos ‘racista’ a maneira como
repudiavam os gentios e os bárbaros respectivamente; o que significa que é no
império romano, expansivo e integrador de bárbaros, que se deve procurar o segredo desse processo.
Mas o cristianismo como movimento espiritual tinha na sua origem judaica endogâmica uma limitação
interna: ele visava o fim dos tempos e como isso não sucedeu, a sua fonte
judaica secou (e que mal tratada foi ao longo desta história!), tudo teria
terminado aí se um tal Paulo de Tarso não tivesse dado a volta para os gentios
detestados, o que levou o movimento para o helenismo, agora já com uma
população de não judeus. Ora, a vitória da Macedónia de Alexandre sobre as
cidades gregas teve um efeito parecido de expulsão da cultura ateniense para o
seio do mundo que os Romanos estavam a conquistar, como ilustra a construção da
cidade de Alexandria, onde os cristãos de Paulo se encontraram com os filósofos
platónicos, os quais tomaram conta do respectivo discurso, duma maneira que a Bíblia deles era
incapaz[8] e que os imperadores do século IV, na peugada de
Constantino, apadrinharam para dar um ‘suplemento de alma’ ao império que
começava a agonizar, nas suas fronteiras militares como nos costumes das
principais cidades. O que aconteceu então foi que esse lento processo de dois
séculos de apagamento do império e de entrada de ‘bárbaros’ que foram
‘cristianizados’ (expansão tipo ‘imperial romana’ do que com Paulo fora ‘espiritual’)
permitiu que, de movimento espiritual o cristianismo se transformasse
fortemente em religião da Cristandade de muitos costumes e línguas diferentes
durante longos séculos de sociedades praticamente rurais, em que os seus
mosteiros guardaram os textos da civilização que se apagara. Ora bem, quando
novas cidades e mercados começaram a desenvolver-se nos séculos XII e XIII,
este cristianismo gerou uma escola inédita, as universidades, que ofereceram às
invenções que estavam para vir – a impressão de livros, as viagens oceânicas e
a cartografia, um humanismo de perspectiva e maquinarias variadas – uma cultura
livresca como nenhuma sociedade histórica, que se saiba, tivera até então no seu berço. A sequência do
processo, a partir do século XVIII e das suas Luzes enciclopédicas, veio a
deitar fora como ‘casca’ a religião cristã que lhe trouxera justamente o tal
‘suplemento de alma’ como ‘suplemento de cultura’. Nas margens deste processo,
os sopros espirituais dos inúmeros movimentos que foram reformulando a leitura
do evangelho no contexto dos anseios e reclamações das suas épocas, inquietando
as estruturas eclesiásticas e os poderes instalados até que, com Lutero,
Calvino e outros, o contexto de ruptura humanista e a expansão de bíblias
impressas em línguas vernáculas colocadas nas mãos de burgueses letrados
favoreceram o desencadeamento da Reforma: assim se criaram dinâmicas de
mudanças variadas, éticas mas também de ordem civil, donde
se desenvolveu a modernidade capitalista e industrial.
14. O cristianismo foi o que, do seu próprio
lavrar entre filosofia, platónica primeiro e aristotélica depois, e narrativas
bíblicas lidas com olhos gregos primeiro e latinos depois, ofereceu à Europa
por vir o material de que ela se fez. Deslindar essa mistura, a que se
acrescente o direito romano, é tarefa quase impossível, tender-se-á sempre a
puxar para as suas especialidades e preferências. Mas há um motivo forte no seu
seio, o da alma imortal que
Platão herdou e tematizou no Fédon como convindo a Sócrates e aos sábios virtuosos que são os filósofos, que o
cristianismo acolheu por sua vez – “platonismo dos pobres”, chamou-lhe
Nietzsche – e generalizou a toda a minha gente, como motor dinâmico de alcance
celeste que transfigurava muita vida de quotidiano muito duro. Foi esse dom à
Europa que se manifestou na modernidade como individualismo e desejo de liberdade
que não parece ter comparação nas outras grandes civilizações. Ora bem, é justamente esta
tradição da alma latina, que depois virou sujeito e consciência, o que nos fornece
as nossas evidências – de dentro
[e-] [-vidência] – sobre
nós e sobre os outros, é ela que dá as intuições aos cientistas que têm a ver
com vivos (e mesmo com movimentos
físicos em seus campos). Quando se pretende que os problemas actuais são da
ordem das ‘mentalidades’, que se resolvem com ‘educação’, pensa-se na
prioridade do ‘dentro’, mas em vão. Só que pensar estas coisas tão importantes
é tremendamente difícil. “Estranha ordem das coisas”, espanta-se Damásio. A ele
vamos de seguida.
[1] Tem um texto neste blogue que conta como foi.
[4] Mas mesmo nesse caso, não é impossível que haja uma correlação quando
se trata de dizer que “o Logos se fez carne”,
sabendo-se que esse texto inicial foi um acrescento e que o termo não volta a
aparecer.
[5] Excepto num ponto em que, contra si mesmo, interpretou em sentido
literal uma estranhíssima palavra do texto de Mateus, em que Jesus diz que há trtês tipos de eunucos, uns de nascença,
outros por acção dos homens “e existem eunucos que se castraram a si próprios
por causa do reino dos céus” (19,12, trad. F. Lourenço): literalmente, o jovem Orígenes castrou-se.
[6] Bastará este apontamento
para perceber como o projecto da tradução duma Bíblia dita grega de F. Lourenço
tem riscos enormes, por justamente ignorar os alçapões antropológicos do mundo
bíblico criados pela língua grega! Talvez mais do que nas traduções das
narrativas, sobretudo nas notas que interpretam o que traduziu
[7] J. L. Vullierme, Le concept de système politique, P. U. F., 1988, um livro aconselhado vivamente por Edgar Morin,
recusa, com M. Mauss e contra M. Weber, que o território faça parte essencial
da sociedade, argumentando com as sociedades “fundamentalmente dispersas” e os nómadas (p. 134).
[8] Ficou a dinamizar
espiritualmente o culto das assembleias, enquanto o latim
foi compreendido pelo povo.
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