1. A aprendizagem fascina-me e que
ela seja, com a linguagem, uma das maiores lacunas da tradição filosófica,
acrescenta a esse fascínio. Que há nelas que explique essa omissão dos grandes
pensadores de que somos os descendentes, com cujos textos aprendemos a pensar
por nossa vez? Porventura o serem fenómenos indissociavelmente de mais do
que um, cuja descrição ou
definição não se faz só com uma alma ou sujeito ou consciência ou indivíduo.
2. Em português todavia há dois
verbos complementares que repartem entre os dois parceiros o que se dá entre
eles, um aprende e o outro ensina, embora se possa aprender sem se ser
ensinado, vendo fazer com cuidado, por exemplo. Mas em francês, que tanbém tem
um verbo ‘enseigner’, apprendre pode ter como sujeito ambos os termos, tanto o mestre como o discípulo,
como se ambos estivessem ‘presos’ um ao outro no ‘a-prender’. Como entre nós
‘alugar’ uma casa, tanto se diz do dono que aluga como daquele que vai usar o
alugado, ao contrário de vender / comprar; porquê? Provavelmente, porque a
venda feita, a relação entre vendedor e comprador desfaz-se, o que não acontece
quando se aluga: o que é alugado permanece como ‘lugar’ que ‘prende’ os dois
que ‘alugam’. Se for assim, então a mesma lógica do francês ‘apprendre’ implica
que o saber que se aprende
fique como relação entre mestre e discípulo, professor e aluno, pai e filho. Ou
de forma geral entre antepassado e descendente: com efeito, por exemplo da
língua, o que distingue gentes de línguas diferentes é justamente a relação aos
antepassados, estes permanecem no uso linguístico dos seus descendentes. Focando-me na aprendizagem da linguagem,
é sobre este ‘permanecer preso’ da língua e do saber entre os adultos que ensinam
a falar e as crianças, que a reflexão fenomenológica se pode exercer, valendo
certamente para outros usos.
3. O antepassado morreu, passou; se
permanece, é pelo que ensinou antes de passar, pelo que deu, por essa doação não apenas permanecer no que
aprendeu, mas tê-lo estruturado enquanto capaz de falar e pensar na ausência do
que ensinou, capaz de falar e pensar sem ter o mestre a bichanar-lhe ao ouvido
o que dizer, sem ditadores. Deu-lhe as regras e deixou-o autónomo
a usá-las, as mesmas regras. Autonomia quase biológica, inserida, gravada no
circuito neuronal que vai do ouvido à laringe e à boca, as regras dos outros
(hetero-nomia) tornadas as minhas regras, em que, aprendendo sempre, se vai tornando habilidoso, espontâneo
de mim a mim, sem poder ter memória das primeiras palavras que assim aprendeu e
muito menos do que antes brincava sem saber ainda de si. Ora, tal autonomia
espontânea com as mesmas regras dos outros e o esquecimento estrutural da
aprendizagem, esta coisa de espanto só é possível porque o antepassado ‘passou’
antes de morrer, retirou-se, ou melhor, foi retirado naquele que aprendeu, onde pois ele permanece como doador
retirado: passou, dando e
deixando ser (Heidegger).
4. Na maneira como Derrida relê Husserl na De
la grammatologie, o que é dado é
a língua social, o seu jogo regrado com saber, é dado na nova voz da criança; o
que é reduzido é a própria voz
do antepassado (as vozes são mortais, enquanto que o social continua enquanto
houver nascimentos). A nova voz é pro-duzida (ainda Heidegger) na criança, mas ninguém a
produz, produz-se como de si mesma ‘duzida’, pondo o ‘pro’ reduzido, retirado,
entre parêntesis: (pro)dução. A gramatologia de Derrida reuniu ambos os seus
dois antepassados fenomenológicos: a aprendizagem como re(pro)dução. É aqui que se dá algo que creio totalmente
inédito na história do pensamento ocidental: esta re(pro)dução, que alia a redução husserliana (fora do parêntesis) com a (pro)dução heideggeriana
que dá deixando ser, colocando a doação entre parêntesis, isto que é um trabalho
de pensadores revela-se ser a própria operação ôntica do fenómeno da aprendizagem, uma espécie de mecanismo fenomenológico de corte num e enxerto no outro: isto
dá à fenomenologia que resulta destes três escritores pensadores um cunho de verdade. Já que não se trata apenas da aprendizagem da
língua, mas também de toda e qualquer aprendizagem de saberes, de usos, e além
disso, de tudo o que seja reprodução de vivos, por via de alimentação, ou o que
seja reprodução de unidades sociais por via dos seus usos, se for verdade que
qualquer unidade social reproduz as anteriores, ainda quando lhe junta
inovações (que também reproduzem doutros lados, como enxerto).
5. Porque será então que a
aprendizagem não fez parte da tradição filosófica? sabendo-se que todas as sociedades
a têm como imperativo de sobrevivência, basta lembrar a importância da escola
nas sociedades contemporâneas. Uma hipótese possível terá a ver com a noção,
como atesta a língua portuguesa, de que ‘aprender’ é um verbo cujo sujeito –
activo, pois – é o aprendiz, o que é contraditado pela experiência frequente de
que nem sempre se consegue que ele aprenda; tanto neurologistas como psicólogos
parecem abordarem-na assim, como coisa só do que aprende: dificuldade de se ter
em conta a duplicidade de parceiros, o que isso implica no que aprende de
passivactividade, um verdadeiro enigma estrutural, como mostram os fracassos de
todos os tipos, escolares e familiares, empresariais. Uma outra dificuldade é a
de se saber, quando se procuram exemplos, o que é que se aprende, o que é que
tem que se aprender: não uma coisa qualquer, que os ratinhos de laboratório
possam ajudar a compreender. O que se aprende são regras, rotinas, o que contraria os preconceitos ideológicos do
‘progresso’ e da ‘criatividade’, são justamente os usos sociais: o que pede articulação com a antropologia, outra
dificuldade de tomo em tempos de especializações e respectivas rivalidades.
6. Permita-se-me uma memória. Quando
Derrida veio da primeira vez a Portugal, em Novembro de 1983, eu estava
escrevendo a minha tese de doutoramento sobre epistemologia da semântica
saussuriana e tinha encalhado num impasse: a língua saussuriana não parecia ter
nada a ver com o corpo, aliás reduzia-o, à acústica, à neurologia e ao aparelho fonador, como condição do seu
laboratório científico, a comutação; parecia-me estar a jogar na oposição alma
/ corpo, a língua do lado daquela. Foi disso que falei com ele, que me
recomendou a leitura de dois livros, Glas e La carte postale,
Hegel, Genet e Freud, onde descobri o motivo do duplo laço que se revelou a fonte da fenomenologia de que
aqui falo. Ter podido conversar com ele – tinha tido uma crise de fígado
terrível nessa noite, mas disponibilizou-se na mesma para me receber – foi
decisivo para o meu trabalho futuro, mas demorou bastantes anos a dar frutos;
como canta o Sérgio Godinho, “a vida é feita de pequenos nadas”.
7. E já agora, pego na palavra:
haverá grandes ‘nadas’, Sérgio? Há, aqueles que monopolizam os cientistas, mas
também Heidegger e Derrida. Essa agora! Com efeito, o que é que Derrida chamou trace, rasto, vestígio? Justamente aquilo que se
aprende, que passa do que
ensina ao que aprende. Por exemplo, a língua. O que é ela? Nem a voz nem o discurso,
as duas componentes da fala (parole), mas as regras que as organizam, que variam com as línguas, as regras dos
fonemas ou letras mais as da morfologia, da sintaxe e da semântica. Ora, uma
‘regra’ pode ser dita ou escrita, é justamente o que as várias ciências fazem,
mas quando se as dizem, elas são, digamos, receitas de falas, ou seja são
também falas, tal como um dicionário ou uma gramática são discursos, textos.
Mas a regra enquanto ‘faz’, organiza, estrutura uma voz que discursa, não é
senão o que opera nela, sem ser ‘nada’ de voz nem de discurso. Se opera, ‘há’ a
regra, a língua, quer no que ensina quer no que aprende, e a prova que há, é o
trabalho dos linguistas que restituem essas regras... como vestígios detectados nas falas e discursos, único lugar
onde as há. Não se trata da mesma coisa do que Heidegger dizia o “Nada que
nadifica”, o que é doado pelo Ser que não é ente, coisa, gente, mas andam
perto, este ‘Nada’ e o rasto ou vestígio da trace derridiana. Um campo de forças atractivas, como
aquele que aguenta a estabilidade do sistema planetário, também não é uma
‘força’ e muito menos um astro, é ‘nada’, o jogo recíproco das várias forças de
gravidade. Em qualquer ciência, sejam quais sejam os entes de que se ocupam os
seus laboratórios, só se encontram diferenças estruturadas que aguentam esses
entes nas respectivas cenas. Como uma diferença de duas cores não é uma cor, a
diferença entre os tamanhos de dois miúdos não é o tamanho dum miúdo, etc. Mas
tratar-se-á de ‘grandes nadas’ ou só dos ‘pequenos nadas’ que cantava o Sérgio?
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