quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Breve fenomenologia da aprendizagem




1. A aprendizagem fascina-me e que ela seja, com a linguagem, uma das maiores lacunas da tradição filosófica, acrescenta a esse fascínio. Que há nelas que explique essa omissão dos grandes pensadores de que somos os descendentes, com cujos textos aprendemos a pensar por nossa vez? Porventura o serem fenómenos indissociavelmente de mais do que um, cuja descrição ou definição não se faz só com uma alma ou sujeito ou consciência ou indivíduo.
2. Em português todavia há dois verbos complementares que repartem entre os dois parceiros o que se dá entre eles, um aprende e o outro ensina, embora se possa aprender sem se ser ensinado, vendo fazer com cuidado, por exemplo. Mas em francês, que tanbém tem um verbo ‘enseigner’, apprendre pode ter como sujeito ambos os termos, tanto o mestre como o discípulo, como se ambos estivessem ‘presos’ um ao outro no ‘a-prender’. Como entre nós ‘alugar’ uma casa, tanto se diz do dono que aluga como daquele que vai usar o alugado, ao contrário de vender / comprar; porquê? Provavelmente, porque a venda feita, a relação entre vendedor e comprador desfaz-se, o que não acontece quando se aluga: o que é alugado permanece como ‘lugar’ que ‘prende’ os dois que ‘alugam’. Se for assim, então a mesma lógica do francês ‘apprendre’ implica que o saber que se aprende fique como relação entre mestre e discípulo, professor e aluno, pai e filho. Ou de forma geral entre antepassado e descendente: com efeito, por exemplo da língua, o que distingue gentes de línguas diferentes é justamente a relação aos antepassados, estes permanecem no uso linguístico dos seus descendentes. Focando-me na aprendizagem da linguagem, é sobre este ‘permanecer preso’ da língua e do saber entre os adultos que ensinam a falar e as crianças, que a reflexão fenomenológica se pode exercer, valendo certamente para outros usos.
3. O antepassado morreu, passou; se permanece, é pelo que ensinou antes de passar, pelo que deu, por essa doação não apenas permanecer no que aprendeu, mas tê-lo estruturado enquanto capaz de falar e pensar na ausência do que ensinou, capaz de falar e pensar sem ter o mestre a bichanar-lhe ao ouvido o que dizer, sem ditadores. Deu-lhe as regras e deixou-o autónomo a usá-las, as mesmas regras. Autonomia quase biológica, inserida, gravada no circuito neuronal que vai do ouvido à laringe e à boca, as regras dos outros (hetero-nomia) tornadas as minhas regras, em que, aprendendo sempre, se vai tornando habilidoso, espontâneo de mim a mim, sem poder ter memória das primeiras palavras que assim aprendeu e muito menos do que antes brincava sem saber ainda de si. Ora, tal autonomia espontânea com as mesmas regras dos outros e o esquecimento estrutural da aprendizagem, esta coisa de espanto só é possível porque o antepassado ‘passou’ antes de morrer, retirou-se, ou melhor, foi retirado naquele que aprendeu, onde pois ele permanece como doador retirado: passou, dando e deixando ser (Heidegger).
4. Na maneira como Derrida relê Husserl na De la grammatologie, o que é dado é a língua social, o seu jogo regrado com saber, é dado na nova voz da criança; o que é reduzido é a própria voz do antepassado (as vozes são mortais, enquanto que o social continua enquanto houver nascimentos). A nova voz é pro-duzida (ainda Heidegger) na criança, mas ninguém a produz, produz-se como de si mesma ‘duzida’, pondo o ‘pro’ reduzido, retirado, entre parêntesis: (pro)dução. A gramatologia de Derrida reuniu ambos os seus dois antepassados fenomenológicos: a aprendizagem como re(pro)dução. É aqui que se dá algo que creio totalmente inédito na história do pensamento ocidental: esta re(pro)dução, que alia a redução husserliana (fora do parêntesis) com a (pro)dução heideggeriana que dá deixando ser, colocando a doação entre parêntesis, isto que é um trabalho de pensadores revela-se ser a própria operação ôntica do fenómeno da aprendizagem, uma espécie de mecanismo fenomenológico de corte num e enxerto no outro: isto dá à fenomenologia que resulta destes três escritores pensadores um cunho de verdade. Já que não se trata apenas da aprendizagem da língua, mas também de toda e qualquer aprendizagem de saberes, de usos, e além disso, de tudo o que seja reprodução de vivos, por via de alimentação, ou o que seja reprodução de unidades sociais por via dos seus usos, se for verdade que qualquer unidade social reproduz as anteriores, ainda quando lhe junta inovações (que também reproduzem doutros lados, como enxerto).
5. Porque será então que a aprendizagem não fez parte da tradição filosófica? sabendo-se que todas as sociedades a têm como imperativo de sobrevivência, basta lembrar a importância da escola nas sociedades contemporâneas. Uma hipótese possível terá a ver com a noção, como atesta a língua portuguesa, de que ‘aprender’ é um verbo cujo sujeito – activo, pois – é o aprendiz, o que é contraditado pela experiência frequente de que nem sempre se consegue que ele aprenda; tanto neurologistas como psicólogos parecem abordarem-na assim, como coisa só do que aprende: dificuldade de se ter em conta a duplicidade de parceiros, o que isso implica no que aprende de passivactividade, um verdadeiro enigma estrutural, como mostram os fracassos de todos os tipos, escolares e familiares, empresariais. Uma outra dificuldade é a de se saber, quando se procuram exemplos, o que é que se aprende, o que é que tem que se aprender: não uma coisa qualquer, que os ratinhos de laboratório possam ajudar a compreender. O que se aprende são regras, rotinas, o que contraria os preconceitos ideológicos do ‘progresso’ e da ‘criatividade’, são justamente os usos sociais: o que pede articulação com a antropologia, outra dificuldade de tomo em tempos de especializações e respectivas rivalidades.
6. Permita-se-me uma memória. Quando Derrida veio da primeira vez a Portugal, em Novembro de 1983, eu estava escrevendo a minha tese de doutoramento sobre epistemologia da semântica saussuriana e tinha encalhado num impasse: a língua saussuriana não parecia ter nada a ver com o corpo, aliás reduzia-o, à acústica, à neurologia e ao aparelho fonador, como condição do seu laboratório científico, a comutação; parecia-me estar a jogar na oposição alma / corpo, a língua do lado daquela. Foi disso que falei com ele, que me recomendou a leitura de dois livros, Glas e La carte postale, Hegel, Genet e Freud, onde descobri o motivo do duplo laço que se revelou a fonte da fenomenologia de que aqui falo. Ter podido conversar com ele – tinha tido uma crise de fígado terrível nessa noite, mas disponibilizou-se na mesma para me receber – foi decisivo para o meu trabalho futuro, mas demorou bastantes anos a dar frutos; como canta o Sérgio Godinho, “a vida é feita de pequenos nadas”.
7. E já agora, pego na palavra: haverá grandes ‘nadas’, Sérgio? Há, aqueles que monopolizam os cientistas, mas também Heidegger e Derrida. Essa agora! Com efeito, o que é que Derrida chamou trace, rasto, vestígio? Justamente aquilo que se aprende, que passa do que ensina ao que aprende. Por exemplo, a língua. O que é ela? Nem a voz nem o discurso, as duas componentes da fala (parole), mas as regras que as organizam, que variam com as línguas, as regras dos fonemas ou letras mais as da morfologia, da sintaxe e da semântica. Ora, uma ‘regra’ pode ser dita ou escrita, é justamente o que as várias ciências fazem, mas quando se as dizem, elas são, digamos, receitas de falas, ou seja são também falas, tal como um dicionário ou uma gramática são discursos, textos. Mas a regra enquanto ‘faz’, organiza, estrutura uma voz que discursa, não é senão o que opera nela, sem ser ‘nada’ de voz nem de discurso. Se opera, ‘há’ a regra, a língua, quer no que ensina quer no que aprende, e a prova que há, é o trabalho dos linguistas que restituem essas regras... como vestígios detectados nas falas e discursos, único lugar onde as há. Não se trata da mesma coisa do que Heidegger dizia o “Nada que nadifica”, o que é doado pelo Ser que não é ente, coisa, gente, mas andam perto, este ‘Nada’ e o rasto ou vestígio da trace derridiana. Um campo de forças atractivas, como aquele que aguenta a estabilidade do sistema planetário, também não é uma ‘força’ e muito menos um astro, é ‘nada’, o jogo recíproco das várias forças de gravidade. Em qualquer ciência, sejam quais sejam os entes de que se ocupam os seus laboratórios, só se encontram diferenças estruturadas que aguentam esses entes nas respectivas cenas. Como uma diferença de duas cores não é uma cor, a diferença entre os tamanhos de dois miúdos não é o tamanho dum miúdo, etc. Mas tratar-se-á de ‘grandes nadas’ ou só dos ‘pequenos nadas’ que cantava o Sérgio? 

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