1. Em dia da Mãe, um paradoxo. Fomo parte dela,
dentro dela, e soubemos disso. Muitas células nossas então, as dos pulmões ou
do tubo digestivo, por exemplo, não funcionavam ainda, estavam à espera do
parto, de deixarem de ser ‘parte’, se apartarem. Mas não assim os neurónios que
já havia, não eram muitos mas as sinapses que tinham já os relacionava e
recebiam nervos da pele e dos ouvidos, entre outros, o que lhes permitia
sentir, saber o seu envólucro materno. O parto foi lancinante, os alvéolos dos
pulmões rasgaram-se para respirarem pela primeira vez e gritaram, depois a
falta da alimentação directa, de sangue a sangue na placenta, fez-se sentir
como fome, e tudo isto o bebé soube, como o gosto de mamar como mamífero. E por
aí fora, durante meses e meses, a aprender a olhar, a mexer e gatinhar, a fazer
tem-tem, a dar passos agarrado e depois andar solto, as primeiras palavras, em
tudo isso ele foi ser no seio da mãe, ainda não ser no mundo.
2. Mas isso nós esquecemos, todos nós, salva
loucura profunda, de corpo ainda em pedaços. Ninguém se lembra, que as memórias
mais antigas são de coisas capazes de serem ditas, precisam da língua dita
materna, e eis o paradoxo: foi ela quem fez o corte da memória. Ouvir uma
criancinha de 4 ou 5 anos, ou mesmo mais, a falar na sua maneira de dizer,
espantarmo-nos do rigor conseguido de tantas e tantas regras, fonológicas a
fazerem as palavras, morfológicas a conjugarem verbos, plurais e femininos,
sintácticas com verbos, substantivos e preposições e conjunções, quantas regras
certas que ninguém nunca lhes ensinou, esta admirável língua materna, igual nas
regras à de toda a tribo. Deveríamos nos comover, de tal forma é espantoso.
Como é que se aprendeu, como é que este ‘de fora’ tão complexo se tornou
‘dentro’? Agora, seres no mundo, dizendo ‘eu’ nessa língua materna, mas pagando o preço do esquecimento do
que foi ser no seio da mãe,
ainda não ‘eu’, que a língua ainda não havia e por isso, muito provavelmente,
não podemos lá chegar, a não ser talvez em sonhos, que então serão pesadelos.
3. Se a língua é materna, ela é também o fim da
maternidade estrita.
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