quarta-feira, 31 de maio de 2017

Ser e movimento: o verbo for




1. Conhece o verbo for em português? À primeira vista parece que não existe, a gramática de Cândido de Figueiredo diz que há quatro conjugações, em –ar, –er, –ir e –or, e nesta só existe o verbo pôr e seus derivados, como propor, compor, etc. Mas se eu digo, ‘se eu for...’ ou ‘eu fui...’, que verbo é esse? Depende do resto da frase, dirão: ‘se eu for a Lisboa’ ou ‘fui a Coimbra’, é o verbo ir, ‘se eu for casado’ ou ‘eu fui aluno do Pedro Nunes’, é o verbo ser. Estes dois verbos são de morfologia irregular, com radicais diferentes, ‘for’ pertence a um deles. Não é só em português, também em francês e castelhano, herdeiros igualmente do latim. Só em certo tipo de tempos e modos, pretéritos perfeitos simples e mais que perfeitos e alguns conjuntivos, mas que nem sempre coincidem. Em qualquer dos casos, trata-se de formas diferentes de dois verbos, ‘ser’ e ‘ir’, que aparentemente não têm nada a ver um com o outro, tanto mais estranho quanto em latim só o verbo esse é que o tem, não o ire (verbo que por sua vez não existe em italiano, apenas andare). Seria curioso, mas acima das minhas capacidades, saber se houve em tempos um verbo ‘fore’ em latim (não há verbos em ‘–ore’ em latim!) que depois tenha sido acolhido por certas morfologias do esse.
2. O que permanece de curioso, é que estas línguas vindas do latim tenham incorporado o ‘for’ não apenas no ‘ser’ e ‘être’, mas igualmente no ‘ir’ e ‘aller’, curioso além da gramática, para o filósofo justamente: dizem uma enigmática relação, não entre ser e tempo, como quereria Heidegger se não desprezasse as línguas latinas do ponto de vista filosófico, mas entre ser e movimento de andar, de mudar de lugar. Mas esta ‘mudança’ não parece comparável com ‘ser’, nem com ‘estar’, com a estabilidade, como quem pergunta: ‘como estás?’, respondendo-se muitas vezes ‘vou andando’, como quem diz que enquanto posso mudar de um lugar para o outro, tenho estabilidade que chegue para ‘estar’ vivo. O que não deixa de ser engraçado, porque andar é extremamente instável, enquanto um pé está no chão o outro está no ar. Mas estar vivo é a minha condição para ‘ser’, o ‘meu cadáver’ não serei eu, expressão que nunca poderei dizer no presente, num presente como aquele em que se pudesse dizer ‘estou morto’ (como tentou um conto de Edgar Allan Poe que Barthes analisou, O caso do sr. Valdemar).
3. O verbo ‘for’ é mais forte do que esta relação entre ‘ir’ e ‘estar’, que ele se tenha imposto em várias línguas latinas (e no romeno?) sem que pareça haver para tal uma fonte latina. O que é espantoso é esta relação forte entre ‘ser’ e ‘ir’, entre ser e mover-se, manifestar-se num enigmático fenómeno de criação de morfologia verbal, relacionando dois dos verbos mais usados das respectivas línguas – do verbo ser para o verbo ir – e em várias línguas independentes entre elas (uma das quais nem tem o verbo ir), é esta questão que dá que pensar. Assim a modos como a relação do tempo com os passos, com o andar, que me veio em Os passos que o tempo dá, neste blogue. É que ‘ser’ e ‘movimento’ foram relacionados no motivo mais forte da filosofia aristotélica, o de ousia, que diz o ‘ser’ (substância e essência) para explicar o ‘movimento’, a alteração das coisas, dos vivos nomeadamente. Que as línguas sejam imotivadas implica que não haja resposta a esta questão? Então, e os ‘passos’ dando o verbo do ‘tempo’, aí a língua não é imotivada? Ou também aí não se ‘explica’?

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