1. Conhece o verbo for em português? À primeira vista parece que não
existe, a gramática de Cândido de Figueiredo diz que há quatro conjugações, em
–ar, –er, –ir e –or, e nesta só existe o verbo pôr e seus derivados, como propor, compor, etc. Mas
se eu digo, ‘se eu for...’ ou ‘eu fui...’, que verbo é esse? Depende do resto
da frase, dirão: ‘se eu for a Lisboa’ ou ‘fui a Coimbra’, é o verbo ir, ‘se eu for casado’ ou ‘eu fui aluno do Pedro
Nunes’, é o verbo ser. Estes
dois verbos são de morfologia irregular, com radicais diferentes, ‘for’
pertence a um deles. Não é só em português, também em francês e castelhano,
herdeiros igualmente do latim. Só em certo tipo de tempos e modos, pretéritos
perfeitos simples e mais que perfeitos e alguns conjuntivos, mas que nem sempre
coincidem. Em qualquer dos casos, trata-se de formas diferentes de dois verbos,
‘ser’ e ‘ir’, que aparentemente não têm nada a ver um com o outro, tanto mais
estranho quanto em latim só o verbo esse é que o tem, não o ire
(verbo que por sua vez não existe em italiano, apenas andare). Seria curioso, mas acima das minhas
capacidades, saber se houve em tempos um verbo ‘fore’ em latim (não há verbos
em ‘–ore’ em latim!) que depois tenha sido acolhido por certas morfologias do esse.
2. O que permanece de curioso, é que
estas línguas vindas do latim tenham incorporado o ‘for’ não apenas no ‘ser’ e
‘être’, mas igualmente no ‘ir’ e ‘aller’, curioso além da gramática, para o
filósofo justamente: dizem uma enigmática relação, não entre ser e tempo, como
quereria Heidegger se não desprezasse as línguas latinas do ponto de vista
filosófico, mas entre ser e movimento de andar, de mudar de lugar. Mas esta
‘mudança’ não parece comparável com ‘ser’, nem com ‘estar’, com a estabilidade,
como quem pergunta: ‘como estás?’, respondendo-se muitas vezes ‘vou andando’,
como quem diz que enquanto posso mudar de um lugar para o outro, tenho
estabilidade que chegue para ‘estar’ vivo. O que não deixa de ser engraçado,
porque andar é extremamente instável, enquanto um pé está no chão o outro está
no ar. Mas estar vivo é a minha condição para ‘ser’, o ‘meu cadáver’ não serei
eu, expressão que nunca poderei dizer no presente, num presente como aquele em
que se pudesse dizer ‘estou morto’ (como tentou um conto de Edgar Allan Poe que
Barthes analisou, O caso do sr. Valdemar).
3. O verbo ‘for’ é mais forte do que
esta relação entre ‘ir’ e ‘estar’, que ele se tenha imposto em várias línguas
latinas (e no romeno?) sem que pareça haver para tal uma fonte latina. O que é
espantoso é esta relação forte entre ‘ser’ e ‘ir’, entre ser e mover-se, manifestar-se num enigmático fenómeno de criação de morfologia verbal, relacionando dois dos verbos mais usados das
respectivas línguas – do verbo ser para o verbo ir – e em
várias línguas independentes entre elas (uma das quais nem tem o verbo ir), é esta questão que dá que pensar. Assim a modos
como a relação do tempo com os passos, com o andar, que me veio em Os passos
que o tempo dá, neste blogue. É que ‘ser’ e ‘movimento’ foram relacionados no
motivo mais forte da filosofia aristotélica, o de ousia, que diz o ‘ser’ (substância e essência) para
explicar o ‘movimento’, a alteração das coisas, dos vivos nomeadamente. Que as
línguas sejam imotivadas implica que não haja resposta a esta questão? Então, e
os ‘passos’ dando o verbo do ‘tempo’, aí a língua não é imotivada? Ou também aí
não se ‘explica’?
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