quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A velha questão do conhecimento, como quem brinca


 
1. Como quem brinca aos 83 anos com uma das primeiras grandes questões da filosofia tal como Platão a formulou, cuja resposta consiste no que habitualmente se chama platonismo, tal como o retratam os grandes diálogos da República e do Banquete e que Aristóteles criticou, tal critica tendo sido formulada pelo próprio Platão no Parménides, que fez a viragem para o Teeteto e seguintes, para a questão do conhecimento enquanto ciência das coisas terrestres, que Aristóteles desenvolverá de forma esplendorosa para os vinte séculos seguintes, até Galileu e Newton. O platonismo consistiu em colocar a origem das coisas em Formas ideais (Eidê, uns traduzem por Formas, outros por Ideias) celestes, imutáveis, que as almas humanas contemplaram antes de virem aos corpos: explicava-se assim que um pensador pudesse ter o que chamaríamos ‘experiências de pensamento’ acima do comum dos mortais, que não derivassem de aprendizagem vinda da tradição dos antepassados nem do ensino de mestres. O comum dos mortais não lhes tinha acesso, vivendo entre geração e corrupção do corpo, como os outros animais. Donde que no Fédon, o que muito me espantou quando dei por ela, a alma imortal fosse deduzida como, por assim dizer, irreversível após a morte apenas para os filósofos, gente de virtude e de saber (terá sido o cristianismo quem a ‘democratizou’, para escravos e mulheres e crianças também?). O primeiro passo do que se pode chamar a génese dessas Formas ideais foi feito no Crátilo, quando uma longa discussão das etimologias das palavras gregas levou a excluir estas e a língua da possibilidade de servirem para o conhecimento, o Ménon depois falando de reminiscência das Formas ideais. Ora, estas resultavam duma invenção de Sócrates, a definição, como meio de incentivar os seus jovens auditores interrogados a buscarem por eles mesmos o sentido de tal ou tal virtude para assim a praticarem, já que justamente o mestre, Sócrates, não podia ensinar esse sentido ‘ideal’, que não se aprende de fora: no Teeteto, que faz a teoria desta questão, a maiêutica substituindo a reminiscência (pelo menos sem recurso a ela), ele é o parteiro das almas dos homens, estéril, apenas capaz de discernir se o que os jovens pensam em seus ‘partos intelectuais’ é verdadeiro ou falso. Resumindo: o conhecimento por via das Formas ideais, nas almas sem aprendizagem, reservado aos filósofos e virtuosos, releva dum nível dito em filosofia inteligível, por oposição ao conhecimento vulgar que se aprende, dito sensível. Ora bem, a critica da teoria das Formas ideais por Aristóteles, da separação que ela opera entre a ‘essência’ definida das coisas e elas próprias, em sua ‘substância’, critica que provém da definição primeira da Physica, a da ousia, que nas Categorias tem duas acepções, a primária sendo a ‘substância’ e a secundária a ‘essência’ na tradução latina, essa critica ‘realista’ do ‘idealismo’ platónico não atentou contra a oposição entre os dois níveis de conhecimento, o do inteligível e o do sensível: no Da alma, tratado digamos bio-psicológico, em contraste claro com os textos da lógica, da poética (e da retórica, creio), o logos não intervém, como se Aristóteles não tivesse encontrado o seu lugar, entre o que a filosofia latina e europeia traduziu como duas instâncias, a razão e a linguagem, como se já para ele a linguagem fosse o obstáculo à oposição inteligível / sensível (Derrida), que perdurou na filosofia ocidental até pelo menos Husserl, com algumas excepções como Marx e Nietzsche; e foi esta oposição que Heidegger diagnosticou como constitutiva da metafísica.
2. Pode-se encontrar esta oposição nos dois filósofos, grego e europeu, que mais marcaram a relação da filosofia com as ciências, Aristóteles e Kant. No primeiro é a diferença entre a ousia (substância – essência), que a filosofia conhece pela definição, e as coisas que são conhecidas apenas nos seus acidentes, que as narrativas contam a partir do saber quotidiano, e a filosofia não conhece, já que ‘singulares’, ‘coisas em si’, ‘empíricos’ em Kant, que os dirá ‘númenos’ (referindo às ‘substâncias’ aristotélicas), de que se ocupa a razão prática, enquanto que a filosofia teórica trata de fenómenos da sensibilidade e de conceitos do entendimento e das ideias da razão. Ousia / acidentes, fenómenos / númenos (inversão das posições entre ambos, dum filósofo do logos a um filósofo do sujeito, da consciência). A questão que aqui procuro é a de saber se a fenomenologia que entendi com a gramatologia de Derrida pode e como desconstruir esta oposição entre dois conhecimentos, o vulgar e o das filosofias e ciências. Será no motivo dos usos e da linguagem, da sua aprendizagem a partir de outros como ‘inscrição’, que haverá que procurar a resposta; Derrida escrevia “da enigmática relação do vivo ao seu outro e dum dentro a um fora” (De la Grammatologie, p. 103).

O conhecimento tribal
3. É com efeito o uso tribal que se aprende que está no cerne do conhecimento e não a percepção husserliana de objectos, muito menos a predominante percepção visual, com as suas peculiaridades que enganaram os filósofos, a de parecer bastar-se a si mesma, aos olhos do sujeito, e de ser correlativa da luz, impalpável e inaudível; esta não pertence aos quatro elementos gregos, enquanto que na criação bíblica é o primeiro ‘bem’ (o que não as trevas, vindas em sua consequência) antes de tudo o resto, nomeadamente do sol. O filósofo francês empirista Étienne de Condillac, no seu Tratado das sensações, conta como um cego de nascença operado a cataratas em Londres em meados do século XVIII, “quando começou a ver, os objectos pareciam-lhe tocar a superfície exterior do seu olho. A razão é sensível. [...] O seu olho não tendo ainda comparado tamanho com tamanho, não podia ter sobre isso ideias relativas. Não sabia ainda portanto deslindar os limites dos objectos. [...] Também nos asseguram que ele precisou de algum tempo antes de conceber que houvesse algo além do que ele via. Percebia todos os objectos misturados e na maior confusão, e não os distinguia, por diferentes que fossem a forma e o tamanho. É que ele não tinha ainda aprendido a apanhar com a vista vários conjuntos. Como o teria ele aprendido? Os seus olhos, que nunca tinham analisado nada, não sabiam olhar, nem por consequência observar diferentes objectos, e fazer de cada um deles ideias distintas. Mas à medida que se acostumou a dar profundidade à luz, e a criar, por assim dizer, um espaço diante dos seus lhos, ele colocou cada objecto a distâncias diferentes, assinalou a cada um o lugar que ele devia ocupar, e começou a julgar com o olho a sua forma e o seu tamanho relativo. [...] Um objecto dum polegar, colocado diante do seu olho, parecia-lhe tão grande como a casa [aprendeu portanto a perspectiva; nesse momento só tinha um olho, o outro foi operado um ano mais tarde]. Sensações tão novas, e em que ele fazia descobertas a cada instante, não podiam deixar de lhe dar a curiosidade de ver tudo, e de estudar tudo com o olho. Também quando lhe mostravam objectos que ele reconhecia ao tocar, observava-os com cuidado para os reconhecer numa outra vez com a vista. Dava-lhes ainda mais atenção por não os ter reconhecido logo nem pela forma nem pelo tamanho. Mas havia tanta coisa a reter, que ele esquecia a maneira de ver alguns objectos, à medida que aprendia a ver outros. Aprendo mil coisas num dia, dizia, e esqueço outro tanto”[1]. Citação de grande espanto: não se vê só com os olhos, Husserl! Os bebés quando nascem não só não sabem mexer nem ouvir como não sabem ver, têm que aprender tudo e umas com as outras: aprender a ver com o aprender a ouvir e com o aprender a mexer. O que não nos devia espantar tanto assim, pois que, além dos pintores e dos amantes de pintura, há muitos misteres em que se tem que aprender a ver o que em geral não vemos, os cirurgiões, os mecânicos de automóveis, os agricultores, sei lá! Em todos os casos, não se trata só de ‘ver’, mas de ‘saber ver’, com o que o saber implica de linguagem e tantas vezes de mãos que fazem.
4. Outra coisa que engana nesta questão do conhecimento é a tradicional teoria dos cinco sentidos, que nos vem já de Aristóteles. Ora, dois deles são bastante distintos dos outros: o olfacto e o paladar são essencialmente de ordem química, são reguladores da qualidade da respiração um deles, da comida que se mete na boca o outro, os seus nervos vão directamente para o páleo-cortex do cérebro já nos peixes e répteis, secretor hormonal, enquanto que os nervos dos três outros visam o neo-cortex das aves e dos mamíferos, o que elabora estratégias; cada um tem a sua área de entrada até virem a encontrar-se em áreas comuns, depois de passarem no antigo córtice onde são acolhidos por outras redes neuronais. Enquanto que os nervos ópticos e auditivos se isolam bem anatomicamente, o chamado tacto não tem a ver apenas com as mãos, que sem dúvida têm um papel relevante nele, mas com a pele de todo o corpo e com os vários órgãos internos quando doridos por qualquer razão, a este conjunto se chamando someastesia (do grego o ‘sentido do corpo’). Nestes casos, creio que se pode dizer que a química joga menos do que a física: a óptica, a acústica e o contacto.
5. Como podemos perceber o jogo cerebral destes usos a aprender, que não tem nada ver com os tais cinco sentidos? São eles que nos fazem seres no mundo – para começar ser na tribo, a família e a escola nas nossas sociedades mas hoje já os médias também e cada vez mais – e mostram que são vários os comportamentos desses usos, como formas corporais mais ou menos globais, como diz o prefixo ‘com’ de comportamento que como que ‘liga’ as várias partes do corpo que são ‘portadas’ (como em ‘trans-portadas’, por exemplo), cabeça, tronco e membros, como se dizia na velha escola primária. Por outro lado, que se aprendam coisas que implicam comportamentos indica a criação da relação dum dentro e dum fora que citámos acima de Derrida, anulando-se a clássica oposição que no conhecimento diz respeito ao passivo (dos tais cinco sentidos) e activo: a injunção do outro, de quem se aprende, é recebida (passivamente) mas entendida como comportamento (activamente); em vez duma simples “percepção visual” à maneira de Husserl, teremos os grafos cerebrais (Changeux) dos eixos que tornam possíveis os vários comportamentos. Sejam exemplos de usos infantis banais: ‘vá lá, senta-te na cadeira’; ‘pega bem na colher’; ‘vamos para casa’, ‘bate-se à porta, alguém abre-a, entramos’; ‘que letra é esta?’; ‘pega no caderno e no lápis e faz esta conta, 33 vezes 33’; ‘então quando é que eu vou brincar com o Zé Maria para o jardim?’ Trata-se de nomes de coisas e de verbos, a pergunta sobre a letra só reclama a visão da criança, mas outras reclamam as mãos para pegarem, os pés para andarem, o corpo para se sentar ou entrar pela porta. E todos supõem a fala. No exemplo da colher, o eixo visão / mãos com a receita da fala que o diz, nomeando a colher e o ‘tu pegas’, eixo de tudo o que é mexer e trabalhar. Nos exemplos de caminhar, o eixo visão / pés (ou mãos com bengala / pés, quando falta a visão suprida pelo eixo respectivo) e o que a fala diz da meta desse comportamento. O exemplo final, da objecção da criança que quer ir brincar com o vizinho, ilustra o eixo da audição / fonação. E há sem dúvida outros eixos (audição / pés na dança, por exemplo), mas estes principais chegam para perceber como os dois termos de cada eixo dizem o primeiro aquilo que vem de fora e o segundo uma actividade respectiva comandada de dentro em sequência: dos órgãos perceptivos ao cérebro e depois aos músculos da mobilidade. Os cinco sentidos cortam a relação sujeito / mundo e não é por acaso que a linguagem não faz parte deles enquanto órgãos do conhecimento (sonoro, no caso), apesar da importância da audição ter sobretudo a ver com ela, sublimação humana fortíssima da audição mamífera que tinha sobretudo a ver com a caça e a defesa de se ser caçado. Duas outras sublimações humanas fortíssimas são a das mãos, deslocadas do caminhar para o trabalhar, e a da boca, deslocada de arma de predação para a fonação. Os eixos do conhecimento dos outros mamíferos também não são compatíveis com os cinco sentidos! Outra lacuna destes em relação ao conhecimento humano, tem a ver com o motivo do ‘saber’ que nele é crucial enquanto saber do mundo, que por eles vem mas sem que se saiba como, como se não passassem duma passagem como que servil, instrumental porque corporal, e houvesse que pôr as boas questões do conhecimento a seguir a eles. Ora, conhecemos as coisas com as mãos que mexem nelas, os olhos que as vêem e as palavras que as nomeiam, dizem, qualificam, contam, não há palavras que digam o mundo sem mãos nem olhos: “o olho e o mundo na fala (parole)”, na palavra, escrevia Derrida (La voix et le phénomène, p. 96). As nossas mentes neuronais é disto que estão pejadas.
6. Que a tradição filosófica medieval e europeia tenha ignorado a linguagem até ao século XX, com excepção de empiristas como Locke e Condillac, sendo gente de grande envergadura de pensamento, obriga a pôr a questão de saber aonde é que ela se lhes escondia: era justamente no pensamento! Desde o logos grego, como Platão explicitou claramente no Sofista, ele que tanto separou sensível e inteligível e subalternizou as palavras: “pensamento (dianoia) e discurso (logos) são a mesma coisa, só que o diálogo que a alma tem em silêncio consigo mesma recebeu o nome especial de pensamento” (263e). Pensando só numa língua e ignorando a tradução por desprezo pelas línguas ‘bárbaras’ (ba-ba, diziam dos sons que não entendiam), não tinham que distinguir pensamento e linguagem, como fizeram depois os Estóicos inventando o motivo de signo, que acrescenta à dualidade herdada da Atenas clássica, onoma e pragmata (os nomes e as coisas), o lekton, a significação que o estrangeiro não entende. Deste trio, encontra-se nos Medievais, que também só cultivavam o latim e não se preocuparam com a tradução, um trilátero, que corresponde ao do signo, respectivamente língua, realidade e pensamento, no qual o debate realismo / nominalismo discutirá os ‘nomes’ mas para privilegiar com Occam os “nomes mentais”, donde provirão as “ideias” cartesianas, o ‘pensamento’ oposto às coisas da ‘realidade’, secundarizadas as línguas, como foi manifesto quando as diferentes línguas vernáculas entraram na filosofia, com Descartes aliás nomeadamente. Com ele com efeito a dualidade pensamento / real, res cogitans / res extensa, depois sujeito / objecto, dominará as questões do conhecimento sem que a linguagem tenha algum relevo filosófico, reino dos gramáticos e dos lógicos pelo menos desde Alexandria. Aliás, já Cícero traduzira a mais célebre definição aristotélica, do humano como zôon echon logon, animal tendo discurso, por “animal racional”, o logos como ratio, perdendo para oratio ou verbum a sua dimensão de linguagem: o dualismo alma / corpo adequava-se melhor a esta tradução do que ao original grego, como ilustra a citação do Sofista, embora o próprio Aristóteles não tenha podido meter o logos que predomina em toda a sua teoria lógica e poética na sua bio-psicologia Da alma. Ou seja, já havia problemas na Academia e no Liceu, mas foi em latim, sobretudo medieval, que eles se agudizaram[2]: na tradição do conhecimento aristotelista, aos sensíveis e passivos cinco sentidos juntavam-se duas faculdades inteligíveis, a inteligência (passiva) e a vontade (activa), o que se veio a chamar psicologia racional. Tudo isto é dito a correr, apenas para se saber donde vêm as dificuldades da questão e o alcance do que se propõe.
7. Ora bem, introduzir a língua, os nomes e os verbos das frases nas receitas dos usos que se aprendem, nos eixos cerebrais, que consequência tem? A de não separar o que tem a ver com olhos e mãos – na manipulação de qualquer coisa, manifestamente sensível quer à luz (perde-se na escuridão), quer na resistência do material ao tacto – do que se ouve com os ouvidos mas não se vê nem se apalpa, não é por isso tão claramente ‘dado’: as vozes e os saberes são diferentes, a alteridade manifesta-se irredutível – suscita conflitos com frequência, contestação dos saberes que se ouvem – ao mesmo tempo que as palavras e as regras da língua são as mesmas na tribo e impedem que se fuja ao tribal, digamos como ‘autoridade’ social que se impõe ao ser no mundo que somos, fora do qual não podemos existir (no estrangeiro, usos e língua são outros, como sofrem os emigrantes). Em resumo, como as receitas são indissociáveis do que nomeiam, pessoas, coisas, fazeres, elas são condição para que os assim nomeados sejam do ‘nosso’ mundo. O que se chama inteligência ou razão começa por ser, a este nível de usos básicos, a maneira como falamos deles, como os podemos fazer, ainda que calados: fazer uma sopa, implica seguir a receita, ainda que se esteja a falar com outrem ou a pensar noutra coisa. Como se o que se chamou em filosofia o ‘inteligível’ fosse o que cobrisse o chamado ‘sensível’ de maneira social. Chamando texto a estas receitas sobre o que vemos, mexemos, fazemos, dá para entender a afirmação de Derrida, à primeira vista escandalosa: “não há fora de texto”. Tudo o que vemos, mexemos, fazemos, só é possível porque sabemos nomeá-lo, porque estamos no espaço em que o dizemos. Chegamos a Tóquio e estamos perdidos, embora vejamos coisas equivalentes às da nossa tribo. Em termos husserlianos, a intuição categorial é condição da intuição sensível, esta inversão fez parte da critica de Heidegger, em que o motivo de “pré-compreensão” (Ser e Tempo) implicita a aprendizagem e a linguagem.
8. Como se conhecem as coisas a este nível do quotidiano? Organizadas segundo a lógica dos paradigmas dos usos. Se esta argumentação colher, isso implica que ao nível das coisas de cada dia, os nomes delas fazem parte do conhecimento que temos delas, sem dúvida, mas também que quanto mais e melhor as usamos, mais e melhor as conhecemos: a aprendizagem e o treino são as rotinas do conhecimento, do que chamamos experiência e saber, ainda que errados, pois que o argumento não invocou a verdade, nem as essências. A este nível, a ‘verdade’ é relativa aos paradigmas, aos usos e costumes, e liga-se ao motivo de testemunho, que apela ao conhecimento de factos que impliquem diferendos e ao saber contar as narrativas desses factos de forma coerente. É a este nível de ‘verdade’ que se opõe a mentira e a ficção, não o erro (gnosiológico). É certo que pode haver ‘erros’ ou ‘enganos’ no quotidiano, deliberados ou não – coisas que façam mal à saúde, por exemplo, ou contra os costumes – que outros podem diagnosticar em função dos seus conhecimentos: a sua validação ou invalidação como conhecimento tem como referência a reprodução da unidade social – família, empresa, escola –, os seus paradigmas que esses enganos comprometam. Enquanto que a questão da verdade dum conhecimento além dos paradigmas das unidades locais implica um tipo especial de unidades sociais, como as igrejas o foram massivamente até ao grande cisma do século XVI, sujeitas a guerras e polémicas em seguida; na actual civilização de maneira predominante são as escolas e os laboratórios científicos, mas os médias, livros sobretudo, e os outros que hoje proliferam, têm implicações com a questão.

O conhecimento além da tribo
9. Os dois exemplos do § 5 referindo a aprendizagem das letras e dos números reenviam, em princípio, para além da família, como atestava o analfabetismo: o que se aprendia na escola não tinha pertinência para a reprodução quotidiana das famílias. Que tenha incluído a escola no ‘tribal’ significa que hoje já não é assim no que se refere aos estudos primários mas começa a ser quando se vai subindo na aprendizagem de disciplinas que se bifurcam entre ciências, humanidades, profissionais, artes, etc., onde se originam as especializações futuras. É certo que a especialização de ofícios é muito antiga mas fazia-se nas casas, a escola sendo marginal. Mas foi nela, na Grécia do alfabeto com vogais, que se inventou o que estrutura a escola moderna, a definição. Esta desenvolveu um novo tipo de texto dedicado exclusivamente ao conhecimento, o texto gnosiológico, com as suas essências (conceitos) e argumentos: em termos de Benveniste, nem narrativa nem discurso. Acrescente-se contudo que, como Heidegger algures observou, Platão e Aristóteles não pensavam com ‘conceitos’, já que no logos pensamento e língua não se dissociavam como sucedeu após a tradução em latim, como acima se disse: os nossos ‘conceitos’ pretendem ser apenas pensamento / conhecimento, fora das gramáticas das línguas vernáculas[3]. O que a definição opera é uma violência em relação ao paradigma das receitas dos usos das unidades locais, a violência da abstracção, como aliás já fazia a geometria, ou as simples contas, que jogam apenas com as regras imanentes da tabuada e da aritmética, os cálculos desligando-se das coisas que se contam: a essência do que é definido abstrai cada coisa do seu contexto de fenómeno, do que lhe deu origem e o condiciona na existência; essa essência, comum a todos os definidos numa mesma espécie, permite um conhecimento intemporal e incircunstancial, qualquer que seja o sujeito conhecedor desde que siga as regras da nova textualidade. Mas foi no interior dela que a tradução do grego para latim provocou as alterações que dissemos, o que significa que essências e argumentos gnosiológicos guardavam uma relação à língua, como os Gregos sabiam mas não souberam Latinos nem Europeus. E não só à língua, também ao contexto civilizacional acima dos paradigmas tribais das casas: por exemplo importante, a derrocada do império romano no Ocidente, o novo lugar assumido pelas igrejas cristãs e o recurso destas à filosofia platónica para forjar um discurso adequado alteraram substancialmente esse contexto civilizacional e por via de consequência a maneira de ler as essências e os argumentos. As universidades medievais exibem claramente essas alterações nas suas problemáticas de dominância teológica e na especulação filosófica que daí resultou. O aristotelismo que Alberto Magno e Tomás de Aquino fomentaram é razoavelmente diferente da textualidade de Aristóteles, levando por vezes ao engano os próprios especialistas[4]: uma boa parte do trabalho filosófico de Heidegger no século XX foi recuperar as questões aristotélicas submergidas.
10. Uma das maneiras de abordar a diferença entre este conhecimento geral por essências e o conhecimento tribal dos paradigmas caseiros, que o que se chama ‘especulação’ ignora deliberadamente, é sublinhar que a escrita que argumenta sobre essências recorre apenas à visão das coisas e esconde as mãos que as manipulam, esquecendo as que escrevem (quase sempre de escriturários a quem se dita), não se ocupa dos pés dos que viajam, em resumo as essências já não são do ‘movimento’ das coisas, como era a ousia aristotélica; nem tempo e lugar, portanto nem história, lhes interessam, mas justamente apenas o que lhe sobrevive, imutável (parece) de geração em geração. E que bem isso foi! Só a grande mutação que houve entre 1450 e 1520 – a impressão dos livros e o grande cisma cristão, a descoberta dos oceanos, do planeta e dos outros continentes, o humanismo das artes e as mecânicas – gerou um certo cepticismo em relação aos saberes universitários livrescos em prol da experiência de conhecimento do novo mundo que se abriu vertiginosamente; demorou ainda um século para se descobrir o que veio completar a velha definição e abrir uma nova maneira de conhecer, filha da geometria mas também da mecânica e em “retorno às próprias coisas”, se se pode dizer sem anacronismo, sabendo que Husserl não ia muito à bola com Galileu. Filha da geometria porque ‘mede’ as coisas, da mecânica que introduzirá a força e a massa, mas com uma invenção totalmente nova, a do tempo, como atesta que não tinham instrumentos para o medir, foi preciso inventar relógios depois de Galileu. Geometria e mecânica com tempo: tratava-se de medir o movimento e de calcular as forças. Foi também precisa uma nova matemática, álgebra, cálculo infinitesimal e integral (Descartes, Leibniz, Newton). O laboratório científico é uma unidade social nova cujo paradigma (Th. Kuhn) inclui o saber já transmitido, as experimentações e os respectivos instrumentos de medição, a matemática adequada a esta, do tipo de equações cujas variáveis são verificadas segundo os resultados das dimensões medidas, relacionando estas entre si (espaço, tempo, massa, aceleração...): é nestas equações verificadas experimentalmente que reside a novidade da física europeia, o discurso que é tido habitualmente como teoria científica é a interpretação delas em língua gnosiológico-filosófica. Com efeito, o que foi introduzido assim, na sequência da geometria e da astronomia, é claro, foi o trabalho, o labor sobre movimentos, a substituição do olho definitório que observa sem mãos pelo eixo visão / instrumentos de medida. Não é tanto a teoria que permanece – ela é refutável e será refutada por novas experimentações –, mas as equações verificadas experimentalmente em qualquer laboratório. São elas que servirão ao futuro engenheiro para decidir as dimensões do seu engenho: é porque os instrumentos de medida são constitutivos da física (como da química), esta já técnica (e não apenas mãos), que técnicas científicas foram possíveis a partir de Watt, de Volta, de Gramme e de tantos outros.
11. O que se ganhou em relação à definição filosófica de observação sem mãos, teve, é claro, uma ranção: o conhecimento das ciências é regional, introduz fronteiras de especialização irredutíveis entre elas, fragmenta o conhecimento que a filosofia parecia ter unificado. Dentro desses limites, como caracterizá-lo? Arriscar-me-ia a dizer que, assim como as definições filosóficas julgavam conhecer as coisas sob os ‘acidentes’ que recebiam do seu contexto (o que levou Kant a falar de fenómenos e deixar os númenos incognoscíveis) mas tinham o seu alcance na argumentação entre elas que permitiam, na rede gnosiológica de conceitos, também parece frequente que os cientistas olhem o que se passa no seu laboratório com os olhos do quotidiano, como filósofos sem mãos, tenham dificuldade em enxergar o fora do laboratório aonde estão as ‘coisas’, o que se diz ‘realidade’, impura da multiplicidade de efeitos não mensuráveis; olham fora do laboratório como se não houvesse diferença, ele pudesse ser apagado como um andaime após o prédio construído. Ao contrário do engenheiro, que tem o seu trabalho sempre em vista do fora dos vários laboratórios de que necessita, a ter que prever os movimentos que o seu engenho vai ter que fazer, para os quais é inventado. Será pois este que mais nos interessa considerar quanto ao que resulta deste tipo de conhecimento científico: não se trata de conhecer como as coisas ‘são’, mas como se ‘movem’, quais as suas possibilidades. Se uma pedra cair nesta situação, cai assim; tal força sobre tal móvel levá-lo-á a tal aceleração, e por aí fora, assim como ‘conhecer um carro’ é saber que percursos ele pode fazer.
12. Ora, avaliar possibilidades é igualmente o que permite o conhecimento de tipo tribal, como atesta o lugar que o motivo tem em Ser e Tempo de Heidegger. Conhecer um carro tem aqui outros cambiantes, a cor, o estilo, a cumplicidade dum longo tempo de uso, os defeitos a que há que obviar de vez em quando, sei lá, mas também a força que lhe vem dos seus cilindros, as velocidades a que pode chegar. Exemplo cómodo de como os dois tipos de conhecimento se unificam praticamente, numa época em que os aparelhos e as maquinetas se multiplicam nos usos quotidianos, em casa como nos empregos. Enquanto pelo conhecimento tribal dos usos e acontecimentos conhecemos os singulares e algumas generalidades, por exemplo de tipo proverbial, o conhecimento do geral pode adequar-se-lhe relativamente, enquanto que o seu alcance mais universal, ganho em livros e estudos, se esmalta também de acontecimentos que vamos recebendo dos médias. É certo que não prossegui para o conhecimento nas ciências que têm a ver com os vivos e os humanos, não seria fácil – as doenças e as crises sociais como desafios – mas não se poderá falar de ‘unificação’ dos dois tipos de conhecimento, tanto mais que o gnosiológico é cada vez mais especializado e menos universal, cada um ‘sabe’ como consegue, e como lhe falha por vezes, a relação entre ambos os seus ‘saberes’, os artistas tanto das artes como dos ofícios sendo quem melhor porventura se aproxima, não da impossível ‘unificação’ mas, digamos, duma harmonizaçãoPensando bem, um relógio de pulso é um pequeno laboratório de contar o tempo, que supõe a astronomia e a divisão das 24 horas em minutos e segundos, digamos, e faz intermitentemente, enquanto houver pilha, o seu ‘labor’ de contagem. O que nós conhecemos, ao nível quotidiano de quem quer saber a quantas anda, é apenas o lugar do ponteiro no ecrã que vemos e que harmonizamos com a próxima ocupação do nosso tempo, pensada em linearidade. Como aliás os técnicos de laboratório, que trabalham com aparelhos de experimentação complicados que lhes estão muitas vezes vedados, também os põem em andamento carregando com um dedo num botão e olhando umas luzes e depois recebem os resultados olhando números em ecrãs, riscos irregulares de hologramas e coisas assim, que se sabe ligar ao saber gnosiológico adequado. Estas aparelhagens exibem o corte irredutível entre ambos os conhecimentos, o da teoria do aparelho e o da percepção as inscrições que ele produz, mas é sempre no contexto dos usos quotidianos (doméstico ou emprego, onde se lê por exemplo) que se sabe ‘verdadeiramente’ o que quer que se saiba, porque o que nós somos, a nossa memória, é feita da lógica desses contextos. Um saber geral, como este que estou escrevendo, lê-se com os olhos e ‘compreende-se’ através das ligações de grafos cerebrais inscritos pelas lentas aprendizagens dos paradigmas das generalidades correlativas de filosofias e de ciências, os quais se ligam a outros paradigmas que, etc. Aprende-se sempre por fragmentos, os quais se enxertam, melhor ou pior, na rede de fragmentos anteriores, escolares, profissionais, domésticos; ‘melhor ou pior’, porque tais fragmentos misturam-se com outros que por vezes são contraditórios com eles, ninguém é inteiramente lógico, à maneira do tratado lógico-filosófico, que aliás Wittgenstein veio a renegar. Falando em memória: esta está na sua grande extensão, ‘esquecida’ quando pensamos, onde se percebe que é sempre também fragmentariamente que se pensa. É por isso que escrever não é fácil.

O conhecimento fenomenológico proposto
13. Falta um último e mais ousado passo para a universalidade do conhecimento, o que tem a ver com a pretensão desta fenomenologia dos fenómenos como duplamente enlaçados, doados por cenas que os alimentam e onde circulam, distinguindo quatro cenas principais diagnosticadas pelas descobertas das quatro ciências fundamentais no século XX. A sua pretensão é a de proporcionar um conhecimento no seio da tradição ocidental que se possa chamar ‘universal’ e ‘verdadeiro’, visto que os quatro grande tipos de fenómenos descobertos se deixam analisar em paradigmas das mesmas categorias fenomenológicas. Conhecimento universal das coisas como elas se movem, com autonomia indeterminada. É ‘ambição’ do texto, da fenomenologia, não do autor que se admirou muito de ter chegado tão longe com suas capacidades medianas, que é modesto ao ponto de achar uma certa graça à ideia de que, além de alguns alunos, é praticamente o único a conhecer a verdade global, fenomenológica, do universo. Como quem brinca aos 83 anos.





[1] Condillac, Traité des sensa­tions. Traité des animaux, Corpus des œuvres de Philo­sophie en Langue Française, Fayard, 1984, pp. 195-198.
[2] Tratei longamente esta questão no meu e.book Da Natureza à Técnica. Construção, descontrução e reconstrução.
[3] Já não sabemos ler os Gregos clássicos sem conceitos, ainda que sejamos gregos de língua materna.
[4] Como Alain de Libera, La querelle des universaux. De Platon à la fin du Moyen Age, Seuil, 1996, como discuto em Da Natureza à Técnica, Leya, e.book, 3. 21-27.

Sem comentários: