quarta-feira, 2 de novembro de 2016

As condições gerais do movimento


            
1. Por um lado, o movimento em geral estava no coração da Physica de Aristóteles e o movimento local no coração da Física de Newton; por outro, as nossas sociedades actuais, em contraste com as sociedades agrícolas fortemente estáveis, são nelas mesmas movimentos permanentes dificilmente controláveis; ora, a filosofia actual parece ignorar o motivo do movimento, iludida com o tempo, como se este não fosse a medida daquele. Eis um paradoxo engraçado de pensar. A questão geral – a dos duplos laços – foi tratada num texto longo de Janeiro de 2016 no outro blogue, Filosofia com Ciências, aqui tratar-se-á duma abreviação, mas com variações, como se diz em música.
2. Há muitos tipos de movimentos, desde o movimento local marcado pela gravitação até aos movimentos dos vivos, das células aos organismos que crescem e morrem, das sociedades, das tribos às actuais hiper-complexas, das escritas, das linguagens e músicas aos filmes. De forma geral, para todos estes tipos de movimento – está aí a ambição inverosímil desta fenomenologia – qualquer movente, inerte ou alimentado (vivo ou máquina), implica como sua condição essencial que dois sectores seus ao moverem-se dependam de duas leis indissociáveis e inconciliáveis: não existem uma sem a outra – indissociáveis – e a sua diferença  impossível – inconciliáveis – é a razão de ser do movimento, entre o que o ‘causa’ (motor) e o que o ‘dirige para um fim’ (aparelho regulador). Tanto aquele como este são doação (fabrico e alimentação energética) da cena de circulação respectiva, cujas regras – heteronomia – se inscrevem neles segundo espécies diferentes (dimensão e complexidade da estrutura dos moventes) como regras da respectiva autonomia.
3. A cena (de reprodução e circulação) não existe enquanto ‘coisa’, ela é différance (Derrida) que reproduz os moventes: heteronomia da cena e autonomia de cada movente relevam das duas leis indissociáveis e inconciliáveis. Dito isto, é necessário acrescentar que há uma hierarquia das cenas, por assim dizer, cada uma sendo o desenvolvimento por evolução (por movimento histórico da cena terrestre) de outra cena mais geral: primeiro a da gravitação, a única da circulação dos outros astros, em seguida a da alimentação, dos vivos, unicelulares, vegetais e animais, depois a da habitação, das sociedades humanas com seus usos e línguas, onde enfim a da inscrição, dos textos, se desenvolveu no Ocidente permitindo a invenção de cenas das máquinas e da electricidade e das complexidades urbanas infindáveis.
4. Estas grandes quatro cenas não são arbitrárias, a sua generalidade diz-se no tipo de retiro que diz respeito aos ‘motores’ dos seus moventes. Gravitação: o retiro que é efectuado pelas forças nucleares no núcleo dos átomos (as partículas que hoje interessam os físicos não têm cena adequada, são pré-gravitação, creio) está na base de tudo o que se chama no Ocidente ‘matéria’ ou ‘substância’, sem o quê as outras cenas não seriam. Alimentação: o retiro que é efectuado do ADN no núcleo das células eucariótidas dos organismos (os unicelulares têm uma lógica ligeiramente diferente, creio). Habitação: o retiro que é efectuado pela privatização social (não em sentido jurídico moderno) nas unidades locais de habitação, distinguindo estas entre si como capazes de alianças e de rivalidades. Inscrição: o retiro do alfabeto nas escritas indo-europeias que tornou possível a invenção da definição pela escola socrática de filosofia e a teorização da geometria por Euclides, estas duas invenções tendo-se aliado na invenção do laboratório científico por Galileu, Newton e seus contemporâneos. As invenções decisivas para o que se chamou revolução industrial têm dois nomes sobretudo (que ficaram nas unidades de electricidade wattes e voltes), o do inglês James Watt, que, em 1776, inventou uma máquina capaz de movimento devido a ser igualmente governada por duas leis indissociáveis e inconciliáveis, o que lhe dá autonomia relativa em relação a pilotos e lhes poupa energia muscular, o do italiano Alessandro Volta que, em 1800, inventou a pilha como armazenamento de electricidade e em consequência inventou a corrente eléctrica, que veio a revelar-se preciosa quase um século mais tarde, entre outras coisas, para a alimentação de máquinas. Se lhe acrescentarmos o nome de Guttenberg que industrializou o fabrico de livros alfabéticos que permitiram a escola para toda a gente e a invenção anterior do dinheiro e bancos, teremos os principais elementos das sociedades contemporâneas ultra-cosmopolitas.
5. A grande dificuldade é que estas cenas dependem das especializações científicas, física-química, biologia, c. sociais e linguística, mas nesta nossa actualidade elas imbricam-se na análise dos moventes de forma desafiadora. Basta evocar os tipos de espécies de cada cena e como são inumeráveis. F-Q: os átomos são pouco mais de uma centena segundo a Tabela Periódica de Mendeleiev, consoante o número de protões do núcleo, este assegurando a impenetrabilidade do átomo, que se pode unir a outros átomos diferentes por via dos electrões (reguladores químicos) de uns e de outros que se combinam em alianças ou transformações químicas, formando uma infinidade de moléculas possíveis, minerais e orgânicas, consoante as condições de pressão e temperatura. Nas condições da nossa força de gravidade, grande lei da heteronomia da Terra, que torna impossível a explosão espontânea dos átomos, a impenetrabilidade deles diz a sua lei de autonomia enquanto moventes: inertes, serem deslocados pela gravidade e transformados quimicamente quando o contexto próximo o favorece[1]. Biologia: nas inumeráveis espécies de organismos animais, o sistema da nutrição e respiração que, pelo sangue, vai a todas as células, é o motor de energia e de ‘matéria prima’, o sistema da mobilidade – órgãos perceptivos, cérebro e hormonas, músculos – é o regulador na cena ecológica, que busca comida e abrigo de predadores. As duas leis são a da selva, comandada pelo ciclo bioquímico do carbono que, heteronomia, comanda os animais a comerem outros vivos para satisfazerem a sua auto-reprodução ou autonomia. Como um Banco francês que nos anos 60 dizia que “para ser franco, o seu dinheiro interessa-me”, também algum tigre dirá a um veado que as suas moléculas de carbono lhe interessam, para as fazer moléculas dele, que não tem outra maneira na selva de sobreviver. Linguagem: inumeráveis línguas e muito mais textos e discursos, cada tribo tendo a sua lei de verdade que qualquer indígena tem que aprender, sendo corrigido dos erros e castigado das mentiras, o que leva cada um a aprender a pensar duas vezes antes de falar, a dissimular o que lhe vem autonomamente à cabeça e a elaborar alianças e estratégias com este ou aquela e afrontamentos rivais com um terceiro. Neste jogo oral, por exemplo mais acessível, os paradigmas das palavras e das frases são os mesmos para todos, a língua como heteronomia, a esperteza de cada um será a habilidade em jogar com essas regras para marcar a sua autonomia face às dos outros, uma reflexão equivalente se podendo fazer em relação aos usos sociais e à reputação que se ganhe socialmente com ela. Sociedade: as duas leis, indissociáveis – de aliança – e inconciliáveis – de rivalidade ou guerra – explicam o movimento das sociedades, em cada  unidade local, desde as tribos ao comércio e guerras mundiais, interessando-nos aqui o das suas transformações históricas, além portanto da sua reprodução quotidiana e segundo a sucessão de gerações. O retiro social das unidades locais, que faz delas o motor do movimento, com laços linguísticos, de troca e políticos a garantirem o equilíbrio possível face às duas leis, esse retiro caracteriza o movimento das unidades pelo paradigma dos seus usos (generalizo a descoberta de Khun a qualquer unidade social), que diz respeito a todos os indígenas dessa unidade que aprenderam alguns desses usos e os exercem com habilidade maior ou menor, consoante a sua complexidade. Essa correlação entre paradigma e aprendizagem tem como consequência o carácter conservador do paradigma, a sua resistência à inovação e portanto à transformação social. Basta pensar nos nossos computadores, extraordinárias máquinas de escrever (para quem conheceu as anteriores e o papel químico para ter cópias), lembrar os incómodos que foram durante meses o termos que aprender os mecanismos deles até o fazermos espontaneamente, desconforto que retoma quando mudamos de modelo. Os mitos das tribos selvagens, sujeitas ainda à lei da selva com os outros mamíferos e árvores, têm como função opor-se a inovações (Lévi-Strauss), essas sociedades são “contra o Estado” (P. Clastres). Qualquer inovação sentida como ameaça (revolucionária) encontra pois resistência dos usos do paradigma, aparecendo vinda doutros como sendo da lei da guerra (Galileu e o Vaticano), até que a aliança a integre nos paradigmas. As  crises, mais ou menos prolongadas e os conflitos de gerações, relevam desta oscilação histórica, sendo as transformações dos costumes do ano mítico de 1968 e da década seguinte um caso singular, que foi fabuloso de viver.
6. Olhando agora para a história do pensamento ocidental, começa por ser impressionante que os grandes textos que o lançaram, os de Platão, tenham sido contra o movimento, a geração e a corrupção, ou seja o nascimento e a morte, os dois limites dos moventes, sendo vituperados e a imutabilidade das Formas ideais exaltada, a eternidade (que por sua vez vituperava Levinas, na outra ponta, judaica e não grega) contra a história que não passou do nível mais baixo, o do ‘acidente’, do particular não susceptível de ciência, no seu discípulo Aristóteles, ele que reabilitou o movimento no coração do saber na sua Physica: a ousia – primária, a substância (particular) e secundária, a essência (espécie), foi o motivo que permitiu pensar o movimento como mudança da ‘substância’. Se, como o mestre, deu importância à Geometria, não pensou todavia o espaço, mas apenas o lugar, pensou o tempo como medida do movimento mas a tradição platónica cristianizada que nos veio menosprezou um e outro por privilégio da eternidade, até ao Aquino. A Física de Newton, do movimento herdado da Physica, em que o crescimento dos vivos era predominante, reteve apenas os movimentos mensuráveis, recuperou da Geometria o espaço, a medida das distâncias entre lugares (‘metro’: medida), como poderia ter sido definido, e introduziu nela o tempo e os relógios que o medem, e ainda as forças fora das ‘substâncias’, inertes estas em suas massas, de que só conhecemos as medidas, matematizadas em equações que tornarão possível as técnicas que virão. Início da ‘des-substancialização’ do pensamento que, por via husserliana implícita (a consciência como não ‘substância’ e a redução do mundo empírico na percepção), Heidegger herdou e depois, com a linguística estruturalista, a desconstrução de Derrida. Ora, esta ciência reformulada pelo suiço Ferdinand de Saussure conseguiu recuperar a linguagem como jogo de diferenças que o pensamento latino, ao traduzir o grego logos duplamente, como ‘ratio’ e como ‘verbum’ ou ‘oratio’, reduzira a instrumento (organon, a lógica aristotélica) da ‘cogitatio’, do próprio pensamento: só no século XIX a Filologia começou a preocupar-se com os movimentos das cópias dos textos antigos e a fazer edições criticas, enquanto que a Linguística comparativa estudava os movimentos de transformação das línguas indo-europeias, donde virá Saussure e a nossa compreensão de que o pensamento é de palavras e sintaxe que é feito, em cada língua, que a razão universal tem na tradução um escolho de monta. A ‘substância’ aristotélica resistiu fortemente, na Biologia, sob forma de ‘vitalismo’, até que a bioquímica das moléculas trouxe a fecundidade que se sabe às ciências do movimento dos vivos. As ciências das sociedades ainda hoje padecerão de não darem o lugar devido às estruturas dos usos e seus movimentos de reprodução para se libertarem da ‘substância’ populacional com que definem sociedade. Quanto aos físicos modernos, fizeram do espaço e do tempo, como dizer? O espaço-tempo que se encurva é uma coisa real ou uma coisa geométrica? Em tudo o que nos deram a conhecer, há uma teoria do movimento? Quero dizer, que dê para pensar fora dos laboratórios os movimentos daquilo que vemos e tocamos e sabemos, das coisas e dos carros, dos vivos e das sociedades humanas, das suas linguagens e de cada humano em seus contextos? É a lição de Prigogine que lhes creio ainda estrangeira, a do tempo irreversível, histórico: algo de aristotélico resiste neles, ó físicos?


[1] A lei da atracção de Newton diz que dois sólidos quaisquer devem atrair-se um ao outro, como fazem os ímanes, na proporção directa das massas e inversa do quadrado das distâncias. Aparentemente, a força da gravidade da Terra é forte demais para que essa atracção se exerça como movimento. Mas sendo verdade o que dizia no início dos anos 60 Feynman, que não compreendemos ainda a força de atracção da gravidade, pode-se pensar que esta questão está em aberto, possivelmente sem que ninguém competente se preocupe com ela. Talvez haja um ‘einstein’ anónimo a trabalhar nisso...

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