domingo, 23 de outubro de 2016

O laboratório da psicanálise e a oscilação do ser-no-mundo



1. “A psicanálise, uma ciência diferente das outras” é o título duma conferência colocada neste blogue que justificava com algum detalhe essa cientificidade diferente. Essas ‘outras’ ciências eram relativas aos outros domínios a que faço aqui frequentemente referência, onde a cientificidade é menos disputada; não eram visadas as outras disciplinas psicológicas que se desenvolveram ao longo do último século, em geral após a própria psicanálise e que se pretendem ‘científicas’[1]. Não só ‘após’ todavia, também ‘contra’ ela nas últimas décadas, procurando fugir ao ascendente que Freud logrou, a meu ver pelo menos por duas das suas grandes novidades – que não creio terem sido ultrapassadas, ou sequer igualadas, por nenhuma outra psicologia, nem pela própria neurologia, que tem um estatuto científico claramente mais forte, enquanto ramo da biologia molecular – a saber, o lugar central da sexualidade (na sua relação à lei) e o papel da interpretação dos sonhos como metodologia terapêutica (que teoria dos sonhos há além da dele?). À celebridade de Freud nenhum outro psicólogo oferece minimamente concorrência, pelo menos do ponto de vista fenomenológico, já que, em termos práticos, a longa duração duma psicanálise e o seu custo financeiro são obviamente obstáculos de monta na comparação com outras terapias. Não conheço minimamente os paradigmas dessas outras terapias que se reclamam de serem ‘ciências psicológicas’ para poder fazer um confronto entre elas e a psicanálise, desta aliás dependo sobretudo de leituras do próprio Freud como contributo fundamental para a filosofia com ciências que pratico, além dum período de um ano e meio em que fui psicanalisado em Paris. Limitar-me-ei então aqui a delinear o laboratório da psicanálise e a indagar da maneira de ser do ser-no-mundo humano que o justifica e ilustra, pois em boa parte é à teoria e prática psicanalítica que devemos algum conhecimento deste tipo de aspectos dos humanos. 2. Como abordar a temporalidade quotidiana dum humano em seu ser-no-mundo? Ela oscila entre diversas ocupações e respectivas atitudes, de que quatro se podem distinguir da forma aproximativa que convém ao não especialista: a) concentrada, quando se trata de trabalho que pede atenção e exclui qualquer outra consideração; b) atenção flutuante, quando se trata duma actividade rotineira (na cozinha, à mesa da refeição, a conduzir automóvel) que dá para conversar ou pensar noutras coisas; c) relaxada em tempo de descanso, permitindo devaneios do pensamento; d) a dormir com exclusão de qualquer vigilância, mas ainda aí oscilação entre d2) os longos sonos de 90 minutos e d1) os intervalos entre eles (uns vinte minutos) de sono dito paradoxal, com sonhos mais ou menos estranhos à lógica quotidiana. As duas primeiras ocupações, a) e b), derivam de aprendizagens de usos, que tanto são de fazer com mãos e instrumentos como de dizer, que trazem consigo regras do paradigma adequado, quer técnicas, quer da moral quotidiana, o que diz respeito ao bem fazer e ao bem dizer; é nestas ocupações, já que se ensinam, que se veiculam as regras que estruturarão o humano como ser daquele mundo, perto do que Freud chamou super-ego. Enquanto que as ocupações c) relevam duma espécie de alivio quanto ao peso dessas regras, alivio que se manifesta por exemplo em risos e brincadeiras que Freud também analisou: o logos, já que tratamos aqui de filosofia, exerce com efeito o peso da disciplina, da seriedade. Grande descoberta dele, os sonhos das ocupações d1) fazem muito maior alivio do que c) com contrapeso de a) e b), justamente porque a consciência vigilante de bom senso está fora de serviço, manifestando-se apenas no que ele chamou “elaboração secundária”, aspectos do sonho que serviram à sua arquitectura de forma conjuntural e que não têm relevância interpretativa.
3. Se se aceita esta maneira de colocar quatro posições das oscilações estruturais – estrutura como movimento, como se disse em texto anterior sobre a “lei da guerra” –, pode-se entender a lógica do laboratório psicanalítico: a) e b) são-lhe inacessíveis directamente, fazem parte da ‘realidade’ extra-laboratorial da qual se colhe, como se de uma amostra fenomenológica se tratasse, um período de tempo entre meia e uma hora com alguma frequência semanal em que se coloca o paciente na posição mais propícia das ocupações c), deitado e despreocupado das ocupações a) e b) tanto quanto possível, e se incentiva a despreocupação com a directiva seguinte: ‘diga tudo o que lhe vier à cabeça, ainda que estúpido ou indecente, não me oculte nada’. Não só não se preocupe com o teor do que lhe vier à cabeça, mas antes pelo contrário, faça o que não costuma fazer, deixe de dissimular essas asneiras, que lhe estragariam a reputação fora do laboratório. É que a dissimulação do que nos vem espontaneamente à cabeça é algo que aprendemos cedo, quando nos corrigem erros ou castigam malandrices, aprendemos que dizer disparates cria a reputação de idiota ou de imoral: aprendemos a guardar para nós, como segredos, esses inconvenientes sociais, de tal maneira aprendemos que esses disparates se dissimulam a nós mesmos, tornando-se ‘inconscientes’, não sabidos do próprio, remetidos para a zona esquecida de que os sonhos farão a sua festa, por vezes dolorosa, assinalando o ‘peso’ do social que nos pesa no que se chama ‘pesadelos’. Todo o jogo da análise faz-se assim, ignorando quanto possível a) e b) para, em c) de laboratório, deixar vir d1) à memória: não aquilo que se esqueceu, mas algo que foi elaborado – “elaboração primária”, nos termos de Freud: condensação, deslocamento, encenação – sobre aquilo que se esqueceu, algo que pode ser dito usando uma frase de Levinas, “um passado que nunca foi presente”.
4. Se a cito (o que ele detestaria, ele detestava a psicanálise), é porque a citação ajuda a compreender muitos dos malentendidos da psicanálise, mormente em torno do Édipo que o próprio Freud hiperbolou e da sexualidade genital, a qual por regra só desperta na puberdade. Os sonhos não revelam forçosamente uma sexualidade perversa de crianças de 3 ou 4 anos, mas a maneira como a lógica da terapia analítica consiste em apanhar a boleia do sonho e conseguir ir ao passado que este sonha com material de épocas diversas. Fiz muitas vezes sonhos de me faltar um ou outro exame de liceu para cumprir, sem nunca ter sonhado com o paradoxo de ter vindo a ser professor universitário de filosofia apesar de ter chumbado nessa disciplina no liceu[2].
5. É o retorno deste ‘ir ao passado’ que permite ao paciente ir compreendendo alguns nós da sua estrutura oscilante e os desfazendo assim, as vindas ao divã do laboratório alternando com as ocupações habituais e dessa inter-relação se refazendo o seu discurso sobre si e o mundo que ele é. Ora bem, o que há de excepcional neste trabalho de análise científica é que ele não opera ‘espécies’ (como a biologia ou a antropologia) ou ‘paradigmas’ (como a linguística) válidos para muita gente, nem chaves de sonhos nem Édipos universais; pelo contrário, este trabalho é rigorosamente empírico, faz-se sobre o que há de mais particular, individual, as associações de ideias e os sonhos de cada um, incomensuráveis sem dúvida entre humanos, fossem até irmãos gémeos, creio. A razão de ser desta radicalidade empirista vem da ambição imensa que é a dela: o conhecimento duma ‘mente’ humana. A. Damásio escreveu que esta era constituída pela rede dos neurónios enquanto só o próprio tem acesso a eles. O termo ‘acesso’ mostra bem a origem neurologista do diagnóstico: o neurologista não tem acesso aos neurónios do outro. Não tem? Claro que tem, a este ou àquele, a tal porção de neurónios, acesso bio-físico-químico, mas não à rede deles todos. Ora, sendo a ‘mente’ essa rede enquanto tal, global, digamos, com seus conhecimentos actuais e suas memórias, as que estão lá esquecidas e as que jogam no conhecimento actual, e ainda aquelas que mereceram o nome de ‘inconsciente’ por não terem condições de consciencialização, tão sobrepostas de outras quando eram frágeis demais e sem meios linguísticos de se dizer, sendo tudo isto a ‘mente’, a palavra ‘acesso’ é inadequada: essa mente é parte do próprio ser-no-mundo. Se o neurologista não lhe tem acesso pois, se depende sempre do que o paciente disser e aí falta-lhe cientificidade no seu laboratório, percebe-se então que a psicanálise dá-se como objectivo (alucinante!) o conhecimento dessa mente, chocando inevitavelmente com o enigma que ela é, inclusivamente para o próprio. O conhecimento que ela gerar vale sobretudo para este, o que significa que é enquanto terapia que ela se justifica como ciência, duma maneira que nem sequer vale para a medicina: embora terapia de humanos individuais, em que, como se diz, “cada caso é um caso”, enquanto biologia, ela permanece uma ciência como as outras.
6. Sem que dê para desenvolver aqui, acontece que na fenomenologia que aqui se vai tentando fazer a partir da sua articulação com as principais descobertas das ciências no século 20, a psicanálise foi a única que esclareceu desde o início a relação entre o laboratório e o fora dele, o retiro a que chamou “inconsciente” como motor dinâmico das relações com os outros humanos tendo em conta – no tal “super-ego” – o aparelho de regulação social dessas relações, o duplo laço deste enigma que somos cada um de nós. Há uma questão curiosa, me parece, que nem sequer sei se há algum lugar discursivo em que ela possa ser colocada, mas que faz parte essencial do trabalho psicanalítico, que incentiva as chamadas – desde os séculos clássicos – “associações de ideias”. Freud terá permitido perceber, quer na Psicopatologia da vida quotidiana quer em O chiste na sua relação com o inconsciente, livros que li há já muitos anos, que há duas maneiras bem diferentes de a uma ideia se associar outra: uma delas é a coincidência literal de palavras ou expressões entre a primeira e a outra que se lhe associa, sendo arbitrária a associação em relação aos respectivos sentidos; a outra é a coincidência à maneira do sentido linguístico, mais perto de alguma lógica assim, enquanto a primeira se faz em torno do significante, literal e arbitrário por definição. Mas a questão que quero pôr é prévia à associação de ideias, é a de saber porquê as há, porquê a corrente de ideias, digamos, que nos percorre: donde vem à nossa mente, que é mais larga do que isso, esse percorrer de ideias que a ocupa, à mente, de forma que se diria prioritária, ou predominante, este ‘cinema interior’ que só cessa nas ocupações a) mas volta nas b) e domina claramente em c), para desaparecer em d2) e voltar à solta em d1) como sonho? Não é o caso de toda a gente? Não se trata só de ‘ideias’, é certo, mas de ‘coisas’ que vêm à cabeça, com emoções ou desejos por vezes, mas também mais independentes outras vezes, desinteressadas, ou mesmo pouco interessantes, e que se associam justamente, pegam-se uma na outra, por letra ou por sentido, por algo que se vê e suscita o que suscitará outra ‘coisa’... o que é que dá motor a este ‘suscitar’ ruminante? Ele ocupa-nos, por vezes preocupa-nos, não nos larga, em geral foge ao nosso controle, quem consegue fazer silêncio em si, calar esta voz incessante? Os que fazem meditação sabem como a chamada ‘distracção’ vem breve, um pensamento qualquer que se busque amadurecer faz associação de ideias com outra coisa qualquer sem relação com ele e depois outra coisa ainda, o silêncio revela-se muito difícil, senão impossível. Ora, este percorrer de ideias não somos ‘nós’, é certo (nós somos muito mais do que isso, um ‘mais’ que não sabemos), mas ela está muito perto do que podemos dizer que somos nós quando pensamos, desejamos, planeamos, escrevemos, discutimos, quando achamos que estamos a ‘fazer’ algo que nos é importante naquele momento, mas ... e quando o percorrer de ideias volta e nos deixa mais ou menos passivos, até sem darmos atenção, sem controle dele? Donde vem a energia que move este ‘cinema interior’? Será o grau zero da sublimação (da líbido) freudiana? Provavelmente é a energia das próprias células. Estas, em seus cerca de 200 tecidos especializados, estão sempre disponíveis para o que podem e sabem fazer, uma boa parte deles feita para tratar da comida; os neurónios têm parte nesta disponibilidade e quando a atenção não é chamada por algo do mundo[3], estão prontos para o que der e vier entretendo-se entretanto com o percorrer de ideias, que não fazer nada seria demasiado perigoso para o ser-no-mundo fora do abrigo do sono. Distraídos, mas prontos s para o que for preciso.
7. Uma das dificuldades nestas coisas neuronais, pelo menos do ponto de vista do leigo que nunca viu neurologistas porem a questão desta maneira[4], tem a ver com a relação entre o que se aprendeu e o que Damásio chama, no Erro de Descartes, “emoções secundárias” (as “primárias” respondem a situações de fome, sexo, etc.) que terão a ver sobretudo com as relações com os outros, quando os usos rotineiros são afrontados num acontecimento, inesperado por definição, e obrigam a buscar energias suplementares para as decisões que haja de haver. Fora do acontecimento, os usos fazem-se através dos grafos (Changeux) da respectiva aprendizagem que disciplinaram as ‘emoções’ que foram necessárias para aprender, quando ainda não se sabia. Estas emoções são de ordem hormonal (hormao, em grego, é empurrar para movimento, excitar para a guerra, por exemplo) e jogam com os grafos que as disciplinam, lhes contêm a energia, efeito justamente da aprendizagem. Ora, nos exemplos de Damásio, trata-se sobretudo de cólera e de medo. A cólera dá para entender, uma energia que se insurge contra a impotência relativa da razão dos grafos, quer no falar que grita, quer na gesticulação dos gestos para bater ou afrontar. E o medo? Em contraste com a cólera cuja vibração diz o excesso que inteiriça o corpo para o confronto, é o tremer do corpo que assinala o medo, a impotência da razão ganha nos grafos da aprendizagem manifestando-se na fragilidade desse corpo que treme. Um corpo que treme, quando ri ou chora, num orgasmo ou com muita febre, é o quê? Digamos que se trata dum corpo que se des-organiza, que perde a capacidade de se mobilizar, de mobilizar o sistema neuronal que, dos órgãos perceptivos ao cérebro e daí aos músculos, lhe permite circular no mundo com a sua inteireza, se dizer se pode. Desconjunta-se, não fica em pedaços, mas falha-lhe o conjunto orgânico da mobilidade que permite responder, perde-lhe o controlo, a disciplina rotineira cessa de funcionar momentaneamente. Tudo se passa como se o jogo entre a química hormonal dos neuro-transmissores e a rede sináptica dos grafos aprendidos dos usos tribais[5] não fosse uma ‘dialéctica’, mas se tratasse justamente de oscilações, não ‘entre’ mas ‘dentro’ da rede químico-eléctrica: falha-lhe a habilidade espontânea, em que química e grafos jogam bem, mas falha também a disciplina destes sobre aquela que conseguisse fazer face à situação. De qualquer forma, falta a razão dos comportamentos usuais segundo os grafos nos vários casos de tremores: quando se chora convulsivamente (uma convulsão neurológica é um tremer – tremendo! – do corpo todo revolvido sobre si); quando se ri a bandeiras despregadas e se é desarmado pela piada dum adversário inteligente, é o tal peso do logos social que nos estruturou que se desfaz, o ‘despregar-se’ do tremer, desconjuntado o corpo; aliás, também na cólera, quando a uma fúria de patroa se chama descompostura; e do orgasmo, que depois vira sonolência, como dizer que o mundo em redor desaba, mercê duma como que fogueira que abrasa os corpos, os convulsiona, daí que o pudor tenha tradicionalmente preferido retirar-se em privado, expulsando previamente espectadores eventuais.


[1] Hoje em dia, quem quer que proponha números acha que é ‘científico’.
[2] No 6º ano, numa cadeira com esse título mas que era – manual, professor e aulas sonolentas depois do almoço – completamente incompreensível para o garoto bom em matemática que eu era aos 15 anos.
[3] Digamos de forma simplificada que a atenção é a maneira como o sistema neuronal, entre o ver / ouvir e o mexer / falar, faz a sua parte duma prática, atento às suas regras e zonas de aleatório; digamos que pensar dá-se entre duas práticas – por exemplo intelectual, entre ler e escrever, ou entre ter encomenda duma obra e fazê-la –, organiza mentalmente os dispositivos necessários.
[4] Mas pus-me a reler os parágrafos 11. 41-43 do meu Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, no 2º volume, e encontrei a questão tratada tanto quanto um leigo audaz foi capaz, mas reconheci que a leitura é difícil, infelizmente. O que é novo paradigma pede tempo.
[5] Um jogo entre bioquímica e electricidade de iões que reagem com outros iões bioquímicos, oscilações entre densidades de sódio e de potássio nas sinapses, é inacreditável o detalhe destas coisas que se podem ler mas sem se saber ir mais longe. A electricidade inventada por Volta é de electrões do metal dos cabos, não reage quimicamente com ele, como faz a de iões.

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