quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Doação, aliança, lei da guerra



1. Heidegger ‘fingiu’ que eram motivos filosóficos gregos os temas que recuperou da Bíblia hebraica, sabendo e não sabendo dessa mascarada do seu pensamento, única explicação para o seu feroz anti-semitismo. O tema que aqui me interessa é o da criação a partir do nada (nada de ser), criação de tudo o que é fecundo no universo do céu e da terra, seguida do repouso no último dia, deixando essa fecundidade à autonomia que lhe é própria, a que a Bíblia chama bênção e vê-se pelas narrativas da sequência que nunca está assegurada de não conter maldição no seu seio. Transposta (grosseiramente) para o pensamento de Heidegger: é a doação pelo Ser-Nada que se retira para deixar ser os entes doados em sua autonomia relativa aos outros entes doados (mas só o pensamento dele nos permite ler a Bíblia assim, como à sua maneira mostrou Daniel Sibony). Juntamente com o ser no mundo em Ser e Tempo, é esta a sua inestimável doação ao pensamento ocidental (é o que não compreendem os inquisidores do seu anti-semitismo – infinitamente mais lamentável para os que o prezamos como pensador decisivo –, mostrando que não é o pensamento que lhes interessa; já foi assim com a Inquisição que, para variar, era anti-semita), capaz de o transformar em ordem à compreensão das graves questões que nos assolam, de tornar a filosofia, com as ciências suas filhas amadurecidas, esclarecedora do que importa discernir.
2. A questão que quero retomar aqui é a da relação entre os três motivos fenomenológicos do título, nomeadamente a razão de ser do que fui levado a chamar a “lei da guerra” no Jogo das Ciências com Heidegger e Derrida. Aconteceu-me que a rivalidade se me deu como uma espécie de universal das relações sociais, devendo pois ter parte na definição de sociedade: não apenas entre sociedades de línguas e usos diferentes, o caso mais óbvio do que se chama ‘guerra’ na história dos humanos, mas também entre cidades na antiga Grécia, entre casas e empresas em concorrência, institucionalizada nos diversos desportos, mas até ao âmago das famílias, como atestam três textos importantes do pensamento ocidental: o primeiro crime na Bíblia é o dum irmão que mata o outro, as tragédias segundo a Poética de Aristóteles são nomeadamente entre irmãos, a Interpretação dos sonhos de Freud aborda aqueles que dizem respeito aos irmãos sob o aspecto da rivalidade. Deu-se-me como constatação empírica, digamos assim, em contraste com a lei da selva cuja lógica resulta do ciclo bioquímico do carbono, essencial às moléculas das células. Porquê então chamar-lhe lei? Foi por via deste paralelo entre estruturas biológicas e estruturas sociais, a uma lei da selva devendo corresponder, como seu prolongamento além do canibalismo, a lei da guerra. Só mais tarde se me pôs a questão de saber se as relações de aliança e de troca não devem também ser ‘leis sociais’, sendo aliás prévias à lei da guerra. E que têm que ver estas relações com o que J.-L. Nancy chama o comum da sociedade, anterior pressuposto de qualquer apropriação privada? Um exemplo que eu daria deste comum é o da língua, sendo a aprendizagem por cada criança um caso de apropriação desse comum, manifestado na sua fala e com o crescimento no seu estilo de falar, como também os diversos outros usos aprendidos vindos do comum são apropriados por cada um em sua habilidade espontânea, entre artista e canhestro.
3. Ora bem, a vantagem deste exemplo é de mostrar que a língua, parte do ‘comum’ duma sociedade, não existe ‘em si’ como, digamos, estrutura ‘presente’, como mostra o motivo linguístico de paradigma, constitutivo da língua: feita de paradigmas ‘ausentes’, ela produz efeitos de inteligibilidade em cada fala que ela organiza, as suas regras produzindo sentidos captáveis pelos outros. Ou seja, o que se chamou estrutura nos anos 60 e 70 só o é enquanto é movimento; obcecado com a diferença, que tendeu a pensar como ‘espacial’ (medida da distância entre lugares, poderia ter definido Aristóteles), faltou ao estruturalismo a consideração do tempo, e foi por onde Derrida avançou com grande fecundidade com o seu motivo da différance – do verbo ‘diferir’, adiar: diferença com tempo –, espacialização e temporalização duma só penada e relação estrutural ao outro, por via mormente da aprendizagem: a inscrição como origem da linguagem[1], mais precisamente da fala, o exterior (institucional, o tal ‘comum’) como doação do interior. E este ‘interior’ que se vai instituindo lentamente, um organismo que cresce, um aprendiz que se torna hábil, só pode ganhar possibilidades graças às relações estruturais com outros: maternidade, aprendizagem, troca social. A doação institui tecidos de diferenças – sempre plural, sem ‘simples’, como as ciências têm mostrado exuberantemente – que fazem aliança com as diferenças de outros, com outros tecidos de diferenças, mormente as dos doadores retirados, o qual retiro cria as condições de aliança da (nova) autonomia – o que permitirá rivalidades, diferendos (em francês, différent, différant e différend soam oralmente como a mesma palavra, apenas a escrita alfabética revela as diferenças). Aliança e rivalidade, pois, mas aqui não é duma só penada, diferendo pressupõe diferenças instituídas, temos que prosseguir a reflexão.
4. Assim, a estrutura é igualmente movimento: fruto fecundo de doação de outros, só é viável em alianças. Ora, já ao nível da fenomenologia biológica, a aliança como efeito imediato, se dizer se pode, da doação, é prévia à lei da selva, pelas mesmas razões bioquímicas da alimentação: esta resulta da ‘relação estrutural ao outro’ e antes da autonomia do organismo adulto capaz de caçar e de escapar de ser caçado, a maternidade é a aliança que torna possível alimentar esse organismo durante o seu crescimento, que o preserva da lei da selva a que a mãe está sujeita. Por outro lado, K. Lorenz, no seu livro A agressão, uma história natural do Mal, mostra como certas espécies têm rituais que impedem de se comer os indivíduos dessa espécie, ou ao menos da sua sociedade próxima, uma forma de aliança, sem dúvida, em espécies desenvolvidas, mas de que abelhas e formigas dão exemplo em verdadeiras sociedades de invertebrados. Ora, a alimentação – basta pensar que o metabolismo de cada célula se faz com a simultaneidade de muitas centenas de reacções químicas – é exemplo claro duma estrutura que é movimento, um organismo que cresce, amadurece e depois falece. Tudo isto, no organismo, releva da ‘aliança’, mas também se joga, dir-se-ia indissociavelmente, segundo a ‘lei da selva’ sem a qual não há que comer: só a zona da proximidade de espécie social e seus rituais permite preservar a aliança. Esta tão espantosa coisa de quase todos os vivos começarem por semente ou ovo de dimensão ínfima implica justamente estas maneiras de preservar o minúsculo e o seu crescimento até que consiga afrontar a lei da selva como adulto, maduro. A maternidade é uma reserva que afronta a lei da selva.
5. No que às sociedades humanas diz respeito, parece claro que as unidades locais de habitação, nomeadamente casas das sociedades agrícolas e famílias modernas, são antes demais zonas de aliança a que corresponde o seu paradigma de usos, como por assim dizer condição do seu equilíbrio homeostático interno. Igualmente, o sistema de trocas entre essas unidades até ao mercado, com as suas regras monetárias de equivalência e a ‘língua dos preços’ que qualquer vendedor e comprador tem que conhecer, é de raíz uma estrutura de aliança que substitui os saques e outras formas de roubo. Mas tanto o exemplo do mercado e da respectiva luta de classes entre lucros e salários, como o da violência doméstica e as disputas entre herdeiros mostram bem que essas estruturas não são indemnes à lei da guerra. É aonde a questão da relação entre aliança e rivalidade (ou guerra) se põe: donde vem esta? As três dimensões da différance gramatológica jogam na doação de cada humano, não apenas na gravidez e no nascimento, período do primeiro crescimento em que a mãe tem o papel fulcral, de que se retira parcialmente no parto mas continua no aleitamento e primeiras aprendizagens, tempo quantas vezes idílico para elas, clara aliança pois. E no entanto a teoria psicanalítica descobriu que esse idílio era atravessado pelo interdito do incesto que traz o bebé para o paradigma de toda a gente da família (ou da escola), e se manifestará como lei do Pai (Lacan), de facto, intervenção já da lei da guerra sem a qual a criança se quedaria em autismo. Será essa lei que provoca a sua autonomia a afirmar-se no seio do paradigma familiar ou escolar, a dizer ‘não!’, a deixar formar-se em si o que Levinas chamou “inter-essamento”, digamos uma forma de defesa da autonomia que vai crescendo face à dos outros do mesmo paradigma. Porque é que essa defesa aparece como necessária? Porque o que predomina nestas primeiras fases de crescimento e aprendizagem é a fragilidade daquele que ainda não sabe que chegue, é a ‘passividade’ própria da aprendizagem como doação vinda dos outros, já que estes nem sempre se retiram: é que também se aprende com os seus pares em idade e imaturidade, de facto aprendemos a vida toda com quem quer que seja com quem convivamos, com quem nos cruzemos (o emigrante que deixa de falar a sua língua com outros vai perdendo-a), sempre essa aprendizagem implica um mínimo de passividade, de fragilidade, de precisar de defesa pois. Enquanto que as primeiras passividades se tornam actividades lentamente com o retiro dos outros não problemático, preservação pela aliança, parece que à medida que a actividade ganha força pode permitir defender-se de outros que não se retirem, isto é, que queiram impor-lhe a autonomia deles. Será aonde a lei da guerra começa a encontrar raízes, a penetrar no que em aliança se aprende. A aliança do paradigma não deixa de implicar uma aprendizagem em vista da solidariedade que é necessária ao paradigma da unidade local (familiar, escolar), mas ele tem mecanismos que favorecem esse reforço da autonomia como defesa diante de outros, quer castigando erros e delitos, quer fomentando veleidades de ser o melhor, critérios de bem e mal que respondem às oscilações desta autonomia crescente, por vezes magoada, outras vezes exaltada. Querer ser o melhor implica reforçar a defesa da fragilidade e aprender a tomar posição, a atacar.
6. Se for assim, porque é que então a guerra é ‘lei’, sendo a aliança prévia? A questão poderia ser posta assim: porque é que a santidade é tão rara? Porque é que não há sociedades inteiramente justas, em que a solidariedade da aliança se impusesse como única lei, aos usos hábeis conseguidos juntando-se o “amor do próximo” que o cristianismo proclamou e que tão pouco pegou, tão difícil é, senão possibilidade ‘impossível’. O que a história mostra, por um lado, é que a guerra, ou de forma geral a rivalidade, sempre triunfou e, por outro lado, sempre os melhores humanos se bateram contra ela, pela razão, pela justiça, pelo progresso. Mas há que dizer que as sociedades foram quase sempre viáveis; fora catástrofes – sismos e epidemias – ou implosão de super-estruturas imperiais, resultado de guerras justamente, foram quase sempre viáveis na sua reprodução de gerações, sem que as rivalidades fossem por regra suficientes para impedir essa reprodução: triunfo da aliança, da estrutura – movimento, por certo; mas simultaneamente triunfo da lei da guerra a jogar fortemente nessa estrutura sob forma de divisão em castas ou classes. O que resulta então em dizer que, por um lado, a justiça democrática será sempre um combate, a lei da guerra nunca vencida de vez; mas também que esta ‘lei’ não é uma verdadeira ‘lei’, inexorável, como é o caso da lei da selva, mas sempre empírica, tentando cativar cada miúdo e cada miúda desde pequenos, jogando a ‘maldade’ dos outros contra a sua inocência.
7. Diante do dilema da relação ao outro que quer impor a sua autonomia contra a minha, como fazer? Digamos que são possíveis três hipóteses, sugeridas por Giovanni  Papini, na sua História de Cristo que li na minha juventude, comentando a célebre recomendação de Jesus no evangelho de Mateus, de oferecer a outra face a quem bate numa delas, que sempre foi ridicularizada pelos valentões para quem a coragem está nos músculos dos braços. Dizia ele que ou se fugia, e seria cobardia, ou se respondia lutando, e seria a guerra, ou se desarmava o adversário pela valentia pacífica de oferecer a outra face, o que justamente está longe de ser fácil. Três hipóteses mas talvez nem sempre três possibilidades que o mundo ofereça, já que as possibilidades são sempre do humano mas dadas pelo mundo em que ele é. Diante de quem quer impor o seu poder sobre mim, ou me sujeito, e entrarei numa escalada de poder consentido, ou me consigo sobrepor, e a escalada será de poder exercido sobre o outro, ou me solidarizo, fazendo equipa, jogando a democracia a fundo pela justiça, e vence-se a lei da guerra. Como os santos, felizes artesãos de paz, diz o discurso da face oferecida.


[1] São os três definidores da trace ou différance em De la Gramatologie : “a estrutura geral do rasto imotivado [ou différance] fazz comunicar na mesma possibilidade e sem que se os posssa separar excepto por abstracção, a estrutura da relação ao outro, o movimento da temporalização e a linguagem como escrita” (p. 69).

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