Em ordem ao texto que publicou no Ipsilon de 30 de setembro, o A. Guerreiro fez-me as seguintes perguntas.
1) Você fez
estudos teológicos (já agora, não se importa de especificar esta minha afirmação
demasiado vaga e generalista?) e passou para a Filosofia, enquanto professor universitário e
investigador. Como se deu essa passagem? Continuou a ler a Bíblia ao longo da
sua vida e recorreu a ela com frequência? O seu interesse pela própria história
do cristianismo compreende também o estudo da recepção e das leituras da
Bíblia?
2) Curiosamente,
os domínios e os autores da filosofia contemporânea que mais presentes estão na
seu trabalho filosófico são aqueles que mais solicitam a "suspeita" e
a "crítica" (por exemplo, Derrida). Como lê hoje a Bíblia,
olhando-a por trás dos ombros desses filósofos?
3) O seu particular interesse pela linguística e pela filosofia da linguagem
deve-se também, e em que medida, à sua formação teológica?
Respondi-lhe assim:
1) Faz 60 anos que acabei uma licenciatura em engenharia civil e entrei
para um seminário, onde tive um extraordinário professor de filosofia, o P.
Honorato Rosa (que veio a ser professor na Faculdade de Letras sem nenhum
diploma universitário). Fui padre 7 anos (capelão da Base Aérea da Ota,
professor de moral do Liceu Camões, corrido no fim do ano, prior da Baixa da
Banheira), em 68 acabei teologia em Paris e desliguei-me publicamente da
Igreja. Em 74 publiquei Lecture matérialiste de l’évangile de Marc. Récit,
pratique, idéologie, Cerf, 3ª ed.
em 76, trad. espanhola, alemã e americana. Foi o que me deu currículo para
Filosofia em Letras, em tempos de revolução. A tese de doutoramento (em
Linguística!, não tinha diplomas para ser em Filosofia) foi sobre a epistemologia
da semântica saussuriana e já com influência dominante de Derrida (editada pela
Gulbenkian).
A minha leitura de Marcos teve duas originalidades. O texto foi lido à
maneira do S/Z de R. Barthes,
uma leitura dum texto singular, que descobriu uma contradição entre a narrativa
sobre Jesus e um discurso teológico que ‘justificava’ o desastre final, a
crucifixão, anunciando-a de antemão, mas a narrativa era duma estratégia para evitar
tal destino. Jesus não queria morrer, a sua última palavra é dum abandonado por
Deus. Ora, a noção teológica posterior, duma redenção como plano de Deus,
resulta dessa contradição: toda a teologia ‘explica’ este abandono divino. A
outra originalidade foi althusseriana, estudar o modo de produção da Palestina
da época, para interpretar politicamente o que estava em jogo na narrativa. A
anteceder um ensaio de teoria formal do conceito de modo de produção (donde o ‘materialismo’), com a inclusão de G. Bataille
para perceber as questões em torno do parentesco (Lévi-Strauss e Freud), que o
marxismo negligenciou.
Esta leitura de Marcos foi retida por exegetas de língua alemã entre as
principais 50 obras de leitura bíblica desde o século XIX, poucas aliás não
sendo em alemão.
Thomas Staubli, Wer knackt den Code?
Meilensteine der Bibelforschung 50 Porträts, Patmos, 2009, Dusseldorf e
01_archive.html http://ppt/2014_11_01_archive.hl
A filosofia e o cristianismo têm uma história comum a partir da obra do
filósofo platónico cristão Orígenes de Alexandria (185-254), o criador da
teologia cristã. As universidades medievais são o ponto mais alto desse
encontro. Ora, a filosofia de Platão é redutora de tudo o que é histórico e
corporal, portanto de tudo o que as Bíblias contam, a hebraica e a cristã. O
desafio que enfrenta Frederico Lourenço, autor que me é muito simpático, é o de
elas serem antropologicamente hebraicas como os seus autores, mas as suas
versões gregas terem sido depois relidas teologicamente, mesmo na liturgia,
segundo essa redução ignorante das categorias hebraicas: ora, foram estas que
suscitaram frequentemente heresias, o que levou a Cristandade a fechá-la em
latim, quando as populações deixaram de conhecer a língua. O protestantismo foi
o rebentar dessa clausura quando a invenção da imprensa permitiu a divulgação
de traduções vernáculas, a primeira sendo a de Lutero. O catecismo que a Igreja
católica fez para os leigos era anti-protestante, anti-bíblico por omissão. Foi
na 2ª metade do século XX, após a guerra, que ela teve uma renovação bíblica de
que fui testemunha na minha juventude.
Um exemplo que o tradutor deve ter presente: no novo Testamento aparece por
vezes o termo psuchê (alma)
que nunca é oposto a sôma (corpo), o destino após a morte é a ressurreição
dos corpos; com Platão vingou a imortalidade das almas e assim se lê comummente
a Bíblia muitas vezes ainda hoje. Outro: evitar a noção errada de que a moral
sexual do Ocidente foi herdada do judeo-cristianismo, foi do greco-cristianismo
platónico (e maniqueu).
2) como já ultrapassei largamente os 2000 caracteres, encontrará um
vislumbre de resposta a esta imensa questão num texto do meu blogue Questions
au christianisme, “Argumentaire”
dum manuscrito sobre o cristianismo, quando não se pode crer num Criador.
3) A Linguística era a ciência farol do estruturalismo em Paris (67-74),
ele dominou a minha escrita sobre o texto de Marcos, uma aventura de grande
paixão intelectual, solitária, mas tive a sorte de encontrar cúmplices, a certa
altura, um deles, M. Clévenot, foi meu editor e orquestrador dum movimento
internacional em torno das leituras materialistas da Bíblia, que durou uma
dezena de anos.
A Filosofia da Linguagem que eu ensinei tive que a fazer (a que existia,
anglo-saxónica em torno de Frege e Wittgenstein, não me interessou) e veio com
as leituras de Derrida que me levou a contar também com as novas ciências da
linguagem, a linguística, Barthes, Freud, Lévi-Strauss, neurologia. Da Filosofia
da Linguagem cheguei à Filosofia com Ciências (Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, 2 vol, 2007, e La Philosophie avec Sciences au XXe siècle, 2009, ambos no L’Harmattan).
Alguns textos do blogue
[mas há que dizer que provavelmente o que o Frederico Lourenço está a fazer é o contrário do que deve ser feito: não há nenhuma Bíblia grega, que ele diz traduzir, o que há é a versão grega duma Bíblia antropologicamente hebraica, com alguns autores da Bíblia cristã judeus helenizados, nomeadamente Paulo de Tarso, mas antropologicamente judeus]
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