quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Desconstrução : o que tem a ver com a ‘crise’ ?



1. O jornalista António Guerreiro, cujos textos no Ípsilon, revista cultural do jornal Público, todas as sextas feiras são da melhor intervenção filosófica que se faz entre nós a nível de jornais – ele que não cursou filosofia mas literatura, ombreia com a gente da literatura como Silvina Rodrigues Lopes, Manuel Gusmão, Fernando Guerreiro e outros, com quem me entendo melhor em filosofia do que com os filósofos profissionais – na sua “Estação meteorológica” (de 16/09), onde costuma diagnosticar o estado do tempo no que ao pensamento mediático diz respeito, divertiu-se a glosar o uso que se tornou habitual do termo ‘desconstrução’ por qualquer comentador, embora a leste das terminologias filosóficas actuais, que até nem saberá quem é Jacques Derrida, o filósofo que criou o termo em francês na peugada doutro alemão de Heidegger. A dizer verdade, A. Guerreiro não foi tão feliz em retirar pensamento da sua análise como costuma, nem seria fácil em espaço tão reduzido, e foi o que me estimulou aqui: o porquê do motivo da desconstrução, que pode ele elucidar sobre a crise de civilização que manifestamente atravessamos, sem que ninguém saiba para onde se caminha.
2. A origem heideggeriana, Abau, Destruktion da ontologia ocidental, versou ‘destruir’ o substancialismo aristotélico desta, propondo o motivo de diferença ontológica – entre o Ser (não ente, substituído mais tarde pelo Ereignis) e os entes substanciais – como chave de interpretação da história vinda dos Gregos e dos Europeus do século XVII a gerar a modernidade que hoje se globalizou. Derrida prolongou esse pensamento propondo uma diferença gramatológica, uma différance, prévia à diferença ontológica heideggeriana que ainda terá ficado em parte sujeita ao que denunciou. Tenho escrito sobre isso neste blogue. Aqui limitar-me-ei a definir este motivo gramatológico da différance como o que permite entender todo o movimento do que quer que seja, a) como jogo que espacializa-temporaliza, b) relacionado estruturalmente a Outrem donde ele recebe tanto as regras diferenciais, económicas, que o especificam enquanto movimento (e por aí susceptível de ciência) como o seu excesso singular, o que o distingue dos outros indivíduos da sua espécie, c) e nomeadamente dando conta da escritura (instituição diferencial social) como origem do logos, isto é da linguagem oral e do pensamento.
3. De a), resulta que não há espaço-tempo, como julgam os físicos, exterior ou separado das coisas que se movem, que espaço é distância entre lugares e tempo medida do movimento segundo o antes e o depois, como definiu luminosamente Aristóteles, tendo os físicos deixado de compreender o ‘antes e o depois’, o sentido histórico do tempo irreversível, como sublinhou Prigogine fortemente (embora sem ligar ao velho mestre do Liceu). De b), resulta que nada é isolado do seu contexto, o que dá para já uma orientação para o motivo da desconstrução: ela opõe-se à definição que Sócrates, Platão e Aristóteles inventaram, retirando o definido do seu contexto singular para o generalizar como essência; contextualizar, algo que hoje em dia se faz com alguma frequência, faz parte do gesto desconstrutivo, em rigor infindável, já que todo o contexto tem contexto também, nunca se ‘acaba’ a desconstrução, ela é indefinida. De c), resulta algo que nos leva ao âmago dela, que tem a ver com o que, ‘construído’ segundo uma oposição, é des-feito: é a contradição que se joga no movimento e tem incidências no ‘sentido’ que damos a esse movimento. O que quer dizer que a desconstrução joga-se segundo um aforismo derridiano, “não há fora de texto” (De la Grammatologie, p. 227)[1], joga-se nos textos enquanto nossa maneira de sabermos os movimentos do que quer que seja, joga-se no que os textos transportam de uns para os outros, nas leituras, nas pedagogias, nas aprendizagens, mas também, lá iremos, nas variadas técnicas. O que se desconstroi afecta-nos a todos, saibamo-lo ou não.
4. O que chamei ‘incidências no sentido’ ilustra-se na maneira como privilegiamos espontaneamente o nosso pensamento interior, como se pensa frequentemente que esse pensamento tem que buscar palavras para se dizer e comunicar a outros, como enfim um texto escrito, que se afasta daquele que o escreveu e perdura além da sua morte, é menos íntimo, mais artificial, sei lá, desde Platão no Fedro que essa condenação da escrita pelo logos foi exarada e retida pela tradição, até por aquela que se reclamava de textos inspirados pela divindade: essa ‘inspiração’ era desconfiança da escrita, da ‘letra’, em favor do ‘espírito’. É a ‘letra’ que é sujeita no sentido pelo ‘espírito’, achamos que o pensamento do autor domina aquilo que escreveu. Eis uma maneira de dizer um alvo da desconstrução, que se dirigirá sistematicamente na tradição ocidental a todas as oposições conceptuais – inteligível / sensível, alma / corpo ou mundo, sujeito / objecto, interior / exterior, e por aí fora, em que o primeiro termo é privilegiado como fundamento do outro e o exclui de si. Derrida sistematiza a sua estratégia desconstrutiva num duplo gesto: primeiro, inverter o par de opostos, privilegiando provisoriamente o termo subordinado, em seguida deslocar o conjunto de maneira a encontrar uma fonte comum aos dois termos e verificando a sua indecidibilidade, sobre a qual o pensamento ocidental teria de-cidido por de-finição filosófica. Todos os movimentos em que estes termos opostos têm um lugar interpretativo decisivo, são a repensar, no Ocidente; tudo é a repensar, até em biologia. Mas não se trata apenas de ‘pensar’: como justamente está a suceder, as crises são resultado das desconstruções do que foi construído ao longo dos séculos, da Grécia e Roma, Cristandade e Europa; “as quatro se vão para onde vai toda a idade” (dizia Fernando Pessoa algures na Mensagem), justamente não sabemos para onde vai, se ainda haverá outra ‘idade’.
5. O que foi privilegiado como inteligível foi o logos, discurso ou pensamento como capacidade humana acima da corporalidade animal, capacidade que torna os humanos cúmplices das divindades, logos do homem, senhor (da casa) sobre animais, escravos, crianças e mulheres, e também logos de regulação da cidade por via das leis. Dito a correr, nas sociedades de dominação económica agrícola, o discurso politico-religioso coordenava o social e quando falhava a ordem política era o recurso às armas da casta dominante, nobres guerreiros, que resolvia em última instância os conflitos; o predomínio optimista da razão proposto pelo Iluminismo deveria substituir as armas no papel politico (da aristocracia), a razão devendo ser capaz de dominar a natureza, incluindo a natureza humana a educar pela escola obrigatória, substituta da ordem religiosa. Este optimismo relevava do logos, que se reclamava da ciência e do progresso vindo com a industrialização pela máquina e outras técnicas, mormente de ordem química e minorava o papel do laboratório (técnica e matemática, isto é, escrita) nessa ciência, que se julgava triunfo do pensamento humano. Como tenho escrito neste blogue, a exactidão das ciências físicas e químicas vem do papel  da álgebra e das técnicas de medição em unidades convencionais, mantém-se aquém das disputas teóricas interpretativas do labor do laboratório e por aí escapa em parte ao controlo que cientistas e engenheiros têm sobre o que descobrem e inventam. Uma parte das crises vem daí: a poluição, as alterações climáticas, os acidentes da viação, por exemplos que vão fora da vontade humana, sem contar pois com as armas atómicas, que dão conta de outra parte das crises, a que tem a ver com economia e finanças.
6. Estas ‘ciências’ têm-se revelado impotentes face às crises, pela mesma razão pela qual a invenção da pólvora deu para fabricar espingardas e canhões e a da cisão atómica para as bombas que destruíram Hiroshima e Nagasaki: a ética elementar que manda “não matar” e deveria impedir guerras em tempos cosmopolitas ficou muda diante da vontade de domínio politico sobre outros humanos. Também economia e finanças albergam nos seus mecanismos sociais elementares essa vontade de domínio económico e financeiro: por exemplo, o imperativo de financiamento das economias, resultante de necessidades de ordem técnica, é colocado como relevando dos desejos humanos de enriquecer, julgados ‘inatos’, e da respectiva competição (não se trata de moral mas de epistemologia, não sei como pode ser de outra maneira; face ao crescimento do desemprego devido aos automatismos electrónicos, julgo que serão as próprias crises que obrigarão a rever esta questão em sentido fortemente regulador). Já a grande crise dos anos 1930 se manifestou como incontrolável e gerando nacionalismos que se exacerbaram além do impossível, mas a dos anos 1980 em diante, que explodiu em 2008, teve um motor técnico muito mais forte, o da aceleração electrónica das especulações.
7. As crises relevam de quê? Da técnica ser uma ‘escrita’, uma inscrição que por ela mesma altera o contexto onde é inserida vinda de fora, subverte as condições de equilíbrio social instável que aí predominavam. Máquinas, químicas, engenharias genéticas, medicamentos, são obviamente coisas boas enquanto produzem progresso, o que não só é indiscutível como opondo-se a qualquer opção de voltar atrás das máquinas e da electricidade. O problema é a força dessas escritas técnicas que não são sempre controláveis pela razão humana, ainda que científica e filosófica. Se é certo que a desconstrução é uma operação de pensamento filosófico, que pode fazer alguns diagnósticos, digamos, o que se passa com as crises (como foram as guerras de religião, as revoluções democráticas, as lutas pela escola laica e tantas outras), é elas serem desconstrução das super-estruturas politico-ideológicas que opera por si mesma, a partir de certos limiares de transformação do contexto social, provocando movimentos fortes desestabilizadores, sem que ninguém saiba como (assim os sismos e os vulcões numa ordem que escapa à incidência dos humanos) reestruturar o que está falhando sem recuos possíveis.
8. Diz-se com frequência e uma certa petulância de hiper-modernos, que vivemos e trabalhamos em “sociedades de conhecimento”. Não se sabe, em geral, que isso vem de Platão e Aristóteles, da tal de-finição que de-cide retirar o definido, como essência inteligível, do seu contexto sensível, corporal, sujeito à geração e à corrupção, como diz com frequência Platão com um certo desdém que comunicou ao cristianismo, anulando o amor das coisas singulares que este trazia do judaísmo. Anti-aristotélica, a modernidade é muito mais platónica do que se crê: os nossos argumentos científicos são sobre ‘essências’, pelo que as respectivas técnicas, inventadas integralmente em ‘matéria sensível’, empírica, variada, segundo as medidas ditadas pelos laboratórios científicos, abrem contextos inéditos que, dele mesmo, o nosso ‘conhecimento’ (logos) desconhece. As crises não são senão o testemunho excessivo desse não-conhecimento: já Aristóteles teorizara que lógica e ciência não conhecem o singular, o individual; e os laboratórios europeus também não, que os movimentos que eles experimentam para retirar medidas que validem as equações teóricas são movimentos de singulares quaisquer, condição da chamada universalidade dessa ciência. A desconstrução opera aquém da oposição inteligível / sensível, não opera nos laboratórios, mas nos contextos, por via das técnicas. A sociedade do conhecimento só torna as crise mais graves, não são apenas “a fome, a peste e a guerra” dos Medievais, ou melhor, são fomes, epidemias e guerras muito mais graves.
9. No mesmo número do Público, o professor americano de Ciência Politica, Ian Shapiro, argumenta sobre a grande dificuldade de “exportar democracia”, chamando aliás a atenção para esta ter tido na Europa épocas em que desapareceu e depois voltou, não é pois um dado adquirido entre os que seriam os seus ‘exportadores’, como indicia o triunfo do Brexit e a ameaça de Trump nos dois países em que claramente ela melhor vingou (mas do outro lado do Atlântico com longo apartheid). Aqui não creio que seja a técnica desconstructiva a razão predominante, mas mais o que ela destrói das antigas estruturas antropológicas. Não conheço nada dessas coisas, mas creio que a ausência duma longa tradição de ‘almas’ dando lugar ao sujeito e indivíduo europeu torna a questão mais complicada. O Japão parece mostrar a possibilidade da importação da técnica ser solidária com a da democracia, num estilo que parece respeitar as tradições nipónicas, enquanto que a Índia independente mantém a democracia com a enorme resistência do regime de castas em muitas zonas rurais e a China parece guardar a tradição imperial do mandarinato apesar da resistência de elites para-ocidentais. O Islão. que pareceria o mais próximo da tradição ocidental, tem estruturas antropológicas que resistem fortemente, como infelizmente se tem visto na sua oscilação entre regimes despóticos e islamistas. A África e muitas outras ex-colónias asiáticas e do Pacífico conhecem regimes vindos de estruturas tribais e coloniais muito recentes, não há, creio, experiência suficiente para se saber quantas gerações serão necessárias, se for esse o caminho. Pois que também é muito certo o que Ian Shapiro diz na sua primeira frase: “não acredito que a história se mova numa direcção particular”. E a desconstrução nesta questão? O que eu sei dela releva da história da ‘construção’ ocidental, não sei se as grandes culturas indiana, chinesa e islâmica se prestam a esse tipo de diagnóstico fenomenológico.


[1] http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2014/08/o-exorbitante-questao-de-metodo-de.html, extracto derridiano onde se encontra a frase
“[...] Pode-se chamar ‘contexto’ toda a ‘história-real-do-mundo’, na qual este valor de objectividade, e mais geralmente ainda o de verdade, adquiriram sentido e se impuseram. [...] Uma das definições do que se chama desconstrução seria a tomada em conta deste contexto sem bordo, a atenção mais viva  e mais larga possível ao contexto e portanto um momento incessante de recontextualização. A frase, que para alguns se tornou uma espécie de slogan, em geral tão mal compreendido, da desconstrução (“não há fora-de-texto”), não significa senão que não há fora-de-contexto. Sob esta forma, que diz exactamente a mesma coisa, a fórmula teria sem dúvida chocado menos” (Limited Inc., Galilée, 1990, p. 252.)

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