1. A novidade, a meus olhos de fenomenólogo com ciências, da proposta de Damásio foi a de aclarar
uma questão filosoficamente envenenada, recuperando um termo que fazia parte da
oposição ao ‘corpo’ e portanto ao ‘cérebro’. O Livro da Consciência propõe que a ‘mente’ são os neurónios – que são constitutivos do cérebro, não se lhe
opõem – mas enquanto só o próprio tem acesso a eles, o que sublinha a interioridade que a ‘mente’ (como a ‘alma’ e o ‘sujeito’) sempre
reivindicou; abriu assim uma saída limpa de dualismos aos neurologistas, ao
mesmo tempo que os obriga a uma difícil dualidade com as psicologias, que fazem
a sua festa científica, melhor ou pior, com os discursos a que o neurologista
não tem acesso pelos seus instrumentos de análise (irredutibilidade entre elas,
que eu já antecipara antes de Damásio). Mas abrem-se novas questões.
Quando se tem uma dor no pé ou noutra parte qualquer do corpo, diz-se ‘tenho
uma dor no pé’ porque os axónios dos neurónios da zona, cuja trança forma o que
chamamos nervos, assinalam a dor; mas esses neurónios do ‘meu pé’ pertencem à
mente? Não dizemos ‘sou uma dor’, o ‘tenho’ marca alguma distância entre o pé e
a mente que diz ‘eu’. Continuemos: se houver uma predominância da rede dos
neurónios cerebrais sobre esses nervos de axónios para resolver esta primeira
dificuldade, se a ‘mente’ for predominantemente essa rede de biliões de
neurónios e suas sinapses, estas da ordem de alguns milhares a multiplicar os
biliões, a questão é a de como imaginar essa predominância, pensá-la. Se dissermos
que a mente ou consciência é esse ‘saber de si’ dos neurónios, o que também
vale para a dor do pé, não creio que haja problema de maior: essa rede comporta
muitos neurónios ‘esquecidos’ habitualmente e mecanismos de concentração da
atenção no sector da rede que seja adequado à situação vivida no ‘aqui e
agora’: a este nível, qualquer insecto tem mente e consciência, o que chega
para inquietar a oposição metafísica tradicional.
2. Qual é a
principal dificuldade? Chegar à questão do ‘eu’. Trata-se dum termo linguístico,
que nem todas as línguas têm aliás, que indica aquele que está a dizer a frase
em que ‘eu’ se diz, é uma instância de locução (Benveniste, Problèmes de
linguistique générale). Esta
dificuldade traz uma tentação perigosa: a de excluir os nossos primos primatas
e outros mamíferos e aves, as espécies dotadas de um segundo córtex cerebral
envolvendo o mais antigo, o dos peixes e répteis, o que dá uma maior
complexidade de ‘consciência’ e por via de consequência maior complexidade de
estratégias nas lutas da selva; a tentação é de reintroduzir a ‘oposição’
humanos / animais que Aristóteles ligou à existência de linguagem duplamente
articulada. Sem sabermos como é que chimpanzés, leões e águias resolvem este
problema da sua identidade, podemos pensar que os humanos descobriram na
invenção da linguagem uma forma mais elaborada de solução, sendo certo que foi
falando que as sociedades humanas criaram os seus mitos e as suas sabedorias
além das receitas de culinária e habitação, entre elas a noção da ‘alma’ além
do corpo, na acepção ‘imortal’, platónico-cristã, ou de ‘mente’ e
‘consciência’. Sentimos, vemos, tocamos e somos tocados, ouvimos música e
dançamos como ‘actividades’ (ou passividades?) da mente sempre oscilante, tudo
isso nos move. Mas desde muito pequenos que aprender a falar é aprender a dar
palavras a todo esse sentido, visto, tocado, ouvido, dançado: a linguagem
envolve e desenvolve a mente neuronal. Foi por isso que fiquei tão entusiasmado
com a experiência relatado por Nicolau Ferreira num Público do final de Abril que refiro em “as palavras
enchem o cérebro” (neste blogue).
3. No texto
sobre a introdução ao problema da economia do signo na fenomenologia de
Husserl, intitulado A voz e o
fenómeno (p. 88 ed fr), J.
Derrida trata da “auto-afectação pura” como “operação da voz”, a qual “opera no
médium da universalidade”, de “idealidades que se deve idealiter poder repetir [...] como as mesmas”, e que é pura
no sentido em que não há nenhum desvio pela instância de exterioridade, do
mundo (como há na escrita, por exemplo, mas também no ver o próprio pé, ver-se
ao espelho ou ainda no tocar ou ser tocado), sendo que a dor que se sente
permanece empírica, sem ‘universalidade’. Ora, esta universalidade vem da
linguagem que se aprende como saberes da sociedade em que se nasce; ao
tornar-se operação pura de
auto-afectação, quando se ouve
dentro de si a falar ou a pensar, algo que se consciencializa como vindo de si
em si no espaço-tempo da voz, corrente de sílabas e palavras e frases, isso só
é possível porque o sentido dessas palavras em frases e estas em discurso lhes
é outorgado pela língua aprendida dos seus, pelas “idealidades” que são as
“mesmas” para uns e outros. Nos neurónios em que estes processos se fazem, na
mente que são eles a saberem-se, não é possível distinguir senão por abstracção
o idêntico e o mesmo, o auto-afectado como idêntico a si e o mesmo social. No texto De la grammatologie, a aplicação da redução fenomenológica aos sons empíricos da fala para não reter senão a “idealidade” que
resulta da diferença deles, sons, entre si, é a ‘voz’ que é reduzida, retido
contudo o sentido discursivo do que ela, voz, diz. Ou ainda, no texto de Marges intitulado “La différance”, esta é dita a
indissociabilidade entre a “economia” (o mesmo da língua, igual para todos) e o seu excesso,
“despesa sem reserva, [...] usura irreversível da energia, [...] relação ao
totalmente outro” (p. 20, ed fr). Indissociável inconciliável de duas forças, o
duplo laço que explicitará
mais tarde (Glas e La carte
postale) está já aqui a trabalhar
desde os primeiros textos gramatológicos. Derrida não ‘ultrapassou’ a
fenomenologia, deslocou-a da ‘consciência / objecto’ para o ‘texto’: “não há
fora de texto” é já “o olho e o mundo na fala” (la voix et le phénomène, p. 96), e também a mão.
4. Os
chimpanzés terão pois uma identidade mental empírica com aprendizagem etológica
dos usos da sua pequena sociedade, enquanto que os humanos ganharam na selva
uma ‘universalidade tribal’, universalidade essa que se expandirá
historicamente com as casas, as cidades, a escrita, o cosmopolitismo. O que
implica que da nossa identidade mental faz parte o que se sabe de si e que se
aprendeu a dizer, o que se sente em cada situação, os usos praticados no
paradigma doméstico e de trabalho, os saberes escolares, livrescos e
mediáticos, tudo isto em forma de ‘eu sei que, sinto, amo, creio, penso, duvido,
busco, espero’ e por aí fora. As mentes, que não são senão cérebros que sabem
de si, são todas diferentes entre elas, em cada unidade social, cada tribo, mas
também diferentes com os usos, de sociedade para sociedade, castas, classes,
géneros em tudo o que há de ‘tribal’ no meio disto tudo.
5. Mas
quando se diz ‘eu’ é numa certa situação, diferente duma outra em que se diz
também ‘eu’, ‘eu’ que assim circula segundo as circunstâncias. E igualmente sem
que seja dito, o ‘eu’ acompanha uma coisa bastante estranha que, se bem me
lembro, já Hume tinha estranhado e daí tirado argumento empirista a que a
gramatologia responde: esta corrente de ‘ideias’, como se diz ‘associação de
ideias’, que passa constantemente, passa – é tempo – a correr – é correia, não
se lhe foge senão por mudança de corrente. Como uma corrente eléctrica,
dir-se-ia, de que aprendemos os interruptores, para nos concentrarmos, impedir
que corra, fazer parar neste ponto em que se tem que insistir, ponderar, isto
é, colocar ‘peso’ contra a corrente, ser responsável, decidir, cortar ou pelo contrário juntar,
aliar-se em conversa com adversário ou cúmplice. A corrente conduz-nos e nós
procuramos controlá-la, o ‘eu’ não basta, não se basta, oscila, é oscilado.
Então quando dormimos e a corrente irrompe em sonho sem ‘eu’ a dizer ‘não!’, a
oscilação passa todos os limites, ou por vezes estando acordado ‘perde-se a
cabeça’. Foi Freud quem tirou a moral desta história, o narcisismo, as defesas
do Ego, as pulsões.
6. “Eu penso, logo existo” faz parte das
evidências de quem exista para pensar em qualquer tipo de actividade, mas não é
um ‘universal’, apenas um existencial precioso, digamos assim. A grande
dificuldade desta questão da ‘mente’ de Damásio interpretada fenomenológica e
gramatologicamente é que ela questiona estas nossas evidências mais fortes. É
muito difícil distanciarmo-nos delas, é um trabalho de longo fôlego, pede
muitos anos. É que estas nossas evidências,
como qualquer outra espontaneidade, resultam de aprendizagens, começaram
portanto por não existirem e apagaram a que seria a evidência primordial,
justamente a da aprender a falar: ninguém se lembra, fora casos clínicos, do
que se passou antes dessa aprendizagem.
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