quinta-feira, 23 de junho de 2016

A lei da verdade



1. A noção de verdade abriu falência no seio do pensamento ocidental. Apercebemo-nos de que as nossas principais verdades, as que foram acreditadas como absolutas, precisaram de ser definidas se filosóficas, proclamadas dogmaticamente as teológicas, discutidas pela comunidade científica as das ciências laboratoriais. Esta nova atenção histórica concluiu que essas verdades, que se queriam universais e eternas, tinham uma história, e que portanto, como tudo o que é histórico, eram relativas às situações que as definiram, as dos filósofos gregos, da igreja cristã triunfante em Roma, dos laboratórios do renascimento europeu. Desta descoberta resultou posteriormente a atitude contrária à dos absolutismos, um relativismo generalizado: ‘não há verdades’. Que se acentua face às ‘verdades’ dos fanatismos que nos surpreendem e por vezes nos aterrorizam, que se manifesta no facto de que hoje os filósofos não ousam reclamar a verdade para os seus argumentos[1], de que os cientistas crêem que as verdades científicas são provisórias, “erros adiados”: a física de Newton já não seria verdadeira após as físicas da ‘relatividade’ (Einstein não gostou do termo, foi-lhe imposto) e quântica (apesar de continuar a sê-lo nas escalas das engenharias correntes).
2. E no entanto, como falar ou escrever prescindindo da verdade do que se diz ou escreve, como estou fazendo? Como ouvir ou ler o que se pensa não ser verdade, como se tudo fosse ficção? Mentira, erro e ficção, em que consistem, se não houver critérios sociais de verdade? Há palavras que estão desaparecendo por um erro ‘massivo’ (tem a ver com ‘massas’, multidões) que substitui esta por ‘maciço’ (compacto, sem ocos), ‘havia’ que desaparece por ‘há’ (que deixa de ser uma forma verbal!) e, pior que todos, a inexistência do que deveria ser a palavra médias, como fazem franceses e espanhóis, em vez do colonialismo americano dos brasileiros que herdou o horrível ‘média’ como plural, e chega a ser dito e escrito ‘mídia’! Erro clamoroso!. Mas se for só eu a bramar contra ele, como pretender que é um erro? Com as regras de derivação das palavras portuguesas do latim, claro, e não latim-americano-português![2]. Essas regras são relativas, porque históricas? Sim, mas são verdadeiras. E não me parece que essa relatividade afecte a sua verdade linguística.
3. A língua como estrutura social é um conjunto de regras impostas inexoravelmente a quem a aprende como condição de sermos entendidos pelos outros da nossa tribo. Lei da verdade: corrigem-nos os erros, castigam-nos as mentiras, inquietam-se com as ficções, as ‘fantasias’. O meu querido mestre R. Barthes deixou-se levar ao erro de dizer que “a língua é fascista”, mas são essas regras que nos dão a liberdade de falar de forma não anárquica: elas compõem o social com o individual de forma extraordinária, sem corte possível entre um e o outro. Mas não se trata apenas de regras intra-linguísticas: quando aprendemos os substantivos e os verbos, aprendemo-los uns como nomes de coisas, plantas, animais e os outros de movimentos ou comportamentos: as palavras trazem consigo o mundo a dizer e a fazer. Também aí há regras, há metáforas e outras maneiras de estender os sentidos de palavras correntes a coisas menos correntes, há lugar para a liberdade do artista, para a transgressão de tal ou tal regra, nos limites em que essa transgressão é subentendida. Só nos entendemos a falar e a escrever, justamente porque as regras da língua que permitem dizer e contar e querer modificar o nosso mundo o fazem sob o alcance da lei da verdade, grande lei da circulação da palavra. Foi com ela que definições, dogmas e verdades científicas foram possíveis, assim como a respectiva discussão critica.
4. Tudo o que dizemos e fazemos (ou escrevemos) é ligado em paradigmas, tanto os dos costumes quotidianos e da sua moral, como os das diversas instituições, científicas, politicas, e por aí fora: as verdades são relativas às regras desses paradigmas (com a grande dificuldade de estes se cruzarem frequentemente). O que faz a relatividade da verdade é trazê-la, da universalidade absoluta, para a localidade temporal do que fazemos, dizemos e contamos em nossos discursos e narrativas, onde a mentira, o erro e a ficção só podem funcionar se se derem como verdadeiros: os dois primeiros até serem descobertos, a última com uma paleta mais ou menos variada de transgressões do realismo (ficção científica, literatura fantástica, etc.).
5. A língua multiplica os matizes do acesso à verdade, à certeza. À questão ‘é verdade que a Maria veio?’, posso saber que sim, ou pensar que talvez, ignorar, crer, duvidar, achar, julgar, imaginar, hesitar, e até ter-me esquecido. O verbo saber é o grande cúmplice linguístico da verdade, a sabedoria que ela pode trazer a uma vida.



[1] Excepto, modéstia à parte, “a fenomenologia reformulada, em verdade” (Web).
[2] Além da luta contra o AO, há que prevenir a catástrofe, a nossa língua a tornar-se um crioulo do inglês.

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