1. A noção de verdade abriu falência
no seio do pensamento ocidental. Apercebemo-nos de que as nossas principais
verdades, as que foram acreditadas como absolutas, precisaram de ser definidas se filosóficas,
proclamadas dogmaticamente as teológicas, discutidas pela comunidade científica
as das ciências laboratoriais. Esta nova atenção histórica concluiu que essas
verdades, que se queriam universais e eternas, tinham uma história, e que
portanto, como tudo o que é histórico, eram relativas às situações que as definiram, as dos filósofos
gregos, da igreja cristã triunfante em Roma, dos laboratórios do renascimento
europeu. Desta descoberta resultou posteriormente a atitude contrária à dos
absolutismos, um relativismo
generalizado: ‘não há verdades’. Que se acentua face às ‘verdades’ dos
fanatismos que nos surpreendem e por vezes nos aterrorizam, que se manifesta no
facto de que hoje os filósofos não ousam reclamar a verdade para os seus
argumentos[1],
de que os cientistas crêem que as verdades científicas são provisórias, “erros
adiados”: a física de Newton já não seria verdadeira após as físicas da
‘relatividade’ (Einstein não gostou do termo, foi-lhe imposto) e quântica
(apesar de continuar a sê-lo nas escalas das engenharias correntes).
2. E no entanto, como falar ou
escrever prescindindo da verdade do que se diz ou escreve, como estou fazendo?
Como ouvir ou ler o que se pensa não ser verdade, como se tudo fosse ficção?
Mentira, erro e ficção, em que consistem, se não houver critérios sociais de
verdade? Há palavras que estão desaparecendo por um erro ‘massivo’ (tem a ver
com ‘massas’, multidões) que substitui esta por ‘maciço’ (compacto, sem ocos),
‘havia’ que desaparece por ‘há’ (que deixa de ser uma forma verbal!) e, pior
que todos, a inexistência do que deveria ser a palavra médias, como fazem franceses e espanhóis, em vez do
colonialismo americano dos brasileiros que herdou o horrível ‘média’ como plural,
e chega a ser dito e escrito ‘mídia’! Erro clamoroso!. Mas se for só eu a
bramar contra ele, como pretender que é um erro? Com as regras de derivação das
palavras portuguesas do latim, claro, e não latim-americano-português![2].
Essas regras são relativas, porque históricas? Sim, mas são verdadeiras. E não
me parece que essa relatividade afecte a sua verdade linguística.
3. A língua como estrutura social é
um conjunto de regras impostas inexoravelmente a quem a aprende como condição
de sermos entendidos pelos outros da nossa tribo. Lei da verdade: corrigem-nos
os erros, castigam-nos as mentiras, inquietam-se com as ficções, as
‘fantasias’. O meu querido mestre R. Barthes deixou-se levar ao erro de dizer
que “a língua é fascista”, mas são essas regras que nos dão a liberdade de
falar de forma não anárquica:
elas compõem o social com o individual de forma extraordinária, sem corte
possível entre um e o outro. Mas não se trata apenas de regras
intra-linguísticas: quando aprendemos os substantivos e os verbos,
aprendemo-los uns como nomes
de coisas, plantas, animais e os outros de movimentos ou comportamentos: as
palavras trazem consigo o mundo a dizer e a fazer. Também aí há regras, há
metáforas e outras maneiras de estender os sentidos de palavras correntes a
coisas menos correntes, há lugar para a liberdade do artista, para a
transgressão de tal ou tal regra, nos limites em que essa transgressão é
subentendida. Só nos entendemos a falar e a escrever, justamente porque as
regras da língua que permitem dizer e contar e querer modificar o nosso mundo o
fazem sob o alcance da lei
da verdade, grande lei da
circulação da palavra. Foi com ela que definições, dogmas e verdades
científicas foram possíveis, assim como a respectiva discussão critica.
4. Tudo o que dizemos e fazemos (ou
escrevemos) é ligado em paradigmas, tanto os dos costumes quotidianos e da sua
moral, como os das diversas instituições, científicas, politicas, e por aí
fora: as verdades são relativas às regras desses paradigmas (com a grande
dificuldade de estes se cruzarem frequentemente). O que faz a relatividade da
verdade é trazê-la, da universalidade absoluta, para a localidade temporal do
que fazemos, dizemos e contamos em nossos discursos e narrativas, onde a
mentira, o erro e a ficção só podem funcionar se se derem como verdadeiros: os
dois primeiros até serem descobertos, a última com uma paleta mais ou menos
variada de transgressões do realismo (ficção científica, literatura fantástica,
etc.).
5. A língua multiplica os matizes do acesso à
verdade, à certeza. À questão ‘é verdade que a Maria veio?’, posso saber que sim, ou pensar que talvez, ignorar, crer,
duvidar, achar, julgar, imaginar, hesitar, e até ter-me esquecido. O verbo
saber é o grande cúmplice linguístico da verdade, a sabedoria que ela pode trazer a uma vida.
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