1. Porque é que um filósofo se mete a
falar daquilo que aprendeu com os neurologistas? Por se ter apercebido de que,
tal como em outras ciências, eles são vítimas duma tradição filosófica de 24
séculos que não lhes deixa ver senão o ‘biológico’ do órgão que o ‘opõe’ ao
mundo, sendo todavia o neuronal irredutível à oposição interior (alma, sujeito, consciência) / exterior (corpo, mundo). Ou seja, um excelente argumento
numa das principais questões filosóficas actuais: como é que os estudos de neurologia
nos podem ajudar a compreender o que é a liberdade, fora dessa dicotomia platónico-cristã.
2. Dentre os cerca de 200 tipos de
células especializadas dos vertebrados, ossos, músculos, adiposos, etc, qual é
a especificidade das do cérebro e dos nervos? Não se juntando umas às outras em
‘colónias’ para formar tal tecido de tal órgão, os neurónios criam relações
entre eles (sin-apses:
agarrar-se com), cada um sendo afectado por milhares de outros numa imensa rede recíproca extremamente complexa
(1014 sinapses num
cérebro humano). A sua especialidade é pois serem afectados e afectarem-se,
auto e hetero-afectação, esta com alguns circuitos importantes, já que são
afectados pelo mundo (nervos dos olhos, ouvidos, pele) e vão intervir nele
pelos que mobilizam os músculos da mobilidade, pés, mãos e voz nomeadamente.
São os circuitos da aprendizagem.
3. Eric Kandel, Nobel de 2000, À
la recherche de la mémoire. Une
nouvelle théorie de l'esprit,
descobriu como aprende uma lesma do mar: um choque recebido cria uma sinapse
(que se relaciona com um gene do neurónio) que reagirá em defesa ao próximo
choque. Assim se aprende com a repetição de experiências que geram grafos (Changeux, O homem neuronal), circuitos de sinapses que se inscrevem nos cérebros
desde o feto. O que chamamos memória é este território de sinapses grafadas,
aprendidas. O que há de prodigioso na aprendizagem dum uso social, da nossa
tribo, é a passagem do não-saber fazer à habilidade espontânea de artista. Por exemplo, ao falarmos: todos nós usamos
espontaneamente algumas centenas de regras linguísticas, as morfologias dos
verbos, preposições e conjunções, etc., aprendidas em criança sem nunca termos tido consciência delas ao usá-las até hoje.
Inacreditável! Isto é igualmente verdade para o que pensamos e não dizemos a
ninguém: donde que o nosso jeito ou estilo mais pessoal e íntimo, que nos
distingue de todos os outros, veio também da aprendizagem. O cérebro é um órgão
social.
4. O que é a ‘mente’? Damásio
explicou no Livro da consciência (p. 97) que é o que há nos neurónios (visual, auditivo ou outro),
acessível só ao próprio, inobservável por terceiros. Isto é, a mente é o
saber que o sujeito tem de si nos neurónios, con-saber (scire), consciência: não é nada de ‘mental’ oposto a
‘corporal’. Pelo contrário: o que a aprendizagem nos ensina é como os usos da
tribo, diferentes dos dos estrangeiros, são os mesmos, iguais para todos, e ao mesmo tempo e indissociavelmente temos um estilo
singular. Esta indissociabilidade
implica um enigma estrutural.
Somos ‘seres no mundo’: a neurologia dá assim um relevo maior à grande
revolução filosófica de Heidegger, que vai além do que ele próprio pensou: o
que vem do exterior estrutura-nos no interior. O seu motivo de possibilidade corresponde justamente a esta ‘liberdade’ de sermos capazes dos usos sociais segundo o que o nosso percurso
foi fazendo como nosso estilo singular. A noção de aprendizagem exclui o determinismo
genético que já muitos biólogos recusam mas que se tornou ‘dogma’ em leigos!
Basta pensar na diferença de línguas entre povos!
5. Isto ajuda a compreender que a
complexidade cerebral resista aos esforços dos neurologistas: esta dupla
dimensão, biológica e social é tudo ‘mental’, inacessível aos instrumentos
laboratoriais. Mas também nos é em grande parte inacessível: alguém consegue
explicitar tudo aquilo que sabe em suas memórias? Do que propôs Damásio, conclui-se
que é impossível que todos os nossos neurónios nos estejam simultaneamente
acessíveis, mas que tenha que haver, como os neurologistas sabem, mecanismos de
atenção, de prioridade neuronal à situação em que se está e ao que ela implica,
calando todos os outros neurónios não necessários e chamando apenas os que
convêm à compreensão dessa situação, o que os franceses chamam ‘souvenir’, o
que nos subvém sem que saibamos como. Quando fazemos relaxação, por exemplo,
podemos ao fim de alguns minutos sentir o sangue a correr nas principais veias,
da cabeça aos pés e às mãos: normalmente, esses neurónios estão calados. Outro
exemplo importante, a perca da memória da primeira infância foi interpretada
por Freud como um ‘recalcamento’: dir-se-ia que a memória dos choques que então
se tiveram (parto, desmame, perca do colo da mãe) foi apagada pelos choques da
aprendizagem, antagónicos àqueles, voltando ao discurso do divã sob a forma de
romance do Édipo.
6. É onde creio que reside o enigma
da liberdade.
Público, 28/03/2016
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