quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Uma pergunta filosófica sobre o cancro



1. Na instrutiva entrevista a Maria de Sousa e Manuel Sobrinho Simões por Anabela Mota Ribeiro sobre o cancro (rev. 2 do Público de 26 julho), a primeira fez vários apelos à diversificação das perguntas das investigações científicas. Dirigia-se aos cientistas, é certo, jovens nomeadamente, mas acontece que as perguntas científicas relevam do paradigma e este tem uma dimensão filosófica escondida aos olhos dos cientistas, dimensão essa que contém um erro que interfere nas perguntas experimentais que eles fazem. Trabalhando em Filosofia com Ciências, com a dimensão filosófica delas antes de se diferenciarem em ciências com a invenção dos laboratórios, proponho aqui a minha pergunta.
2. Ao ler textos de biologia molecular e de neurologia, fiquei admirado de verificar que dão sempre um salto por cima da anatomia; o título do livro de M. Sobrinho Simões citado na entrevista (Gene, célula, ciência, homem) ilustra-o bem: dos ‘genes’ e das ‘células’, a ‘ciência’ passa logo para o ‘homem’ (e a mulher, claro), ou seja, para o organismo, como se a anatomia não estivesse entre esses dois níveis, o básico e o geral. Trata-se a descoberta extraordinária da genética como se ela determinasse tudo o mais e não houvesse caminhos entre ambos os níveis. A entrevista fala de órgãos diferentes, mas enquanto susceptíveis de serem afectados por cancros, não em relação à sua especificidade anatómica. Creio que, além do cartesianismo da compreensão do complexo a partir do simples (contra o qual se levantou E. Morin com o motivo de ‘complexidade’), reflecte-se aí uma atitude filosófica europeia (que vem de Platão e Aristóteles) em que o ‘interior’ é determinante sobre o ‘exterior’, donde resulta a dificuldade de compreender as incidências do ambiente ecológico sobre o organismo.
3. Eis o que me parece ser a lógica da evolução, tal como a deduzi dessas leituras. Os genes dos unicelulares eucariotes primitivos têm como papel regular o metabolismo para restabelecer as suas diversas moléculas complexas admitindo moléculas exteriores; os ribossomas que jogam na síntese dessas proteínas degradam-se quimicamente, o ADN permanece o mesmo no núcleo para quando voltar a ser necessário. A partir das colónias de unicelulares, iniciou-se um processo de ‘aquisição colectiva’ de moléculas para todas as células, as quais se especializarão em tecidos e órgãos com o objectivo único de facilitarem a alimentação molecular de todas as células em condições ecológicas mais exigentes (além de se defenderem de serem comidos). É que para os animais só noutros vivos – plantas (que receberam carbono do CO2 pela fotossíntese) para os herbívoros e plantas e animais para os carnívoros – é que se encontram as moléculas orgânicas de que precisam: lei da selva. Esta determina os dois sistemas na anatomia de todas as espécies animais, com ou sem vértebras: um de nutrição e outro de mobilidade, encabeçados pela boca e ambos regulados pelo cérebro, eles visam essencialmente a reformulação incessante das células (predação) e evitar ser presa de outrem. A lógica da anatomia de cada espécie pode dizer-se como uma espécie de contrato que todos os órgãos fazem entre si para alimentarem democraticamente todas as células. Com efeito, a circulação do sangue, após o processo digestivo que moleculiza os pedaços comidos, vai a todas as células levar moléculas. É esse contrato que os cancros rompem.
4. Se os genes têm como papel regular o metabolismo e restabelecer as suas diversas moléculas complexas a partir da chegada de novas moléculas pelo sangue, poder-se-á deduzir que seja a relação deles com o que chega do sangue que há que analisar em termos de saber como se canceriza. Talvez que entre as várias regulações da homeastasia pelo velho córtex endócrino se encontre a do tamanho dos vários órgãos e tecidos e que esta se exerça na relação sangue / células alimentadas, com papel quiçá das esteroides (http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/2008/02/evoluo-e-sexualidade.html) e que o neo córtex, adequado às estratégias no ecológico e no social, intervenha (um cérebro duplo, não dois à parte, Changeux). No caso humano, o que se chama psico-somático é provavelmente aí que tem lugar, maneira possível de qualquer ‘stress’ poder influir na distribuição sanguínea das moléculas. Quando a evolução chegou aos humanos e estes progrediram em usos e saberes até hoje, já o essencial das anatomias estava fixado em prol da predação e das artes de ataque e defesa em vista do objectivo da economia estrutural: alimentar todas as células.
5. Não sei se já isto é aceitável. Sou mais atrevido todavia na maneira de responder a uma questão do livro admirável de M. Barbieri, Teoria semântica da evolução (questão que ele não põe), em que o papel dos ribossomas ARN na constituição dos unicelulares foi prévio ao dos desoxi-ribonucleicos ADN: como é que estes são retidos no núcleo para se manterem os mesmos sem degradação? A crer na nomenclatura, perde um ‘oxi’, sei lá como: dos ARN se fez o ADN. Mas haverá, hoje vai-se sabendo, processos de retrotranscrição que se acrescentam aos genes: então não poderá ser que as mutações genéticas, em vez de serem puramente casuais (o que aflige muito a lógica), sejam resultado de processos desses que sejam, por assim dizer, a inversão do normal ADN -> ARN, este será por vezes transgredido, repetindo os começos? Se for assim, o processo da evolução não será puro acaso de mutações genéticas que batem certo sabe-se lá porquê, mas jogo celular em órgãos anatómicos que também recebem impactos da cena ecológica, de dentro para fora e de fora para dentro. O mecanismo essencial da retenção dos genes na reprodução celular poderá ter tido infracções positivas que repetiam as origens unicelulares e deram as evoluções. Ora bem, não poderão essas infracções continuarem a ocorrer frequentemente mas de forma negativa, por exemplo por vias psico-somáticas de inadaptação ao social, caso por caso? Serão isso muitos dos cancros?
6. Peço desculpa de me meter nisto, mas evitei o meu jargão fenomenológico (ser no mundo, doubles binds, etc). Claro que não tenho a menor ideia de como poderá haver nesta especulação algo que interesse as hipóteses laboratoriais, limito-me a deduzir de coisas que leio na divulgação corrente. Mas estou convencido de que todas as ciências são marcadas negativamente nos seus paradigmas teóricos pelo predomínio do interior sobre o exterior de que falo no § 2, a que Heidegger chamou ontoteologia e Derrida logocentrismo; só a matemática e as técnicas de medida laboratoriais lhe escapam, mas não a teoria que interpreta os resultados depois de ter imaginado a experiência, nem sequer a maior parte da filosofia que se faz ainda hoje. Será esse erro filosófico que impede de entender coisas como a influência do psicosomático nos cancros. No caso dos neurologistas (Eccles, Changeux, Edelman, Damásio, Kandel), ninguém dá importância à aprendizagem, da linguagem por exemplo maior, que estrutura o cérebro com o que lhe vem de fora, um órgão simultaneamente biológico e social. É certo que só os cientistas é que sabem o que se faz nos laboratórios, mas as suas teorias não são imunes à filosofia que inventou a definição e a argumentação teórica. Esta pergunta diferente atesta a dificuldade do diálogo, mas eu achei que tinha alguma responsabilidade cívica em fazê-la.
Para mais ampla curiosidade eventual

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