sexta-feira, 18 de abril de 2014

O Capital como ‘cabeça’ do Corpo social comum




“Quando a cabeça não tem juízo,
o corpo é que paga”
(A. Variações)

Capital vem do latim caput (cabeça)
1. O capital financeiro deu-se um ‘mercado’ de capitais donde vem provocando crises graves às economias nacionais, onde os Estados, asfixiados por dívidas demais que ele, capital, frequentemente publicitou (sem andar por distinções entre as dívidas dos Estados, da banca ou das empresas privadas): é o problema politico mais grave actualmente, na medida justamente em que as instancias politicas são também vítimas e as internacionais parecem impotentes. Queria aqui reflectir sobre esta questão ao nível fenomenológico, tanto quanto for capaz.
2. Será necessário circunscrever a sua dimensão de ‘propriedade privada’ quando o capital se encontra, especulativo, fora da sua aplicação empresarial e das relações de contrato com os cidadãos colaboradores na empresa, buscando predatoriamente aonde ir caçar lucros que o aumentem, sua única meta, dela mesma anti-social. Ora, o capital é exclusivamente social, não vale nada for dos valores das línguas de preços dos verdadeiros mercados, aonde se trocam produtos de produção empresarial. Na dupla relação entre empresas de produção e venda de mercadorias e famílias de reprodução de sujeitos e compra de mercadorias, há que incluir a escola e o mercado: aquela transforma os filhos das famílias para poderem vir a trabalhar nas empresas (e outras unidades sociais) e este, com os salários pagos, asseguram a vazão do produzido no que as famílias (e outras unidades sociais) necessitam. Escola e médias, por um lado, administração do Estado por outro, são com este mercado de coisas as três instâncias de regulação do comum da sociedade.
3. O capital (com a banca) é necessário para fomentar as empresas de produção, que não podem começar antes de chegarem ao tempo das vendas dos seus produtos sem recursos financeiros, próprios ou emprestados pela banca. Esse capital inicial busca ter lucros para poder prosseguir a sua produção e pagar o que lhe foi emprestado, lucros esses que só são apurados depois do pagamento da matéria prima importada, dos salários aos cidadãos que colaboram na produção, incluindo o ‘patrão’, da amortização dos empréstimos e do pagamento dos impostos; o destino desses lucros, o que sobra de todos os custos e retornos, é o de aumentar o capital, podendo obviamente ser investido noutras produções, buscando o seu aumento, novos lucros.
4. Esse investimento noutras produções pode fazer-se comprando ‘acções’ de empresas, ou outros ‘títulos’. O termo ‘acções’ parece dizer a relação desse investimento com a produção, agi-la, dizer pois a relação intrínseca da finança à economia, que o papel daquela é estruturalmente o de fazer ‘agir’ a economia, que sem capital à cabeça não se pode fazer (mesmo em economias colectivistas, tem que haver capital inicial). E o outro termo, ‘título’, que tem um campo mais alargado, que significa ele em finanças? Etimologicamente significa ‘cabecinha’, reenvia pois para ‘capital’ como ‘cabeça’ mas secundariamente, com diminutivo. Num livro, ‘título’ é uma expressão muito curta (donde porventura o diminutivo) o corpo do texto muito mais lato, que pode assim ser dito ou chamado por essa ‘cabecinha’ (nos livros antigos maiores do que hoje em geral). Parece óbvio concluir que ‘capital’, como ‘título’, joga na correlação da ‘cabeça’ com o ‘corpo’, dizendo para começar que não há um sem o outro, isto é insistindo no carácter intrínseco da relação da finança à economia, mas acrescentando que é à cabeça que compete mandar no corpo.
5. Sim, mas não só nem directamente, que o ‘corpo’ enquanto unidade de produção de coisas para vender os seus produtos são muito variáveis e têm pois lógicas técnicas de produção específicas a que a lógica do capital, a mesma em qualquer mercado, é alheia: digamos que é a lógica do engenheiro que liga o ‘corpo interno’ enquanto unidade de produção. A lógica do capital tem a ver com o mercado de venda e compra, com os preços enquanto língua do mercado, é a lógica do economista que liga a unidade de produção ao mercado em que ela se insere. Há pois uma dupla ligação, a do ‘corpo’ (forças produtivas, na teoria marxista) como ‘motor’ do mercado social e a da ‘cabeça’ (relações de produção marxistas) que distribui as mercadorias à maneira dum ‘aparelho’ que visa as melhores vendas, secundado pelo discurso publicitário que se dirige aos compradores possíveis, num campo de concorrência estruturalmente aleatório. Entre engenheiro que busca a melhor qualidade do produto e economista que busca o seu menor preço, há um conflito permanente, um procurando limitar ao máximo os custos dos materiais e tempo de produção de que o outro necessite. Igualmente conflito na repartição das mais valias conseguidas entre lucros do capital e salários dos cidadãos que trabalham na produção, sem que haja nenhum critério científico ou técnico que decida: a decisão é sempre politica, revela-se no contrato de trabalho e nas lutas ou concertações que visam o acerto de uns e outros, o capital comandando em épocas de desemprego grande como hoje, os cidadãos podendo impor lutas mais ou menos severas fora dos tempos de crise e em épocas de inflação.
6. O que é o dinheiro de que o capital é feito? É uma convenção do poder politico que constitui moedas cunhadas/assinadas (escudo, dólar, euro...) de unidades aritméticas (que se podem somar, diminuir, multiplicar e dividir) para regular as trocas de produtos, quer a sua venda consoante os tempos de produção e salários e os custos materiais e energéticos (e outros, administrativos, laboratórios, etc.), quer por via dos salários, o poder de compra dos cidadãos. Há que insistir sempre que se trata de ‘cidadãos’, que tanto o quadro dos contratos de trabalho como das condições de venda são regulamentados pela autoridade politica, que são votados os seus dirigentes em função, em grande parte, da maneira como esta regulação corresponde a um Estado de direito. Qual é a diferença entre o dinheiro e outras inscrições, como as palavras, as notas de música e os números usados em outras esferas, como medidas técnicas, cientificas e outras? Todas formam sistemas diferenciais que permitem que cada unidade sua jogue consoante o seu lugar em relação às outras. Mas enquanto que palavras, notas e números são de uso geral e gratuito para poderem formar obras (textos, sinfonias, canções) que poderão resultar em vendas e compras, as moedas e notas (e cheques, depósitos bancários) são imediatamente um poder de compra de quem sejam propriedade, anónimas as moedas e notas (e por isso susceptíveis de serem roubadas, por exemplo), como condição de poderem circular de mão e mão no mercado em que se compra e se vende.
7. A propriedade privada do dinheiro é pois parte da sua definição. E o que significa que ela seja ‘privada’? Significa que o dinheiro só vale como parte do conjunto da produção social, da economia concreta em seus altos e baixos, crises e prosperidades, que é desse conjunto e da sua língua de preços (que todos aprendemos a conhecer) que ela é ‘privada’ para ser ‘apropriada’ pelo seu ‘proprietário’ de ocasião. É-lhe intrínseca, ao dinheiro, esta relação ao que se pode chamar o ‘bem comum’ da sociedade: só vale por ser ‘privação’ dele. Isto é, da mesma maneira que se disse acima que o capital enquanto ‘cabeça’ é intrinsecamente parte do ‘corpo’ económico, também o dinheiro, qualquer moeda, nota ou cheque com cobertura, é inseparável do ‘bem comum’ do corpo social, é o que significa o nome da moeda que se acrescenta ao numeral, ‘mil escudos’ ou ‘quinhentos euros’ (se hoje, uma nota de ‘mil escudos’ não vale para comprar é porque a rede monetária dos escudos já não existe: essa não existência do todo desfaz a menção ‘mil escudos’ que continua lá escrita, apenas com valor de memória).
8. A apropriação do capital como dinheiro apaga esta relação à esfera económica que o constituiu, de que é privação: o termo propriedade privada tornou o adjectivo uma espécie de reforço do substantivo, como se o que de si é meio de troca, as notas sempre de mão em mão, se tornasse pela propriedade parte íntima do proprietário, como seu ‘poder’ de compra, potencial que ele conjuga: ‘eu posso comprar X’. X pode ser ‘pão para os meus filhos’, um carro utilitário, um carro de luxo, uma casa de fim de semana fora da cidade, e por aí fora: a partir dum limiar variável, da utilidade passa-se à exibição, do carro ou do iate ou das viagens que se faz, como antes os palácios, as roupas e as carruagens, o aparato que se dá a ver e a invejar em diversos níveis de concorrência social. Uma boa parte do jogo das bolsas releva desta cena mundana, a certos níveis internacionalizada e inclusive com ‘rankings’ das maiores fortunas (quando a burguesia se pauta(va) pelo secretismo das suas contas, que permite deixar jogar as aparências, as revistas de modas).
9. A outra parte do jogo das bolsas é a dos guerreiros que procuram o poder que hoje predomina, o financeiro, onde a concorrência é feroz e não dissimulada. O que então se dissimula é a relação dos capitais que se arriscam com o ‘bem comum’ que os tornou possíveis: num duelo, não tem a menor importância que as pistolas venham da mesma fábrica, os capitais são armas entre adversários, as crises económicas que provocarem serão danos colaterais (como bombas sobre civis) da ‘grande guerra’ em que vivemos mais manifestamente de há uns 30 anos para cá, desde que as tecnologias electrónicas se tornaram armas novas do capital contra os cidadãos que com ele colabora(va)m. E como as bolsas também se tornaram electrónicas e aceleraram as trocas entre ‘títulos’, cada vez menos sobra tempo para auscultar a relação dessas ‘cabecinhas tontas’ com os seus ‘corpos’ económicos. O dinheiro é porventura o laço social que mais força tem, de que todos dependem directa e quotidianamente, o que o torna – “equivalente geral” das mercadorias, dizia Marx – o feitiço dos desejos de cada um, que ainda por cima é aritmeticamente verificável, atrai uns para as bolsas, outros para as lotarias, muitos para todo o tipo de ladroagem, quer a literal, a das ruas, quer a elegantemente chamada corrupção.
10. Contra a idéia fácil de que vivemos numa civilização ‘materialista’, esta separação entre finanças e economias, entre capital e vidas diárias, entre ‘cabeça’ e ‘corpo’, é claramente um idealismo, as idéias que querem comandar às necessidades vitais. Não se trata, como se pretende por vezes, de uma oposição entre Deus e o Dinheiro, mas do Dinheiro ocupar o lugar de Deus, ‘equivalente geral’ ou feitiço a que todos sacrificam, uns por necessidade, outros por devoção. Quando a cabeça não tem juízo – se separa do corpo – este é que paga.
11. Donde vem esta separação? Chama-se ‘capital’ à cidade com ofícios especializados, cabeça dos campos em redor que a alimentavam, centro do poder político. Esta primeira separação foi reforçada pela industrialização que veio a destronar as grandes propriedades rurais como principal fonte de riqueza aristocrática: burguesia é a população dos burgos, das cidades, é ela que capitaliza quer a capital e o seu Estado moderno, quer os capitais da indústria. 1) O primeiro tempo (máquina a vapor, carvão e ferro, primeira química e primeiras máquinas), que dura até aos inícios do século XX, é o do patronato, o ‘patrão’ como ‘pai’ da fábrica e conhecedor dos fabricos como condição do laço técnico que garante a qualidade dos produtos, em tempos em que não há ainda engenheiros especializados cientificamente. Embora a relação com os trabalhadores fosse tudo menos relação com cidadãos, e houvesse pois imperativos drásticos sobre eles que tornaram essa primeira época dramática, a paisagem exibindo claramente a oposição entre a burguesia em seus bairros da cidade e o proletariado nas suas redondezas miseráveis sem higiene, há uma preponderância do laço técnico como que predominante: abriam-se fábricas de produtos que se sabia fazer e se buscava aperfeiçoar, empiricamente em geral e sem grandes dimensões. Havia pois cuidado do patrão-cabeça com o corpo da produção, onde ele passava o dia todo, como regra mais zeloso dos produtos do que dos produtores. 2) O segundo tempo (aço e betão armado, electricidade, iluminação e elevadores, grandes cidades e classe media de escriturários), o dos engenheiros que vão se especializando e dos gestores que rodeiam a administração capitalista, com muito maior dimensão e variedade de produção, uma hierarquia de competências do alto para a zona de produção, é já de aquisição de autonomia do capital em relação à produção, de acento nos lucros a maximizar, acento pois da separação mas com a lentidão das comunicações que tem que atravessar os vários níveis hierárquicos, para cima como para baixo, as responsabilidades intermédias relativamente cerceadas. 3) O terceiro tempo é o da dominação da electrónica que permitirá desmontar hierarquias e acentuar autonomias de gestão mais facilmente controladas com a comunicação quase instantânea, desmembrando produções através de pequenas empresas clientes com tarefas precisas, muitas vezes antigos operários especializados da empresa mãe. É quando o controle dos custos técnicos, dos engenheiros pelos economistas se acentua fortemente, as respectivas especializações reforçadas aumentando as ignorâncias das dos outros. Foi quando a teoria monetarista e neo-liberal se desenvolveu e cativou Thatcher e Reagan, incitando ao grande voo dos capitais-cabeças à procura de títulos, de capitaizinhos, quando os números do capital se impuseram às economias, as fizeram vergar.
12. É a grande separação idealista, a das cabeças sem corpo – o que se chama especulação – e dos correlativos desempregados, pedaços de corpo que este perde pelo slogan guerreiro da competitividade, em que os salários dos cidadãos viram custos anónimos a amortecer ao máximo, slogan esse que será virado também para tudo o que é administração pública e dá a esta um ar de que, em vez da respectiva ‘coisa pública’, se deve afirmar a mesma razão do que a dos que buscam lucros acima de tudo. A ideologia é a de que baixar os custos aumenta o rendimento, a racionalidade das coisas, mas quem vela pelos cuidados da qualidade é que se apercebe, como os economistas não, da degradação das vidas, da habitação que deveria ser o escopo da ciência que tem por nome a regra (nomos) da habitação (oikos, casa). Como rebatê-la, à separação, controlar os seus excessos guerreiros? Não será guerrear contra quem tem o poder da cabeça, mas haveria que revolucionar a economia como ciência, voltando-a justamente para a habitação dos cidadãos, colocando os seus ‘interesses’ económicos e financeiros, o seu equilíbrio democrático, como meta científica, pegar pelo corpo de maneira a esvaziar parte do poder do capital através das potencialidades económicas da habitação.
13. Não pode o fenomenólogo pretender essa tarefa sem estultícia e ridículo. Delineemos brevemente o motivo fenomenológico dos duplos laços sociais, a partir do que acima assinalámos para a empresa de produção (§ 5). Quem trabalha insere-se de duas maneiras no mercado, como produtor que recebe um salário e como familiar que compra os produtos de que há necessidade em casa. Se as empresas, com todas as outras unidades sociais que dão emprego, estão ligadas entre si pelo mercado, pelas suas vendas e pelas compras de produtos estranhos à sua produção, também esse laço enlaça de outra forma a rede das famílias que compram. Duplo motor das sociedades modernas, o da produção, de coisas e serviços por um lado, o da reprodução de sujeitos por outro. O mercado, obviamente que hoje fortemente internacionalizado, é assim um dos aparelhos de regulação desse grande duplo laço social. O Estado forma um outro aparelho de regulação da ordem do conjunto ‘nacional’, assim como a escola e os médias na língua da sociedade são o terceiro aparelho que enlaça igualmente o conjunto motor, através das suas diferenças que são aqui também claramente acentuadas segundo os percursos escolares, tal como as diferenças de posição e de salários na produção. Os duplos laços antropológicos são muito complexos nas sociedades modernas, mais óbvios nas primitivas e nas de agricultura predominante: estes três laços de regulação dos caminhares (aparelhos) são transversais ao duplo motor (que dá o movimento), as instituições de trabalho e as famílias, duas redes reproduzindo (toda a produção é reprodução) como se fossem um ‘corpo’, o motor da sociedade enquanto viva no quotidiano e de geração em geração. Do lado da rede das famílias, os laços privados de cada uma enxertam-se na aprendizagem dos seus usos de cada familiar, alarga-se de forma mais atenuada ao círculo de amigos ou de hobbies, à aldeia (cujo laço em que todos se conhecem se pode tornar intolerável e levar a uma emigração libertadora) ou ao bairro (as cidades mais anónimas), além de círculos administrativos que se alargam geograficamente, da junta de freguesia, da câmara, da região, do pais, da União Europeia
14. A escola e os médias, como instituições, são tornadas vivas por muita gente, professores, escritores, artistas, jornalistas, sem ‘monarcas’, apenas alguns mais conhecidos, cada um fala e escreve segundo sabe e pode. O Estado, com regimes diversos – rei de fachada ainda nalguns lados, presidentes da república de poder regulado noutros –  tem em todo o caso uma população variada de agentes ‘políticos’, juristas, deputados, ministros, etc., que contrabalançam o poder, que não o deixam nunca ser de um só (mesmo os ditadores precisam das sua ‘cortes’ de apoios firmes), mas o laço político da ordem social joga-se sobretudo pelas consciências cívicas dos cidadãos, mais do que pelo temor da repressão. A preponderância ganha nesta terceira fase da industrialização, electrónica, pelas instâncias especulativas de capitais em guerra sobre o Estado, enquanto regulador democrático que deve zelar pela habitação de todos e sobretudo dos mais fracos, e sobre a escola, isto é, sobre a ciência económica enquanto devendo orientar a regulação dos mercados como ‘governo da habitação’, essa preponderância é a ‘causa’ preponderante da crise crescente: os três laços transversais deverão equilibrarem-se, controlarem-se uns aos outros, à maneira, se comparar se pode, dos três poderes democráticos de Montesquieu, acrescentando-se a força crítica dos movimentos sociais.
15. Voltemos à crise. Sabemos que, no que diz respeito às dívidas e ao seu pagamento, só se encontrarão soluções, mais tarde ou mais cedo de preferência, a nível de soluções de instituições europeias que joguem efectivamente os tratados de solidariedade: em tempos, Rui Tavares chamava a atenção para que, entre os objectivos da União Europeia, está “o pleno emprego”, isso lembra-nos que o emprego é parte essencial da democracia, juntamente com o Estado social. Mas no que estará mais ao nosso alcance, haverá que pegar pela questão mais óbvia dos efeitos da crise, os números impossíveis do desemprego que derrotam toda e qualquer pretensão à democracia, já que não se é claramente capaz de atribuir um subsídio razoável de desemprego a todos os cidadãos que estão privados de salário. Então, se olharmos para os salários que há numa dada zona – no laço duma junta de freguesia ou duma câmara municipal talvez – e os multiplicarmos pelas horas de trabalho anuais, por exemplo, que eles representam, poder-se-á dividir esse resultado pela soma dos que trabalham e dos que querem trabalhar sem poderem, com níveis diversos de qualificação certamente (o que não facilitará as coisas), e estabelecer os horários de trabalho que permitam que todos tenham emprego e salário: haverá diminuição deste para os que estão empregados, como se tem feito para o pessoal da função pública e para os pensionistas, mas com diminuição do tempo de trabalho como compensação, isto é, maiores fins de semana e férias, que implicarão a invenção de maneiras de viver sem grandes despesas (o que nem toda a gente  consegue, mostra a realidade dos recém reformados). Como preconizava André Gorz há mais de trinta anos, haverá que criar solidariedades nesse sentido, por exemplo, tipo bancos de horas. Inviável no imediato, dir-se-á, mas é certo que tem havido empresas que, com problemas de diminuição de encomendas a curto prazo, têm preferido diminuir o tempo e o salário de todos em vez de despedir, na esperança de recuperação posterior. Ou seja, é a própria crise que pode despoletar soluções destas, não à maneira de legislação geral atribuindo menos horas de trabalho para toda a gente, mas de forma empírica e por zonas geográficas que comportem alguma viabilidade: as juntas de freguesia são um laço social ténue, que joga por exemplo em dias de eleições; ganharia uma força maior se pudesse encarregar-se de questões desta ordem, sabendo-se que elas implicam que os interessados o sejam de facto.

Post-scriptum
16. Nós, povos da periferia europeia, estamos a sofrer uma guerra devastadora, efeitos colaterais da grande guerra dos capitais, tal como as houve, militares, na primeira metade do século XX. Concomitante com ela, já que se trata duma guerra com suporte electrónico falado em inglês, sofremos igualmente o domínio da língua inglesa nessas tecnologias, juntamente com a dívida colossal, como se houvesse uma ocupação e nos fosse muito difícil organizar a resistência. O novo império, o Gestell de Heidegger, é por ora americano, com o chinês no encalço. Ora o pensamento inglês (como aliás o chinês) é empirista, os americanos são facilmente engenheiros (como os Romanos o foram, sustentados pela cultura grega) e dependem da cultura europeia, do acabamento da metafísica (Heidegger ainda). O que significa este? Não é apenas a marginalização do pensamento francês e alemão (os intelectuais dessas línguas estão a render-se aos pensamentos únicos que não pensam?), é também o predomínio da metafísica empirista no além da tecnologia-capital, estrutura esta imune à metafísica especulativa. Ou não? Estrutura sem cabeça? Ou o capital cabeça de que o corpo é a tecnologia? Com ela, a velocidade da electricidade tornou-se pressão sobre o tempo, tudo à pressa no espaço urbano.
17. Ora, assim se abrem margens desempregadas, com menos tempo de emprego, susceptíveis de liberdades novas, para lazeres calmos, leituras e artes, desporto praticado sem espectadores, retorno a coisas esquecidas, culinárias, agriculturas, meditações, sei lá!


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