sexta-feira, 18 de abril de 2014

Consciência e memória




(retorno à questão de “Memória em fenomenologia neurológica” neste mesmo blogue)

Neurónios e mente: Damásio renova a questão
O que a psicanálise complica ao neurologista
A bifurcação da linguagem
Retorno à questão da memória


Neurónios e mente: Damásio renova a questão
1. O que especifica os neurónios enquanto células é eles afectarem-se uns aos outros por múltiplas sinapses, permitindo a auto-afectação do humano (como de qualquer animal) e a sua hetero-afectação. Não li isto em nenhum livro de divulgação neurológica, deduzi duma definição de ser vivo por Derrida – “a auto-afectação é uma estrutura universal da experiência [...] só um ser capaz [...] de se auto-afectar, pode deixar-se afectar pelo outro em geral; esta possibilidade, outro nome da vida [...]”[1] (a dizer verdade, isto só é válido dos animais, não das plantas) – que era essa a especificidade dos neurónios dos seres no mundo que são os animais. Eis o que pode dar o devido valor à solução extraordinariamente simples que o último livro de A. Damásio, O livro da Consciência, trouxe à velha e dificílima questão da diferença entre o cérebro e a mente e à oposição alma / corpo donde aquela é a herdeira, que foi a de dizer – sem argumentar, mas dizendo-o várias vezes como algo que é óbvio – que à rede dos neurónios de cada um[2] apenas o próprio tem acesso, ao que se poderia chamar a sua ‘internalidade’ (da rede de relações sinápticas), e não o neurologista com os seus instrumentos de laboratório: é a esse acesso exclusivo que, sem dualismos, Damásio chama mente. Esta será o saber de si e do seu mundo ecológico. Genial simplicidade duma questão que embaralha os neurologistas, desde o incrível livro de J. Eccles e K. Popper (o título é revelador, The Self and his Brain!) até às buscas de ‘mecanismos’ cerebrais em redor do ‘eu’ e da ‘consciência’ que evoca Kandel no final do seu livro (Edelman e Crick).
2. Mas a simplicidade desta resposta esplêndida repõe velhas questões, nomeadamente a da memória. O que é esta e porquê é ela necessária e como escapam os respectivos neurónios à consciência. Ou seja, porque é que não estão todos os neurónios sempre ‘acesos’ como mente? A primeira observação a fazer é que um cérebro demora tempo a desenvolver-se – o que é verdade para qualquer animal, mas no caso humano aprende-se até ao fim da vida –, isto é, a tornar-se o órgão biológico e social que ele é. A rede neuronal que se vai instalando em suas sinapses com a aprendizagem, como mostrou Kandel com a sua lesma do mar, é algo de material, bioquímico, isto é espaço e tempo, a sua manifestação enquanto ‘saber’ também implica tempo, como falar ou ouvir, ou ler um texto, o tempo das palavras se seguirem umas às outras, embora sendo o cérebro–mente bastante mais rápido e não se trate só de palavras, claro, também de gestos usuais em sentido largo. Com efeito, não é possível ter um texto instantaneamente na mente, um resumo é outra coisa, o que chamamos uma ‘ideia’ do texto é uma aproximação. Isto para dizer que parece ser impossível que tudo o que sabemos na nossa rede neuronal nos seja simultaneamente presente num momento mental mais ou menos curto. Temos, bem pelo contrário, frequentemente a experiência de nos ser difícil lembrarmo-nos de algo que nos está interessando, de que quanto muito nos vêm apenas fragmentos. Essa totalidade ‘acesa’ seria aliás esmagadora da própria noção de ‘eu’, que também é temporal, implica articular sequências, antes e depois. Sendo tão extensa a rede neuronal, parece que só pode haver consciência se esta se demarcar na rede, como uma sua zona (oscilante, por certo, deslocável).
3. Já que a sequencialidade do ‘eu’ é também de grandes oscilações entre estádios da consciência: atenta, descansada ou relaxada, a dormir, com graduações entre estes três estádios, é bem de ver, mas que poderemos considerar como suficientemente significativos para o que pretendemos compreender, entre consciência e memória. Chamamos memória ao estado normal duma boa parte da rede neuronal que corresponde à parte que pode estar presente à consciência vigilante mas não está por inibição devida à atenção ou mesmo em relaxação. Esteve aquando da aprendizagem que a grafou, mas de tão repetida deixa de ser útil: se em cada coisa que fazemos tivéssemos a atenção de quando a aprendemos, se todos os neurónios estivessem mentalmente dispersos, nunca passávamos da cepa torta. Não só não está presente, como não depende dessa consciência vigilante a sua manifestação: como diz a palavra francesa para ‘recordação’, ‘souvenir’, literalmente ‘sub-vir’, é a memória que vem quando algo a acorda do seu estado habitual, o de latência, de estar escondida, à espreita ou não. À espreita, porque a consciência vigilante não pode exercer-se na sua actividade corrente sem o recurso constante ao seu ‘saber’ latente, que lhe ‘sub-vem’ sempre que é preciso para essa tal actividade, duma forma que parece ser extremamente variável e que não tem necessariamente que se explicitar antes de desaparecer novamente. Quando falo dum assunto numa aula, por exemplo, as frases que vou dizendo saem, como dizer?, do muito mais que sei dele e que joga no que digo sem se manifestar, manifestando-se em parte logo que uma pergunta a provoca. Há uma espécie de jogo permanente entre a atenção e a memória, com partes automáticas (as que dizem respeito às regras da língua, por exemplo) e outras não, que são suscitadas (citadas a sub-vir) mas têm a sua autonomia na maneira de virem, com lapsos e esquecimentos, por exemplo, num jogo intenso do que se chama ‘associação de ideias’, e com a incerteza de se poder contar com a fidelidade dela, que é o que nos faz levar uns apontamentos para a aula. É certo que a latência maior ou menor da memória tem a ver com a repetição dos respectivos grafos: as palavras correntes da língua estão sempre disponíveis automaticamente, assim como os gestos que repetimos quotidianamente, desde lavar os dentes a guiar. Do mundo neuronal que diz respeito a esta memória, por assim dizer sempre atenta, sempre a manifestar-se e a esconder-se, pode-se porventura dizer que faz com a zona consciente em cada momento um só mapa de grafos, à diferença da memória dum livro, dum filme, dum acontecimento singular que se vai esbatendo com o tempo, com acentos diversos consoante a força que tiveram, algumas memórias com certa frescura, outras desaparecidas quase.
4. Or que é a atenção? Digamos que é a maneira como esta consciência vigilante é chamada por uma situação do mundo em que se é, ainda que por vezes respondendo a necessidades próprias, como fome ou sede, mas para responder a essas situações (ir a um restaurante ou fazer uma refeição em casa) é sempre segundo possibilidades, minhas do meu mundo, ecoando na memória do que se aprendeu. Como todos sabemos pela experiência da nossa inexperiência: diante duma situação bastante nova, normalmente ficamos sem saber o que fazer de imediato (temos que perguntar). Pelo contrário, em situações conhecidas, embora complicadas, somos capazes de responder porque aprendemos, quando éramos mais novos e nos ‘chamavam a atenção’ (‘isso não se faz!’, ‘cuidado, isto faz-se assim!’). Esta expressão explicita o que me parece aqui importante sublinhar: o estádio da atenção da consciência, que por um lado é suscitado pela situação no mundo que nos ‘capta a atenção’, por outro precisa da relação à memória que sub-venha. Pode ser um perigo, que nos ‘concentra’ na situação em que estamos, palavra que diz o apagar de outras considerações, a predominância que restringe o campo da consciência (posso esquecer uma dor ou outra preocupação qualquer numa situação anómala). Poderemos então dizer que o que distingue este estádio de atenção ou consciência vigilante do estádio da relaxação – consciência desconcentrada em que a memória se aviva mais de incertezas e dispersões –, implicando a própria noção de atenção como ‘tensão’, será a necessidade de regras de conduta em tal situação, de cuidados a ter como se aprendeu. É esta tensão da atenção captada que exclui provisoriamente muito saber da memória quotidiana. É o paradigma dos usos, estas regras como lei social no que diz respeito ao fazer de cada dia, que joga aí o seu jogo, na tensão suscitada por uma situação de perigo, mas também pode ser, por exemplo, a leitura concentrada dum livro, que expulsa dela mesma a dispersão da memória relaxada, posso nem sequer ouvir a campainha da porta de tal maneira o livro me absorve a atenção; mas se se ouviu, então é a memória latente que desperta e a do que se estva a ler que passa a latente. Ora bem, o que Kandel mostrou, foi que o que se aprendeu para obviar a um perigo ou a uma carência e que faz memória, a inscreve como sinapse de grafo – mapa neuronal de grafos da nossa espontaneidade –, saber e força em cada um, que tanto é o que age neste uso, nesta conversa, como o que se retira enquanto memória latente.
5. Sem nunca saber dizer nada de localizações destes grafos que funcionam sempre em oscilações de espaço como de tempo, de zonas como de sequências, creio que fica uma extensão de memória menos actuante e por isso mais susceptível de falhar por vezes, mas que será memória ainda, mais ao sabor das ‘associações de ideias’ (‘é verdade, nunca mais me tinha lembrado disso’). E há a sua alternativa, a actuação tão insistente que se torna memória apagada, os neurónios que sabem da roupa que se tem vestida, de gestos dos pés ao andar, das coisas que se vêem todos os dias em casa e por isso não se repara nelas: essa é mais claramente memória apagada para não esmagar a consciência vigilante, claramente empurrada pelo que se aprendeu e se soube e se repete como se não se soubesse, apagada por inútil, fazendo parte da memória implícita de Kandel, mas diferente da memória que age em gestos habituados. Um outro exemplo: quando muito cansados nos pomos em posição de relax, sem pensar em nada e prestando atenção ao passar do sangue, numa têmpora por exemplo, consegue-se com a experiência vir a estar consciente da circulação do sangue por uma boa parte do corpo. É fácil de perceber que o apagamento dessa memória mental do sangue circulante é uma economia energética da rede neuronal a favor de maior concentração energética da atenção no mapa de grafos quotidiano. Difícil é, pelo menos ao leigo, saber como é que estes jogos energéticos de compensação se fazem, entre hormonas e neuro-transmissores.

O que a psicanálise complica ao neurologista
6. E aquilo a que a psicanálise chama ‘inconsciente’? que não é apenas o ‘não consciente’ (que em rigor coincide com o sentido primeiro da palavra ‘memória’, a latência) mas algo que é impedido de ser consciente, que seria perigoso se o fosse, como sucede no que se chama habitualmente loucura, pior do que uma bebedeira, que triunfa todavia nos sonhos. Julgo que se pode fazer um paralelo com a memória do tempo de infância (in-fante é o que não fala), da aprendizagem da fala, de que normalmente ninguém se lembra, provavelmente porque justamente anterior à linguagem com que a memória funciona: não será memória impedida por outrem mas incapaz por si, podendo porventura ter algum papel nos sonhos. Ora, os sonhos são o terceiro estádio da consciência; quando se dorme, não se deixa apenas o ‘mundo’ exterior de usos a fazer mas também a consciência de si e as suas memórias, até as mais íntimas e secretas, e é aonde então, em vários períodos do sono, surgem cenas inesperadas e incompreensíveis a maior parte das vezes com outras gentes em jeitos diversos; aí, segundo Freud, prevalecem imagens e sensações, visuais sobretudo, da ordem do ‘concreto’, em que mesmo quando há palavras ditas ou escritas estas valem como imagens (de voz ou de grafia). Tratar-se-á então de um estádio em que prevalece a situação arcaica da memória, como seríamos se não houvesse nem linguagem nem as variadas regras dos outros usos quotidianos. Será a memória da não lei, da não regra, não testável por definição pelo neurologista, como aliás se rebela fortemente ao psicólogo e ao psicanalista. Será então o que justifica o lugar dado às regras dos usos na sua relação entre memória e consciência vigilante: é o que chamei mapa dos grafos que se apaga quando se adormece, a nossa lógica vigilante, a memória antropológica. Isto representa uma hipótese de compreensão da lógica da psicanálise, que justamente releva da consciência vigilante (não se faz psicanálise a dormir!), mas que também desconfia dela. O que constitui o laboratório da psicanálise percebe-se: é um divã que não sendo para dormir se aproxima da relaxação do sono, e uma regra contra as regras sociais, tendente a ‘desarmar’ a consciência vigilante das suas ‘armas’ quotidianas: ‘diga tudo o que lhe vier à cabeça, não me esconda nada, ainda que lhe pareça estúpido, sem interesse, obsceno, contra a lógica e a moral sociais’, isto é, contra os usos de cada dia. Com ênfase nos sonhos e na sua interpretação, a ‘análise’ vasculha as zonas da memória de relaxação entregue ao ‘delírio’ das associações de ideias. Ora, o que posso saber de um ano e meio de análise, é que este jogo de memórias estranhando-se é progressivo mas bastante lento em seu aproximar-se das zonas que resistem a vir à memória, que interrompem com silêncios ou choros ou denegações e outros actos falhados e assinalam bloqueios da memória, forças mais fortes que resistem. Se se retiver de Kandel que um pequeno acontecimento traumático leva a abrir uma sinapse (ou mais), dir-se-á que a força que agrediu o neuronal ao se gravar se transformou em força de reacção, de defesa ou de ataque: recebida passivamente de fora, virou actividade para fora, segundo a lógica de toda e qualquer aprendizagem. Então, no caso das resistências que não conseguem dizer-se explicitamente, haverá que dizer que o seu efeito terá sido diferido e deslocado, sublimado. E que isto se passou ao longo dos tempos, com repetições de forças nas mesmas zonas e repetição do diferir e deslocar, que terão sido os usos que se foram aprendendo e triunfaram na cena social do paradigma dos usos, reconhecido após ter sido incitado e corrigido. Com o longo tempo e o aleatório dos percursos, pode o que ficou bloqueado vir a doer de tanto  pisado, ao contrário de outros que poderão vingar em suas habilidades espontâneas. O que assim se sugere é que o tempo da passagem da pertença ao seio da mãe, parto, desmame pelo andar, mexer e falar ao ser no mundo do paradigma de todos é o das muito difíceis aprendizagens, dos primeiros grafos e sinapses que vão ser alicerces de muitos outros, e que estes prevalecerão sobre aqueles primeiros, ainda impotentes face ao que os posteriores conseguem. Seria essa impotência que ficaria marcada como in-consciência, incapacidade de chegar à consciência do que terá ganho um estatuto de alicerce dinamizador, se dizer se pode. Os prazeres passivos de se ser parte da mãe, do seu seio, ficam interditos pelo que se vai ganhando como possibilidades activas e seus novos e menores prazeres: são as regras destas possibilidades, deste ‘poder’ ser no mundo, que impossibilitam o retorno ao que fica marcado como incestuoso.
7. Mas é óbvio que disto tudo os neurologistas não poderão saber, resulta da paciente ‘análise’ de discursos no divã, do neuronal ‘mental’ a que só o próprio tem acesso. E quando se os vê a fazerem certas experiências de laboratório e concluírem que Freud estava errado, o mínimo que se pode achar é que provavelmente nunca leram o seu admirável Interpretação dos sonhos, que não fazem a mínima ideia da diferença entre o seu laboratório químico eléctrico de experiências relativamente curtas e o longo tempo das caminhadas psicanalíticas, um outro mundo. Basta ler o capítulo sobre os sonhos de M. Jouvet em O sono e o sonho, de como não consegue retirar da sua análise de dois mil e cinquenta sonhos mais do que duas considerações relativamente anódinas e comparar com o livro de Freud para se medir a diferença. Que também é de paradigmas incomensuráveis, como dizia Kuhn, muito mais do que a incomensurabilidade entre físicos de gerações diferentes.

A bifurcação da linguagem
8. Uma das possibilidades da linguagem dos humanos é a de permitir ‘suspender’ o contexto situacional do falante e do ouvinte (do escritor e do leitor) em vista de ‘criar’  um acontecimento de palavras trazendo consigo o seu contexto : dois bons exemplos são, quer o contar uma narrativa do passado ou uma ficção, quer o que se chama pensar, incluindo sonhar, desejar, imaginar outras possibilidades do que as do contexto situacional, do ‘aqui e agora’. O ‘discursivo’ (que Benveniste distinguiu do ‘narrativo’) permite dois modos dos verbos : o indicativo presente que, com outros índices de locução (‘eu’, ‘tu’, ‘aqui’, ‘agora’, e outros), reenvia ao seu contexto, ‘indica’ o que está ‘presente’ a esse discurso falado, e o conjuntivo, que reenvia a esta capacidade de pensar em outra coisa, guardando todavia o suporte do ‘eu’ da enunciação e a relação ao ‘tu’. Da mesma maneira, a narrativa evocada pode guardar este suporte (auto-narrativa, a respeito do locutor), que no entanto estruturalmente ele exclui. Que nome dar a esta possibilidade das nossas palavras de ‘suspenderem’ o nosso contexto situacional e de nos arrebatarem para algures, absorvidos por exemplo na leitura dum romance apaixonante ? Bifurcação ? Jogando com dois dos sentidos da palavra ‘sentido’, poder-se-ia com efeito falar de bifurcação do sentido : o que nos orienta no espaço, direita, esquerda, à frente, atrás, em cima, em baixo, norte, sul, este, oeste, por um lado, e por outro o que, sentido do discurso, nos dá uma outra possibilidade ao nosso ser-o-aí, a de se ser algures, num outro aí. Bifurcação : ao mesmo tempo aqui-presente e algures.
9. Esta bifurcação far-se-ia entre o nosso contexto situacional, o nosso ‘aqui e agora’, e o contexto contado pela palavra ou pelo escrito. Este tem a potência de nos raptar daquele, de nos absorver, de nos bifurcar[3]. Pode-se presumir que seja necessário normalmente um ponto de partida no contexto situacional para que haja esse ‘ir-se’ da bifurcação, algo, acontecimento mínimo, que faça interrupção, que faça ‘associação’ entre um elemento do contexto e o que está em jogo na palavra, dita ou silenciosa : um encontro com alguém, tal coisa que acene à memória, ou muito simplesmente uma associação de ideias.  Esta é tão frequente que temos que admitir que o nosso estado normal seja o de estar sempre já em bifurcação de sentido, digamos assim, entre a situação do contexto e a do discurso[4], a chamada consciência. Prevenção dum ‘acidente’, a expressão  ‘dá atenção !’ lembra com insistência que há que estar atento ao contexto quando se está algures, nas nuvens.

Retorno à questão da memória
10. O que esta questão da bifurcação implica é que ela vem-se estabelecer lentamente com a aprendizagem da fala e, com os outros usos, andar, mexer nas coisas, brincar, a atenção sendo constantemente ‘chamada’ por quem educa para o contexto presente, este é também coberto pelas palavras que o nomeiam, o que o povoa e nele se faz. Se dissermos que estamos, quando acordados, sempre numa ‘paisagem do nosso mundo’, em interior ou em exteriores, e que os nossos ‘sentidos’ acordados são esse mundo que lhes é dado e que muda sempre que nos movemos, e que é nessa paisagem que somos possibilidades de usos, o que a linguagem aprendida traz à bifurcação é que esse ser em paisagem e em possibilidades é coberto pelas palavras e pela sintaxe das frases que dizemos, de maneira tal que praticamente nada do que era in-fância antes dela lhes escapa (a não ser eventualmente certos gostos visuais e auditivos que venham a manifestar-se em talentos de desenho ou música, que em certas pessoas parecem inatos). Mas o que se chama língua materna será a língua da saída da mãe para o das falas e dos usos: ela orienta o que se vê, ouve, diz e faz: o que corresponde ao que Derrida escreveu: “na língua não há fora de texto”. E será o que ‘après coup’ torna impotentes os neurónios cujas principais sinapses se instalaram na in-fância, incapazes de virem jogar directamente qualquer jogo na consciência atenta mas porventura indirectamente (por deslocamentos e metaforizações, em termos freudianos) na consciência relaxada.
11. Conjecturo que é difícil nestas coisas saber se as sinapses dum dado neurónio são todas da mesma idade ou se podem ter anos de diferença, o que poderá invalidar algumas destas hipóteses. Mas esta in-fância seria por um lado o que a psicanálise busca atingir, os seus efeitos, e por outro, paradoxalmente, corresponderia à concepção dominante de todos os neurologistas que li (Eccles, Changeux, Vincent, Edelman, Berthoz, Jouvet, Damásio, Kandel…), o de não terem em conta a linguagem como aprendida e que lhes baralhará as contas todas.


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[1] De la grammatologie, p. 236, citado in Belo, 2007, 3. 12. Digo isto para ajudar a perceber que a fenomenologia pode ser interessante para os neurólogos.
[2] Dos mosquitos aos humanos, acrescente-se como prolongamento do óbvio
[3] É aonde residiria, parece-me, a ‘verdade’ do que se chama idealismo, cujo erro consise em dividir ou separar a bifurcação entre ‘corpo’ e ‘alma’, extensio et cogito, finalmente objecto et sujeito. Em Husserl : região natureza e região consciência.
[4] Limito-me aqui ao discurso, mas este ‘lá’ pode ser também música, jogo de imagens, cálculo matemático.

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