sábado, 8 de março de 2014

TIMOR, UMA ESTREIA MUNDIAL


texto publicado no Público por altura da independência de Timor 

1. Não sendo diplomata, estratega, jornalista ou historiador, ar­riscan­do-me pois a ser desmentido por algum especia­lista, creio que este pro­cesso timorense é uma novidade na história deste sécu­lo e que, mais do que a última descoloni­zação do sec. XX, talvez se trate da primeira dum novo tipo no sec. XXI. 0.4% da popu­lação dum dos maiores Estados do mundo conseguiu, num contexto de re­pres­são extremamente feroz, al­cançar a inde­pendên­cia por meios democráti­cos extremamente límpidos; o pro­cesso opôs a con­cepção ocidental de política a uma concepção asiá­ti­ca tradicional e teve o apoio unânime do Conselho de Segurança da ONU, sendo uma das suas fases de maior sus­pense o espectáculo de um Presi­dente da Re­pública, com todo o seu go­verno e altas pa­tentes milita­res em grande estadão, a levantar a ban­deira branca diante das te­levisões do mundo inteiro. Já se vira algo assim?
2. O Estado indonésio é multiétnico, como se sabe, embora cerca de dois terços da população (nas duas ilhas maiores, Java e Sumatra) tenha uma longa história cultural ligada às grandes civili­zações continentais, nomeadamente à Índia, cujas influências foram recobertas, desde o tempo das descobertas ocidentais, pelo Islão e pelo colonialismo holan­dês. Aliás, esta implantação do islamismo, geograficamente ‘aberrante’, parece sintoma dum atraso histórico da unificação das popula­ções dessas duas grandes ilhas, em relação às grandes nações asiáticas. A ilha de Timor, nas suas duas meta­des, faz parte dum conjunto de dezenas ou centenas de etnias (os nú­me­ros variam com as fontes), numa imensidade de ilhas mais pe­que­nas que a Indonésia sempre teve dificul­dade em con­gregar, onde justa­mente o Exército tem um  papel predomi­nante, o de uma es­pécie de ‘partido único’, de garante da unidade à força (as milícias fazem parte disso). Ora, na Ásia da China e do Vietname, este gi­gante frágil era o aliado dos Estados Unidos (e da Austrália) desde que Suharto, em 1965, massacrara cerca de um milhão de militantes e simpatizantes co­munistas pró-chineses. Eis uma das condicionan­tes fun­damentais da questão de Timor.
3. A outra é a extrema dificuldade dos ‘pequenos’ se fazerem ouvir no concerto dos medias, como sabe o desconhecido que publi­ca livro, disco ou filme que não vá segundo os ventos de feição dominantes, ou quem faz uma campanha de marketing com poucos meios; dese­jos e cunhas não intervêm, e sorte é só às vezes.  Ques­tão: como fazer ouvir Timor? Houve o massacre de Sta. Cruz e o Prémio Nobel, depois mais nada.
4. O factor decisivo em relação à primeira condicionante foi o PREC surgido na Indonésia com a queda de Suharto; até aí, os es­forços diplomáticos portugueses, fossem do PSD fossem do PS, não deram frutos nenhuns, que só depois foram possíveis e nas condi­ções que se sabem, as que os indonésios, sem pressões ainda sobre eles, puderam impôr. É que na al­tura só nós, praticamente, é que prestávamos atenção. Ainda que se possa e deva discuti-lo, foi o acordo de Maio que tornou possível o recensea­mento de toda a po­pulação, o referendo com 98% de votan­tes e com os 78.5% a dize­rem ‘sim’ à independência. Depois, foi esta votação esmagadora e o massacre que se seguiu, que mostrou, agora sim a todo o mundo, as razões muitos fortes dos ti­morenses quererem viver sozinhos. E foi então que todo o mundo viu, Clinton e os outros também, o que se estava a passar em pleno Oceano Pacífico: 0.4 % contra 99.6 %, um David / Golias entre asiáticos, mas em que o fraco estava armado pela ONU com a razão ocidental, a razão democrata dos direitos humanos, e o forte massacrava sem dó nem piedade, à maneira an­tiga dos exércitos coloniais (incluindo o português há trinta anos).
5. Estou em crer que foi este confronto espectacular de civili­zações - diria Huntington - que obrigou a deci­dir os “senhores do mundo”: as convicções mais fortes do Ocidente (que, contra os cí­nicos, também fazem parte dos interesses “materiais” estratégi­cos dos americanos) estavam a ser esmagadas na paisagem política asiática. E é por isso que me parece que as críticas sobre a “inge­nuidade” dos diplomatas diante dos Indonésios são críticas “ingénuas”. O ofício dos diplomatas foi o de tentar meter a razão diplomática possível no aleatório duma relação de forças extrema­mente desfavorável. O outro lado também estava a negociar (e di­vidido, como se viu depois que o governo não controlava os milita­res), também calculou mal, esperava conseguir alcançar uma espé­cie de empate com o medo que as milícias inspirassem aos eleitores. Foi a amplidão da derrota que ditou a amplidão do massacre. Sem o acordo que houve, e porventura sem a infe­liz cláusula reservando a segurança aos malfeitores, ainda se estaria a negociar; em Novem­bro, a filha de Sukarno, com minoria de deputados, a precisar de coligações e de se conciliar a tropa, que sempre se disse contra o referendo, acabaria com as negociações em nome da democracia interna da Indonésia, e da sorte de Timor só continuariam a saber os portu­gueses e pou­cos mais. Teria sido essa a vitória diplomática de Ali Alatas! Este argumento é triste: fazem parte intrínseca dele os milhares de mortos a quem ninguém ressuscita. Mas a história dos humanos fez-se as mais das vezes com dores destas para que al­gum bem possa vir, para que agora a independência de Timor seja irre­versível. E isto porque quer os Estados Unidos quer a Austrália fo­ram capazes de joga­rem a fundo contra os seus interesses estra­tégi­cos na região.
6. O que creio ser, senão totalmente inédito, pelo menos ex­trema­mente raro. E por isso mesmo significativo: são as razões de justiça nas relações internacionais que poderão ter dado um salto para a frente. Ora, a estabili­dade e a força do direito e das institui­ções internacionais, mormente da ONU, são porventu­ra o problema mais urgente da actualidade internacional. E é de es­perar que, com a globalização das TV, surjam no futuro, não os dois, três, dez Vietnames que o Che Guevara em tempos desejou, mas dois, três, dez Timores bus­cando a sua independência, sair de­baixo da alçada de qualquer exército de povos “irmãos”.
7. O caso de Timor não é único, há outras etnias, maiores até, na própria Indonésia, mas também noutros lados, o Tibet, o Da­guestão, e tantas e tantas pela África pós-colonial fora. Toda a gente responsável tem dito, desde o caso da ex-Jugos­lávia, que não se deve mexer nas fronteiras pós-coloniais. Se estes conglomerados frágeis, instáveis e capazes por vezes de surtos de violência im­previsível, começam a desmantelar-se como nos Bal­cans, se sucede isso à Rússia e à China (por muito que o nosso co­ração esteja com os de Tianamen), à África, que caos tremendo não será?  É esse o grande medo da estratégia americana em relação à Indonésia, Ti­mor nada pesa ao pé deste pesadelo.
8. Ora, qual parece ser o pro­blema? Na Europa, levaram-se alguns séculos para se fazerem Estados-nações, com predomínio das línguas duns sobre as dos outros, que vira­ram minoritárias, mas esse tempo de consolidação nacional foi também o da formação da civilização industrial. As coisas foram lentas, violentas (com revo­luções) mas foram a par; os outros países tendem a acelerar e a precipitar. Entre os povos não-ocidentais, prati­camente só as gran­des civilizações asiáticas, e sobretudo o Japão, tinham já algu­mas condições de unificação nacional para formarem rapidamente Esta­dos modernos. A África, como se tem visto sobejamente nos úl­ti­mos 40 anos, está nos antípodas: o problema deles é como passar rapidamente, em quantas gerações?, de sociedades tribais de há al­gumas décadas a sociedades modernas. O mí­nimo que se pode dizer é que ninguém sabe responder a isto. E também ninguém sabe, jus­tamente porque essa perspectiva é catastrófica para o planeta, di­zer se a independência étnica não será uma dessas con­dições.
9. Foi esse medo, e não a ‘hipocrisia’, quem impediu os Clin­tons e outros de se ocuparem de Timor, e até da Bósnia e do Koso­vo, da mesma maneira que é o sabe­rem que eles têm esse medo que permite aos Milosevic e aos Wiranto a confiança na sua impunida­de. Nós, eu e você leitor, que não somos senhores do mundo, temos um problema para os nossos desejos, e os jovens talvez empenha­mentos futuros em ONGs: devemos querer que haja mais e mais Timores? ou devemos temê-los? Deveríamos querer que, da próxi­ma vez, a ONU possa intervir mais pacificamente, com acordos correctos, sem milícias fantoches, que o direito internacional possa estar à altura das circunstâncias sem as dezenas de milhar de mor­tos. Pode ser que Timor tenha sido uma estreia mundial para mui­tos desses pequenos povos oprimidos que, se não me enga­no, fa­rão boa parte da actualidade internacional do século que aí vem.

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